sábado, 29 de outubro de 2016

FARELOS NA CAMA

Há farelos na cama sobrados da noite passada que pinicam minhas costas e esta sensação aliada a uma ressaca monstra me faz levantar. Havia também calor e suor debaixo das cobertas. Já aqui fora faz frio e só há uma blusa à mão. É peça de roupa feita de lã, e sei que em contato com a pele também vai irritar. Depois de vesti-la e de não encontrar chinelos, deixo o quarto com a antiga sensação de haver deitado nu na grama, tomado pela comichão causada por um ser invisível que em outra era chamávamos de micóliuns. No momento de entrar no banheiro bato com o cotovelo no batente da porta. O golpe não machuca tanto o braço, no entanto o sobressalto faz minha coluna parecer desconjuntar-se. Urino e ao sentir respingar canelas e pés, lembro de um colega alemão que sugeria fazer esta atividade sentado e ele tinha lúcidas razões para isso. Então reparo no espelho a careta que surge em meu rosto no exato instante em que minha língua encontra uma afta novinha em folha. Quando inicio a escovação dos dentes descubro também que se avizinha um torcicolo que promete muito. Da tríade afta-torcicolo-soluço só me falta este último. Desajeitado, escovo a afta com rudeza e isto me faz lacrimejar um pouco. Lavo o rosto, também de forma estabanada, e sinto a água congelando meus antebraços, escorrendo para dentro do blusão. Invado a cozinha à procura de algo que sacie minha sede e para amplificar meu desassossego, percebo que faltou luz e isto já deve fazer um bom tempo. Não tenho água potável na geladeira nem fora dela. Encontro meia garrafinha de coca do mês passado e entorno nauseado o líquido doce e morno, enquanto observo pela janela da área a chuva torrencial que desaba sobre a grande cidade de trânsito inerte e lembro que tenho uma reunião às 10, lembro também que a bateria de meu celular arriou no meio da festa de ontem e como não tenho luz, concluo que não tenho rádio, não tenho TV, nem computador e nem puta ideia de que horas sejam. Não sei qual foi a data em que acabei me tornando mais um tolo digital. Pensando que seria por demais ridículo bater à porta de algum vizinho para pedir a hora, o que me resta é sair por aí para saber a quantas anda o mundo, então decido meter-me em minhas roupas sem banho mesmo, pois banho quente também está em falta. Ao deixar a cozinha sinto os pés gelados pela pedra e como se não bastasse, o arroz cozido da véspera se gruda em minhas solas. De volta ao quarto me visto como um autômato, sofro para pentear meus cabelos emaranhados e me obrigo a cortar dois chumaços. Dou uma geral na cozinha para ver se encontro velas e a busca é infrutífera. Não tenho velas e se for pensar bem, acho que nunca tive e mesmo que as tivesse, de nada adiantaria pois também não possuo isqueiro e muito menos fósforos. Seria o máximo poder dispor de uma lanterna neste momento em que preciso vencer 25 lances de escada, mas a lanterna não passa de uma longínqua figurinha na memória. Inicio então a lenta descida dos degraus na escuridão total, pois as luzes de emergência devem ter se esgotado. Vou encostado pela parede, pé ante pé, no breu e no silêncio e resolvo não contar os andares vencidos, mas agora talvez esteja no 21, e no 21 um tipo de desamparo vem se aproximando e por um momento perco a referência de espaço, de tempo, por um instante me foge o sentido do que realmente estou fazendo ali e logo me vem a impressão de estar avançando por um subterrâneo sem fim e aí então surgem as lágrimas, tão perdido que me sinto, lágrimas certamente facilitadas pela fraqueza que causa o excesso de gim, e estas lágrimas de borbotões molham o cimento por onde me arrasto, mas aos poucos vou me acalmando, os pensamentos voltam a se ordenar e vou me recuperando deste encontro, uma pequena amostra do animal selvagem que se chama solidão, e na porta que dá acesso ao 18 vejo que há uma luz pálida, revelando que alguma boa alma deixou uma vela no patamar, o que dá uns ares trêmulos de terreiro à escadaria e isso me faz imaginar até o cheiro de eucalipto defumado e animado pela tênue claridade, posso acelerar um pouco o passo, e sigo um pouco neste beat, pois nos andares seguintes a configuração é parecida e quando chego ao 15, cruzo por dois moradores calvos, de idade indefinida, que sobem lentamente, eles vem conversando em tom de reza e não me dirigem o mínimo olhar e sinto alívio no 13 pois ali o número de velas é ainda maior, mas no 12 volta a escuridão total e meu ritmo diminui novamente, quando de repente escuto uma porta batendo e em seguida se lança um vulto muito rente a mim, saltando degraus de três em três, portando um poderoso facho de luz, um rapaz muito alto, muito magro, uma silhueta destas de história em quadrinhos que vai descendo vertiginosamente, deixando como rastro apenas o som dos passos vigorosos, portas se abrindo e se fechando com estrondo, e acompanho aquele ruído que vai se desvanecendo pouco a pouco e por sorte no 9 há velas novamente, há também música vinda de algum apartamento, há cheiro de temperos onde o manjericão predomina, há sinais de civilização que confortam, mas me irrito com a dedução de que se há gente cozinhando, estou fodido pois minha reunião era às dez e isto me faz voltar a acelerar o ritmo e no 7, as luzes de emergência estão funcionando e assim posso quase correr e quando chego ofegante à avenida vejo que a chuva não dá trégua e o tráfego se mostra estático e conformado. Me aproximo de um táxi vazio e a impressão que tenho é a de que o motor está desligado e o homem dorme ao volante. Entro afobadamente e isto parece fazê-lo despertar.

