sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

ORBITAIS 6

Faz quinze minutos que Eneida e eu chegamos ao Bar Batana e Waldemar nos acompanhou até minha mesa preferida, a mesa quatorze, de onde se pode ver o mar, as dunas e mais ao fundo os aviões descendo e decolando do aeroporto de Badej.

É meu terceiro encontro com Eneida que, enquanto Waldemar nos deixa para buscar cervejas, vai me contando sobre a pesada discussão que tivera no fim de tarde com o chefe de sua sessão.

Eneida possui uma beleza camaleônica, tanto, mas tanto que tenho receio de não reconhecê-la no próximo encontro e é por isto que me vem esta vontade incontida de bater fotos para estudar seu rosto com cuidado, depois, bem depois, um pouco antes de adormecer ou quem sabe ao acordar, coloco os óculos e volto a me surpreender com as fotos do rosto de Eneida que não identifico.

As cervejas chegaram e servi os grandes cálices, enquanto Eneida seguia narrando sua celeuma. Foi aí que escutei com cuidado  o que parecia ser a frase que encerrava  sua narrativa.

-...então, Rolando, é bom que eu diga a você que sou uma pessoa muito calma, muito pacífica, sou muito boazinha, mas quando pisam nos meus calos, ah!  eu viro bicho.

Foi uma espécie de soco no peito o que senti nesse momento. Não pude acreditar no que tinha acabado de ouvir. Aquilo não era um clichê apenas, mas sim um clichê arcaico que pensava eu estar completamente extinto. Um clichê primevo. Tive de conter a náusea imediata e a vontade extrema de cuspir no parquet e acho que não consegui disfarçar o mal estar,  pois embarquei em uma espécie de transe, e deixando os pedidos da comida por conta de Eneida,  apenas belisquei alfaces, beberiquei a cerveja com preguiça e monossilabei três ou quatro vezes até que a mulher, com expressão séria, perguntou.

- O que houve, querido?
- Por?
- Você de repente ficou tão sério. Parou de falar.
- Não. Nada. Tá tudo certo.
- Aconteceu alguma coisa?
- Não...ou melhor...sabe o que é?
- Diga.
- Preciso te fazer uma pergunta. Posso?
- Claro. 
- Que tipo?
- Que tipo o que?
- Que tipo de bicho, Eneida?
- Como assim, que tipo de bicho?
- Agora mesmo você disse que é muito boazinha, mas quando pisam teus calos, você vira bicho. Eu quero saber em que tipo de bicho você se transforma.

Neste momento Eneida esboçou um sorriso como se fosse uma careta e adquiriu um rosto egípcio, o qual eu jamais havia visto, nem nas fotos. Inclinou um pouco o corpo, e com voz sussurrada de quem conta um segredo com ares infantis,  falou pausadamente.

- Eu viro uma onça, querido Rolando. Uma onça cheia de unhas e garras. Uma onça muito brava.

Retirei do bolso do paletó um pequeno bloco e uma caneta, os coloquei sobre a mesa e falei.

- Gostaria de alguns detalhes então. Você me poderia dar?

Ela fez um vago gesto de consentimento. Segui. 
-  Qual o país de origem desta onça? O tipo de pelagem? Peso e altura aproximados. Você teria como me fornecer estes dados?

Com a caneta na mão, fiquei observando aquela linda mulher, transfigurada pelo assombro, se transformar numa rainha africana, os lábios entreabertos, gaguejando o que seria um dialeto.

- Você tá esquisito, Ro. Por que tá fazendo isso?

Foi minha vez de inclinar-me sobre a mesa e falar sussurrado.

- Você me chamou por uma sigla, querida? Ro é sigla. De um país? De algum portentado? Ou seria de um estado?

Foi aí que Eneida marejou os olhos e me contive para não clicar a cena que combinava tão bem com o oceano majestoso que havia por trás dela. Sem dizer palavra, agarrou a bolsa e tomou a direção do banheiro, deixando um rastro de perfume misturado a uma purpurina de tons alaranjados e vermelhos, cores fortes que a ira sabe tão bem incandescer. Fiquei respirando aqueles ares,  acompanhando a decolagem de um Airbus, com a certeza de que ela tinha ido chorar em frente ao espelho. Em primeiro plano, a mão de Waldemar servia meu cálice com maestria.

- Foi um problema de clichê, senhor?

Prestei atenção à fisionomia enigmática do alemão Waldemar. O cabelo ralo, as rugas imutáveis e o sorriso inabalável de quem possui um eterno trunfo nas mãos. Quando chegou ao Bar Batana, e isto faz mais de trinta, Waldemar parecia ser bem mais velho do que eu. Neste exato momento olho o semblante de Waldemar e posso assegurar que ele parece mais jovem, no mínimo uns dez anos. Lamento não o ter fotografado naquela época para poder comparar com este rosto tão amável que me sorri agora, enquanto derrama cerveja vermelha em meu copo.  Tenho certeza de que não haveria a mínima diferença.  

