Faz quinze minutos que Eneida e eu chegamos ao Bar Batana e Waldemar nos acompanhou até minha mesa preferida, a mesa quatorze, de onde se pode ver o mar, as dunas e mais ao fundo os aviões descendo e decolando do aeroporto de Badej.
É meu terceiro encontro com Eneida que, enquanto Waldemar nos deixa para buscar cervejas, vai me contando sobre a pesada discussão que tivera no fim de tarde com o chefe de sua sessão.
Eneida possui uma beleza camaleônica, tanto, mas tanto que tenho receio de não reconhecê-la no próximo encontro e é por isto que me vem esta vontade incontida de bater fotos para estudar seu rosto com cuidado, depois, bem depois, um pouco antes de adormecer ou quem sabe ao acordar, coloco os óculos e volto a me surpreender com as fotos do rosto de Eneida que não identifico.
As cervejas chegaram e servi os grandes cálices, enquanto Eneida seguia narrando sua celeuma. Foi aí que escutei com cuidado o que parecia ser a frase que encerrava sua narrativa.
-...então, Rolando, é bom que eu diga a você que sou uma pessoa muito calma, muito pacífica, sou muito boazinha, mas quando pisam nos meus calos, ah! eu viro bicho.
Foi uma espécie de soco no peito o que senti nesse momento. Não pude acreditar no que tinha acabado de ouvir. Aquilo não era um clichê apenas, mas sim um clichê arcaico que pensava eu estar completamente extinto. Um clichê primevo. Tive de conter a náusea imediata e a vontade extrema de cuspir no parquet e acho que não consegui disfarçar o mal estar, pois embarquei em uma espécie de transe, e deixando os pedidos da comida por conta de Eneida, apenas belisquei alfaces, beberiquei a cerveja com preguiça e monossilabei três ou quatro vezes até que a mulher, com expressão séria, perguntou.
- O que houve, querido?
- Por?
- Você de repente ficou tão sério. Parou de falar.
- Não. Nada. Tá tudo certo.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não...ou melhor...sabe o que é?
- Diga.
- Preciso te fazer uma pergunta. Posso?
- Claro.
- Que tipo?
- Que tipo o que?
- Que tipo de bicho, Eneida?
- Como assim, que tipo de bicho?
- Agora mesmo você disse que é muito boazinha, mas quando pisam teus calos, você vira bicho. Eu quero saber em que tipo de bicho você se transforma.
Neste momento Eneida esboçou um sorriso como se fosse uma careta e adquiriu um rosto egípcio, o qual eu jamais havia visto, nem nas fotos. Inclinou um pouco o corpo, e com voz sussurrada de quem conta um segredo com ares infantis, falou pausadamente.
- Eu viro uma onça, querido Rolando. Uma onça cheia de unhas e garras. Uma onça muito brava.
Retirei do bolso do paletó um pequeno bloco e uma caneta, os coloquei sobre a mesa e falei.
- Gostaria de alguns detalhes então. Você me poderia dar?
Ela fez um vago gesto de consentimento. Segui.
- Qual o país de origem desta onça? O tipo de pelagem? Peso e altura aproximados. Você teria como me fornecer estes dados?
Com a caneta na mão, fiquei observando aquela linda mulher, transfigurada pelo assombro, se transformar numa rainha africana, os lábios entreabertos, gaguejando o que seria um dialeto.
- Você tá esquisito, Ro. Por que tá fazendo isso?
Foi minha vez de inclinar-me sobre a mesa e falar sussurrado.
- Você me chamou por uma sigla, querida? Ro é sigla. De um país? De algum portentado? Ou seria de um estado?
Foi aí que Eneida marejou os olhos e me contive para não clicar a cena que combinava tão bem com o oceano majestoso que havia por trás dela. Sem dizer palavra, agarrou a bolsa e tomou a direção do banheiro, deixando um rastro de perfume misturado a uma purpurina de tons alaranjados e vermelhos, cores fortes que a ira sabe tão bem incandescer. Fiquei respirando aqueles ares, acompanhando a decolagem de um Airbus, com a certeza de que ela tinha ido chorar em frente ao espelho. Em primeiro plano, a mão de Waldemar servia meu cálice com maestria.
- Foi um problema de clichê, senhor?
Prestei atenção à fisionomia enigmática do alemão Waldemar. O cabelo ralo, as rugas imutáveis e o sorriso inabalável de quem possui um eterno trunfo nas mãos. Quando chegou ao Bar Batana, e isto faz mais de trinta, Waldemar parecia ser bem mais velho do que eu. Neste exato momento olho o semblante de Waldemar e posso assegurar que ele parece mais jovem, no mínimo uns dez anos. Lamento não o ter fotografado naquela época para poder comparar com este rosto tão amável que me sorri agora, enquanto derrama cerveja vermelha em meu copo. Tenho certeza de que não haveria a mínima diferença.
- Sim, Waldemar. Você não vai acreditar no arcaísmo do clichê com o qual fui brindado. Uma raridade.
- Notei de longe que o senhor ficou bastante alterado.
- Sim, Waldemar. Vieram as vertigens, como sempre.
- Senhor. Me permita uma observação.
- Pode falar.
- Eu pensei que com o passar do tempo, com a chegada à maturidade, estes seus arroubos arrefeceriam e os clichês passariam à sua frente como folhas ao vento que serão varridas só na manhã seguinte, por uma outra pessoa qualquer, que certamente estará assoviando uma melodia destas populares que se ouve por aí nas rádios.
Quando Waldemar fala, é importante que se feche os olhos, pois suas frases são emitidas com precisão geométrica. Waldemar jamais vacila ou tropeça nas palavras. O ritmo que imprime é irretocável e o timbre de sua voz é como o ronco de um Ford Taunus deslizando pelo asfalto mais perfeito. E o mais impressionante de tudo. Mesmo a frase sendo imensa, Waldemar nunca toma ar. Waldemar não respira. Foi a conclusão a que chegamos, meus amigos e eu, numa noite de tempestade e embriaguez.
Abro os olhos e respondo.
- É mais forte do que eu, Waldemar.
- Senhor?
- Sim?
- Me permita a impertinência, senhor, mas o senhor acabou de proferir um clichê.
Tento buscar na cachola uma resposta convincente à esta relevante questão, mas a janela de nossa mesa repentinamente estremece e abre com estrondo, deixando entrar o ar marinho que me causa sobressalto porque sinto que se criou uma nova e assombrosa atmosfera, e então observo Waldemar arregalar os olhos, sem desmanchar o sorriso, como que enfeitiçado por uma visão que surge e, buscando o foco de seu olhar, vejo que lá está ela, Eneida, na porta do banheiro, com os olhos faiscando, olhos dourados fixos em mim, Eneida, negra do negro mais brilhante, a musculatura absoluta, tesa, na posição de ataque, Eneida, mais linda do que nunca, não foi chorar em frente ao espelho como eu havia pensado. Eneida foi ao banheiro para virar bicho.
- Você tem medo, Waldemar?
- Não, senhor. Ela não pode me ferir.
A distância é pouca. Ela vem. Ainda assisto ao primeiro formidável salto. Então volto a fechar os olhos e encho os pulmões de ar. É assim que quero receber a primeira patada.