- Toca pro centro.
- Esquece rapaz. Deu no rádio que lacrou. Sem previsão.
- Como assim, lacrou?
- Eles tão dizendo que é o big bug que tá rolando. Não ouviu falar dessa treta?
- Não. Não sei o que é isso.
- Eles andam falando muito nessa parada, mano. Mas não sabia que era pra já. É muito carro, brother. Parou tudo. Inda mais essa chuva que tá batendo desde ontem de noite.
- E que horas você tem?
- É quase duas da tarde, bro.

Sem mais palavras, saio do veículo aos tropeções e entro na pastelaria logo em frente. Preciso botar algo urgente no estômago antes que desmaie. O boteco está lotado, mas consigo um bom lugar em um dos balcões. Espero o atendente e neste meio tempo, tento dar uma organizada no espírito. Perdi a reunião e perdi a la grande. Não tenho o menor ânimo para telefonar pedindo desculpas ou qualquer coisa do gênero. Sinto um desconforto sem medida, como se o dia estivesse fora do prumo. Parece que há uma desordem generalizada no ar, e logo me vem à cabeça a possibilidade do planeta ter saído de seu eixo durante a noite. Este é um dos grandes medos dos cientistas, que entediado tomei conhecimento assistindo a um destes programas bobos sobre apocalipse. O Big Bug da Terra, já diria o taxista. Saio do transe e reparo então que no balcão em frente, uma chinesa idosa me fita e sorri. Com a insistência desta atitude, me constranjo e lhe faço um sinal indagativo. Ela, sem desmanchar aquela máscara, com um tom de voz maquinal, diz alguma coisa a qual não consigo entender. Sinto então que alguém a meu lado toca meu braço e é um rapaz, também oriental que com a mesma espécie de sorriso na cara me fala num português estropiado.

- Você não entende, né? Ela disse que cê tá com cara de quem acordou com farelos na cama. É coisa do nosso povo. É coisa que se fala na China.