- Sim, Waldemar. Você não vai acreditar no arcaísmo do clichê com o qual fui brindado. Uma raridade.
- Notei de longe que o senhor ficou bastante alterado.
- Sim, Waldemar. Vieram as vertigens, como sempre.
- Senhor. Me permita uma observação.
- Pode falar.
- Eu pensei que com o passar do tempo, com a chegada à maturidade, estes seus arroubos arrefeceriam e os clichês passariam à sua frente como folhas ao vento que serão varridas só na manhã seguinte, por uma outra pessoa qualquer, que certamente estará assoviando uma melodia destas populares que se ouve por aí nas rádios.

Quando Waldemar fala, é importante que se feche os olhos, pois suas frases são emitidas com precisão geométrica. Waldemar jamais vacila ou tropeça nas palavras. O ritmo que imprime é irretocável e o timbre de sua voz é como o ronco de um Ford Taunus deslizando pelo asfalto mais perfeito. E o mais impressionante de tudo. Mesmo a frase sendo imensa,  Waldemar nunca toma ar. Waldemar não respira. Foi a conclusão a que chegamos, meus amigos e eu, numa noite de tempestade e embriaguez.

Abro os olhos e respondo.

- É mais forte do que eu, Waldemar.
- Senhor?
- Sim?
- Me permita a impertinência, senhor, mas o senhor acabou de proferir um clichê.

Tento buscar na cachola uma resposta convincente à esta relevante questão, mas a janela de nossa mesa repentinamente estremece e abre com estrondo, deixando entrar o ar marinho que me causa sobressalto porque sinto que se criou uma nova e assombrosa atmosfera, e então observo Waldemar arregalar os olhos, sem desmanchar o sorriso, como que enfeitiçado por uma visão que surge e, buscando o foco de seu olhar, vejo que  lá está ela, Eneida, na porta do banheiro, com os olhos faiscando, olhos dourados fixos em mim, Eneida, negra do negro mais brilhante, a musculatura absoluta, tesa, na posição de ataque,  Eneida, mais  linda do que nunca, não foi chorar em frente ao espelho como eu havia pensado. Eneida foi ao banheiro para virar bicho.

- Você tem medo, Waldemar?
- Não, senhor. Ela não pode me ferir.

A distância é pouca. Ela vem.  Ainda assisto ao primeiro formidável salto. Então volto a fechar os olhos e encho os pulmões de ar. É assim que quero receber a primeira patada.

NAUTILUS E FÉLIX

Nautilus está tomando banho no grande tapete da sala e enquanto se lambe, pensa que é ridículo repetir tal erro, pois errar é humano, errar não é característica dos gatos, mas é impossível resistir a esta tentação, então vá lamber pelos e pedaços de tapete e se tiver de, novamente, visitar às pressas o veterinário para que ele o faça vomitar aquela bola gigante, paciência.

É neste momento que Félix salta da janela e se posta ao lado de Nautilus, interrompendo tais reflexões. Nautilus repara que Félix traz na boca uma presa fresquinha, ainda viva.

- Que barata bonita que você caçou, Félix.
- Obrigado, Nautilus. Capturei esta em pleno voo.
- Você pega muito mais baratas do que eu, Félix.
- Você é preguiçoso, Nautilus. Anda um pouco gordo também. Talvez por isto passe quase o dia todo tomando banho neste tapete peludão.
- Acho este tapete o maior clima, Félix. Olha só! Esconde esta barata que a mulher vem vindo.
- Já escondi, Nautilus.
- Se a mulher te pega com esta barata, ela grita e chama o homem, Félix. E aí, a barata se vai pra lata do lixo.
- Os humanos são ridículos. Não gostam de baratas. Não é que são ridículos, Nautilus?
- São ridículos sim, Félix. As baratas são tão crocantes.
- Cadê o homem, Nautilus?
- O homem comeu e está roncando no sofazinho do gabinete, Félix.
- Podemos ir ali e deitar na barriga dele, Nautilus? É divertido ouvir o barulho que as tripas dele fazem depois que ele come.
- Sim. É tão ridículo, Félix. Parece que estamos perto de um riacho, ouvindo o barulhinho da água passando. Quando deito naquela barriga, gosto também de sentir o cheiro fininho que sai da boca dele, Félix.
- Sei do que você tá falando, Nautilus. É um cheiro de peixe seco, destes peixes que a gente encontra no porto quando o verão é tão quente que nos deixa tontos.Os peixes secos são deliciosos, Nautilus.
- É o mesmo cheiro da boca do homem, tenho certeza, Félix.
- Eu vejo o jeito que você fecha os olhos e coloca as orelhas pra trás quando sente aquele cheiro fino, Nautilus.
- Bora lá então, Félix. Come essa barata logo de uma vez e vamos com o homem, enquanto ele dorme e a mulher não chama pra fazer qualquer tarefa no jardim. Ia ser ridículo se ele levantasse do sofazinho e a gente ficasse sem o calor daquela pança.