A sensação do dejavu que esta revelação me causa quase me faz perder o equilíbrio, e decidido a não mais enxergar pessoas, lutando contra a náusea, lanço meu olhar pela grande janela do estabelecimento e constato que a chuva continua caindo com a mesma intensidade. Vejo também que meu táxi está na mesmíssima posição e o perfil do motorista tem a boca aberta de quem ressona sem culpa. Não há som de buzinas nem de motores. Minha afta assovia e o torcicolo responde. Uma moça vem me atender e faço meu pedido com certa dificuldade, pois chegaram os malditos soluços.

OUTUBRO - 16 - pOa






quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O LIVRO PREDILETO

Dia destes participei de um sarau e o assunto principal era o livro predileto. Acabou que chegamos à conclusão que temos vários livros prediletos durante nossa vida.

Eu acho que o livro predileto sempre fica na principal sala de leitura da casa que é o banheiro. 

Durante um bom tempo esteve em meu banheiro um livro chamado “A verdade sobre a morte de Adolph Hitler”. Não sei como foi parar lá. Só sei que li várias vezes. Os últimos momentos do Fhürer. Legal, né?

Lembro que ele ficava repousando em cima da máquina de lavar. Lembro também que destruí esta máquina pra matar um rato que entrou dentro dela. Foi uma das piores coisas que já fiz na minha vida. Matar um rato. Eu batia nele com um pau de vassoura e gritava com uma voz que definitivamente não era minha. Chegou num momento que ouvindo meu ridículo e involuntário escândalo pensei; “Bah, sou bicha e não sabia”. Putz, e além disso, tô aqui revelando pra todo mundo minha antiga pobreza. Máquina de lavar no banheiro. É mole? Mas agora, posso dizer que melhorei. A máquina tá lá no quarto.

Tempo depois, meu banheiro abrigava o “Cem anos de solidão” de GGM, que li duas vezes inteiras e depois fragmentos. Paguei o mico, mais de uma vez, de ler durante tanto tempo que minhas pernas ficavam dormentes e assim me via obrigado a gritar por socorro. Então minha mulher tinha de pedir ajuda à vizinha, Dona Mildred, pra conseguir me tirar dali. Depois que as duas me depositavam sobre o sofá da sala, iam conversando até a porta de saída e a velha sempre comentava com voz de dubladora de filmes;

- Como ele gosta de ler, não é?

Depois de fazer mais algum comentário vago sobre a beleza das petúnias da estação ou o quanto as bergamotas estavam saborosas nesta época do ano,  se ia.

Voltando a GGMarquez, foi com ele que descobri a beleza do parágrafo, a beleza da frase, a beleza da forma, e foi através dele que cheguei até meu escritor favorito, Julio Cortazar.

Foi com Cortazar que descobri que literatura pode dar gosto na boca. Lendo Julio, me vem uma rara sensação de deformidade de tempo e espaço e assim começo a desconfiar que a literatura pode ser mais musical que a própria música, porque Cortazar é melodia e é ritmo também. Dia destes, procurando na Internet, descobri que o escritor argentino padeceu de uma grave enfermidade na sua adolescência que o deixou vários meses no leito. Ele relata, nesta matéria, que durante esta época em que esteve acamado, sentia uma deformidade no tempo e no espaço. Fiquei assombrado ao ler isto.

Por aí também li que certa feita Julio foi questionado por um jornalista que lhe perguntou por que nunca havia feito uma literatura mais engajada politicamente. Julio respondeu que se isto tivesse acontecido teria sido uma traição ao povo argentino. Eu penso da mesma forma. Acredito que a maior contribuição que Chico Buarque deu ao país não foram suas criativas canções de protesto feitas na época da ditadura, e sim o apuro que sempre teve com suas letras, harmonias e melodias, estimulando assim nossa sensibilidade, nosso senso estético, cutucando nossa “inteligência”. É necessário que se tenha sensibilidade apurada para entender o atual momento político e nos livrarmos de julgamentos rasos. É preciso ter faróis especiais no meio de tanta neblina. Só uma cultura rica pode nos dar as ferramentas necessárias para enxergar bem neste mar revolto. Julio e Chico são gigantes da humanidade.

Agora, no meu banheiro estava a obra do gauchão Nietzsche. Que? Olha o fim do nome. Não é gaúcho? Bueno. O livro tem um prólogo que dá uma pista de sobre o que o livro versará. Na real tanto faz como tanto fez, porque afinal de contas devemos confessar com vergonha que entendemos porra nenhuma. E olha que já fui bravo. Li “os Irmãos Karamazov” e “O Jogo da Amarelinha” que são bem difíceis. Aquele leitor era um outro eu. Atualmente não consigo ler uma página inteira sem que meu pensamento fuja e este livro de que vos falo, deste filósofo maluquézimo, é osso duríssimo de roer. 

Mas lhes conto que ele tava lá no bidê. Ficava lá, só me olhando... Já o deixei e peguei de novo várias vezes pra dar mais uma tenteada. Lhes digo também que todos os capítulos, que são geralmente de duas páginas e meia, terminam com a frase que dá título à obra. “Assim falou Zarathustra”. Pois bem. Quando lia este fechamento, marcava a folha com melancolia, colocava a mão no queixo e pensava cá comigo: ”E assim nada entendeu Corona”. Constantemente me irrito e jogo o opúsculo na parede. Dia destes, ricocheteou mal e caiu dentro do vaso. 

Parius. 

Bueno de novo. 

Não jogo nada fora. 

Então, quando chego na área, vejo ele pendurado no varal, pegando uma aragem... 

fica lá...só me olhando.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

TÁ! MAS SÓ HOJE.

Estavam quase nus quando ele olhou pra ela e falou.

- Você é linda. Vou te comer todinha.
- Não vai não.
- Não?
- Não.
- Por?
- Vai te catar. Esta é uma expressão insuportavelmente machista. Me trata como uma coisa. Além do mais, na prática, se tem alguém que come alguém, este alguém é a mulher.
- Sabe o que é? É que você é muito gostosa.
- Óh!... de novo!
- Óh de novo o que?
- Me tratando como objeto. Gostosa como um peito de peru? Uma mortadela?
- Tá bom. Não se repetirá.


Voltaram então aos beijos frenéticos e num determinado momento ele murmurou;

- Que tesão.

Ela se afastou toda empertigada, e com ares de inquisição mandou;

- Tesão porque sou gostosa?

Ele fez uma breve pausa antes de dar a resposta vacilante.

- Não. ..que é isso. Nem pense numa coisa dessas. Tesão de tesão. Tesão normal. Desses que a gente tá parado, tranquilo, e de repente, de uma hora pra outra, vem e dá um tesão na gente.

Foi falando isso e ao mesmo tempo livrando a menina do soutien. Quando as turbinas do Senhor se revelaram, lhe vieram lágrimas aos olhos e não conseguiu evitar uma exclamação aos céus:

- Aiaiai!
- O que é isso?
- O que é isso o quê?
- Tá gemendo desse jeito porque me achou gostosa?
- Não, não...foi o ciático que me atacou um tiquinho.
- Ah bom.

Ele voltou mirar aqueles peitos e balbuciou em tom de reza.

- Os venusianos invadirão nosso planeta para confiscar nosso arsenal de luxúrias e pecados de batina.
- Que maluquice é essa?
- Sei lá. Tô vendo se falo algo que você não censure.
- Mas você precisa falar todo o tempo? Não consegue ficar nem um pouquinho em silêncio? Até parece uma mulherzinha gasguita!
- Opa, opa, opa! Você é machista.
- Sou não!
- É sim. Tá dizendo que eu pareço uma mulherzinha. Machismo puro, minha querida! Eu bem que desconfiei no momento em que chegou a conta no restaurante e você nem olhou pra bolsa. Ainda por cima ficou assoviando uma do Roberto enquanto eu passava o cartão. Você é machista!
- Grosso que você é. Olha só! Só nós, as mulheres, é que podemos dizer o que é machismo e o que não é machismo.
- É?
- É sim. A humanidade nos deve isso.
- Tá bom, tá bom. Mas vamos voltar a nosso assunto aqui. Escuta só. Prestatenção! Agora vou te comer todinha porque você é gostosa e tô com o maior tesão.
- Vai comer não.
- Vou sim.
- Não!
- Vou.
- Tá.
- Tá?
- Tá...mas só hoje.