E assim, Nautilus e Félix foram dormir junto ao homem e o dia foi se arrastando na velocidade que os gatos acham justa.

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Talvez seja uma novidade pra você o fato dos gatos colocarem o nome do interlocutor em toda frase, mas afirmo que isto é uma praxe felina. Outra coisa. Os nomes dos gatos são escolhidos por eles mesmos e é por isto que de nada serve você dar qualquer nome a um gato e pensar que ele vai atender.

Tenho certeza também de que você se surpreendeu com a repetição sistemática do termo “ridículo” em meio à conversação.

Para os felinos, quase tudo neste mundo é ridículo. Sempre quando vejo um gato sentado com o olhar perdido no vazio não tenho dúvidas de que ele está pensando que o universo que está ali revelando-se a sua frente é, no mínimo, ridículo.



MUÑECO

O cara subiu no foguete pra provar que a terra é plana.

Se provou, não teve tempo de contar prozamigo.

A terra não é plana, mas é dura para caráleo.

Faz mais de trinta, em Madrid, uma gíria muito usual entre os músicos era o "muñeco". Muñeco, pra quem não sabe, significa boneco em português.

O muñeco era utilizado para situações que davam errado ou vergonhas que se passavam.

Se vc caia na rua, alguém dizia. "Ui, muñeco."

Se você subia no palco pra dar uma canja e errava os acordes, alguém comentava. "Que muñeco, tio."

Se o empresário fugia e não te pagava, alguém mandava. "Que muñeco ".

Naquele tempo, a NASA tava enviando pro espaço umas putas naves pruns novos experimentos orbitais. Não lembro o nome do projeto, mas houve uma tragédia durante um dos lançamentos. Transmitida pra todo planeta interessado no assunto, a nave subiu alguns quilômetros e de repente explodiu. Morreu toda a tripulação.

Havia em Madrid um trombonista americano, que tinha Sinatra no currículo. Era o Bill. O Bill era mais velho e bebia pra caramba. Doidaraço. Tocava bonito, o Bill.

Morava com o Carli, um excelente baterista uruguaio.

Pois o Carli contou que os dois estavam na sala, assistindo ao Jornal Nacional dos espanhóis, quando deu a notícia do desastre.

Diz que Bill ficou paralisado olhando a cena da explosão. Carli também manteve silêncio, imaginando que o colega estaria consternado com a tragédia dos compatriotas. Então, Bill, com olhos de ressaca, dirige-se a Carli com seu forte acento yankee.

- Joder tio! No han tenido ni tiempo de decir. Ui, muñeco.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

PAQUERA NO SUPER 2

Távamos falando sobre paquera no super e Carla Carretta Kunze contou que "tem técnicas femininas pra saber os tipos dos caras no super. Dá pra saber quem é solteiro e quem é casado. Se tiver listinha na mão, é casado. Se o carrinho estiver cheio de Gatorade e lâmina de barbear, é solteiro".

Daí disse a ela que se enganaria se me visse no super, pois sou solteiro e sempre tenho uma listinha.

Disse também que Gatorade não tomo e nunca tomei. A mãe não deixa.


Falou que pode prejudicar meu crescimento.

E lâmina de barbear também nunca usei. Tenho meu Philipshave.

Ah. Foi a mãe que deu.

Lâmina pode dar tétano.

A mãe teve uns três primos que morreram de tétano. Teve um que morreu duma espinha que espremeu. Por isso, sempre que me vê espremendo, grita com desespero.

- Olha o Valnair que se foi com dez anos de idade duma espinha que infeccionou.

Fico com pena do Valnair que tinha só dez e já era perebento. E ainda por cima empalmou.

Sabe que às vezes eu desobedeço e espremo espinha escondido?

Daí deito na cama pra esperar o tétano

Daí o tétano não vem.

Daí acho que me distraio, levanto e vou fazer um lanche ou quem sabe jogar bola ou então vou lá pro jardim ver se encontro formigas pra atirar em teias de aranha só pra ver a cara das aranhas, irritadas que ficam, caras de ânsia de vômito que as aranhas ficam porque formiga não é comida de aranha formiga é comida de tamanduá que é animal da amazônia cheia de árvores verdes e marrons que nascem na natureza da floresta que também tem macacos e papagaios coloridos que são lindos e coloridos mas são brabos e bicam a gente foi a mãe que disse.