sábado, 15 de outubro de 2016

PELO DIA DO PROFESSOR

Miriam Leitão, da Globo Golpista, dia destes, numa entrevista com o ministro da deseducação, que nem sei o nome, falou uma bobagem despropositada.

Num determinado momento, ela diz que professor não deveria se aposentar nunca, pois quanto mais tempo passa, mais sábio fica.
Quis fazer uma espécie de homenagem, num momento em que o tema aposentadoria vai ficando cada vez mais delicado. Foi desajeitada em sua alienação coxo golpista purpurinada globotomizadora.

Ela não deve saber, apesar de ser uma jornalista, a quantidade de professores que estão afastados do magistério por todo tipo de problema de saúde.

Principalmente na rede pública.

Ela não tem ideia de que professor, na grande maioria das vezes, pra sobreviver porque o salário é ruim, tem de escolher um carga horária gigante. Soma-se ainda a falta de condições básicas, material, equipamentos, ventiladores e ar condicionado. Tem muito professor que tira do próprio bolso pra poder dar aula de uma forma um pouco mais decente.

E este ministro com cara de tatu ainda diz que as “regalias dos professores têm de acabar.”

Esta jornalista foi muito babaca. Cínica, hipócrita. Perversa. Mídia canalha. Cúmplice de um governo canalha.

Professor precisa urgente de férias, precisa aposentadoria. Professor precisa respeito. Professor brasileiro tá precisando de solidariedade.

Conheço muitos professores de perto e é de perto que conheço o drama.

Um grande abraço no professor brasileiro que na verdade tá precisando mesmo é de colo.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

A FANTÁSTICA HISTÓRIA DE UMA PARCERIA

Foi na semana passada que entreguei uma melodia a um colega pra ver se ele se inspirava e colocava alguma letra em cima. Passados alguns dias ele me liga para comunicar que havia terminado o trabalho e queria me mostrar o resultado da composição.

Marcamos num bar e estranhei o fato dele trazer apenas uma pastinha debaixo do braço. Depois das saudações, sentamos, gritamos por dois chopes escarlates, e ele então pediu desculpas por não portar o violão e comentou que por estes dias andava numa correria bárbara, mas apesar do tempo tão exíguo, se sentia bastante satisfeito com o rumo que havia tomado nossa criação. Com um sorriso enigmático, abriu a pasta, retirou de dentro algumas folhas impressas, e tomado por uns ares de quem está prestes a ter sua genialidade por fim descoberta, entregou-as a mim.

Percebi, de antemão, que a fonte era Tempus Sans, que muito me agrada, e ele havia utilizado letras graúdas, generosas, para redigir o impresso que parecia muito claro em sua apresentação.

No momento em que se revelou o título da canção, deixei escapar uma pequena interjeição de agrado, pois aquilo me pareceu deveras interessante e talvez este gesto tenha feito meu amigo sorver o chope mais ruidosamente do que era de seu costume ao mesmo tempo em que acompanhava meus movimentos com olhos de uma feliz e incontida expectativa;

- Sapo Cururu?
- Isto mesmo. Sapo Cururu.

Li em voz alta e pausada a primeira estrofe.

- Sapo Cururu,
na beira do rio,
quando o sapo canta,
ó maninha,
é porque tem frio.

Levantei os olhos do papel, pois pressenti que meu amigo, limpando com a manga do paletó o bigode rubro, fazia uma clara menção de que começaria a explanar.

- Sabe o que é? O sapo aqui do sul, o batrákio gaudérius, nesta época do ano onde há muito frio e umidade nos fins de tarde, sofre uma brusca mudança em seu metabolismo e isto faz com que ele sinta um frio terrível. Neste momento, por uma defesa natural, ele começa a coaxar e como está sempre junto ao grupo, logo forma-se o que se poderia chamar de o grande coral.

- Sim. Continue.

- O som resultante de centenas, talvez até milhares de bocas de sapo cantando ao mesmo tempo, cria uma frequência que atinge diretamente o córtex do animalzinho, e isto ativa uma enzima que triplica o fornecimento de adrenalina no corpo dele e assim o sangue passa a circular com mais velocidade fazendo o sapo voltar a ficar aquecidinho.

Ouvindo tal magnífica explicação, assombrado, bebi quase todo meu chope com goles brutais, e semi engasgado murmurei.

- Sério?
- Sim. Pesquisei e tudo.
- Beleza. Agora me diz uma coisa. E a maninha?
- A maninha é a cunhada.

Neste instante, o rosto de meu colega se iluminou com centelhas de luxúria, pois a palavra “cunhada” é um botão que sempre faz com que se acendam luzes de todos os matizes e por todos os recantos.

- O sapo tem cunhada?
- Claro.
- Então o sapo é casado.
- Não neste caso. Ou melhor; não ainda como você vai ver na continuação. Saiba você que os sapos daqui do sul se casam também com as irmãs da sapa.
- Isso aí tu tá inventando.
- Nada. Assisti a uma longa e séria matéria no National Geographic.
- Bueno. Legal.

Depois de pedir mais dois chopes e um prato de linguiças carameladas, passei então a ler a segunda estrofe.

- A mulher do sapo,
deve estar lá dentro,
fazendo rendinha,
ó maninha,
pro seu casamento.

Esta estrofe me incomodou um pouco. Depois de agradecer ao garçom pela celeridade com que foi feita a entrega das linguiças, sem perda de tempo mergulhei a minha na farinha de guaco orgânico e inquiri.

- Esta estrofe não seria um tanto machista? Por que a mulher do sapo tem de trabalhar?
-Ahaha! Sabia que você ia perguntar isto. Pesquisei também. O casamento do sapo se realiza sempre no findar da tarde e esta é a única ocasião em que o bando tem de manter silêncio. É uma ordem da natureza. O sapo não pode cantar nos casamentos, de jeito nenhum.

Meu amigo então falou mais algumas palavras incompreensíveis, pois a linguiça queimava sua boca. Tratei então de ajuda-lo.

- Vamos ver se entendi. Como o sapo sempre sente frio ao entardecer e durante o casamento ele não pode cantar e é quando canta que se mantém quentinho, a solução para o problema tem de ser outra.
- Humhum.

Percebi que a linguiça fervente dava pequenos estalidos e se podiam ver fagulhas coloridas nas profundezas da boca sorridente e encaramelizada de meu parceiro. Observando que sua impossibilidade continuava, prossegui.

- Então a mulher do sapo tece agasalhos de rendinha pra suprir esta momentânea falha do metabolismo. Ela fabrica sueterzinhos pra ela, pro futuro marido e quiçá pra irmã, ou irmãs, sei lá. É isto?
- Perfeitamente.

No calor da emoção resolvemos brindar, mas quando as taças se tocaram, o chope incandesceu, e por mais presteza que tenhamos empregado na tentativa de levar os copos à boca, não conseguimos evitar que a espuma rósea se espalhasse em abundância por nossa mesa e atingisse inclusive a algumas mesas vizinhas. Enquanto dois garçons faziam a providencial limpeza do ambiente com grandes toalhas de linho, conjeturei que estávamos compondo um novo clássico da música popular brasileira, me senti orgulhoso de possuir um parceiro que seria um novo Benjor, criativo em suas letras carregadas de insanidade folclórica, o non sense inquestionável, as palavras escolhidas numa ordem irreversível, a continuidade exata e mais do que perfeita. Quando os garçons se retiraram, sem perda de tempo voltei à leitura dos versos, usando desta feita uma voz um tanto empostada, pois a bebida já ordenava seus brilhos de etilia por minhas veias impuras.

- A mulher do sapo,
não lambe o pé do sapo,
porque o sapo não lava o pé
e não lava o pé porque não quer.

Neste momento abocanhei o derradeiro pedaço de linguiça que ainda espocava e observei com atenção meu amigo cuspir uma nova sentença de sílabas acentuadamente separadas.

- Es tá com pro va do!
- O que?, lhe perguntei animado.
- O sapo, apesar de ser um animal exclusivamente hídrico, possui péssimos hábitos de higiene.
- Por isto a mulher do sapo se nega a lamber seu pé?
- Bingo!
- E a cunhada?
- A cunhada muito menos. Você sabe como as cunhadas são cheias de mimimi.
- Isto não é legal.
- É verdade. Mas todo o resto rola.
- Ah bom.
- Lê a última. Acho que fechei com chave de ouro.

Depois de conseguir eliminar os excessos de caramelo das gengivas iniciei a leitura da derradeira e mais extensa estrofe.

Aumentei bem o volume da voz, para que as pessoas das mesas adjacentes também pudessem usufruir daquilo que para mim, sem sombra de dúvida, se anunciava como notabilíssima obra maestra.

- Sapo Cururú,
vai na festa do céu,
ao contrário do jacaré,
que não pode entrar,
mas não pense que é pela boca grande,
o jacaré não entra no céu nem com capuz,
pois por ter o braço curto,
não consegue fazer o sinal da cruz.

Quando terminei o verso, observei que havia um respeitoso silêncio por todo o bar. As pessoas entenderam a importância de tudo aquilo. Meu parceiro estava com lágrimas nos olhos e tomados por uma sensação de extremo regozijo, esquecendo do anterior desastre, repetimos o brinde irresponsavelmente e entre gritos e impropérios, cada qual tentando se proteger da espuma indomável que a tudo invadia, nos abraçamos, e possuídos por um formidável espírito artístico, esquecidos do mundo que nos rodeava, entoamos a melodia a todos pulmões, tentando decifrar as palavras que ainda restavam naqueles papeis irremediavelmente encharcados de chope escarlate.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

MORTE OU LALALA?

Aqui em Porto Alegre, ter de escolher entre Mello e Marchesan é mais ou menos a mesma coisa que escolher entre morte ou Lalala.

Não sabe o que é Lalala?

Prestenção!

Dois caras que estavam participando de um safari foram capturados por uma tribo africana, com justa razão, pois estavam abatendo animais.

Estavam os dois amarrados no centro da taba quando se aproxima o líder dos selvagens, um gordo de dois metros de altura, que comunica com voz de trovão a um dos caçadores;

- Tu, que é invasor, tem duas opção. Morte ou Lalala. Que que tu qué?

Este responde sem pestanejar.

– Escolho Lalala.

Os selvagens então começam a gritar de alegria, desamarram o cara, botam ele de quatro no areião e os 50 mais pauzudos silvícolas fazem fila e comem brutalmente o cara durante mais de duas horas. Era nisso que consistia o Lalala.

Quando termina a função, o arrombado semi morto é liberado com muitos agradecimentos e exclamações de satisfação por parte dos selvagens.

Então o chefão se aproxima do segundo e faz a mesma proposta.

- Agora tu! Morte ou Lalala!!!??

O cara, que havia assistido àquela bárbara tortura pela qual o amigo tinha passado, responde firme e corajosamente.

– Quero morte.

Cria-se um repentino silêncio por toda a tribo e os olhares de expectativa se voltam para o chefe, o gigante, que com a fisionomia tomada por um misto de luxúria e desapontamento, balbucia entre dentes.

– Tá bom.....morte.

Mas logo seu rosto volta a iluminar-se no momento em que grita a todos pulmões.

– Mas antes Lalalaaa!!!!!!!!!