quinta-feira, 30 de março de 2017

OS PEDIDOS DE MARILYN

Acho que foi no março passado, numa quinta certamente, ao terminar o set, depois de deixar meu acordeon descansando em sua estante na beira do palco, estiquei o corpo para reorganizar um pouco a coluna e vi que lá estava ele no mezanino, o velho Celestino, à beira dos 90, olhando o movimento, sereno e orgulhoso do novo Odeon que agora podia receber até 200 almas sedentas de chopes escarlates e bueníssima música para dançar, neste ano de 36, onde Porto Alegre brilhava como a nova capital cultural sul americana, com seu rio inteiramente recuperado, repleto de barcos velozes e coloridos e uma gente alegre e vistosa zanzando até às madrugadas pelo cais e plataformas e foi no momento em que o velho me acenou lá de cima que escutei pela primeira vez a voz dela sussurrando com delicadeza, era Marilyn, não tive dúvidas, Marilyn Monroe, estava ali na minha frente, eu, um humilde músico que os colegas carinhosamente chamam de maestro, mas isto é uma besteira, pois nem diploma tenho, não, maestro não, por favor, é o que sempre digo, mas como contava, me encantei com o fato da moça saber a forma certa de como me chamar e ouvi claramente todas as sílabas, Ca-le-ga-ri-, tão bem que soou meu nome vindo daquela boca pintada e fresca, aquela voz aveludada me transportou para outra dimensão quando teceu todos os elogios que eu gostaria de ouvir sobre nossa pequena orquestra, ela falava com propriedade, como profunda conhecedora, aquela mulher de cabelos loiros e revoltos era um acinte de deslumbramento, e fui descobrindo com o passar do tempo que ela era uma perfeita mistura de todos meus amores passados, minhas conquistas, tinha trejeitos de meus amigos, olhares de minha mãe, movimentos de minhas filhas, uma familiaridade estonteante, um dejavu sem tréguas que era uma vertigem, algo como abraçar um corpo desconhecido e nu na mais completa escuridão, me pareceu gostar de falar sobre música a moça de sorriso luminoso, eu respirando o ar de suas palavras feito um guri espião e ela então revelou ter um pedido musical a fazer e o cenário assim ia ganhando uma atmosfera azul de balcão de loja, onde os perfumes vão se modificando a cada segundo, me fazendo levitar, me empurrando a voltar no tempo e a me sentir tão perdido com o olhar daquela mulher me atravessando, olhar impiedoso  que pouco a pouco foi semeando um desassossego incurável em meu espírito.

- Seria demais pedir para que vocês tocassem Futuros Amantes?

Me desculpei por não saber a letra, mas lhe garanti que executaríamos a canção do Senhor Buarque de forma instrumental e a moça agradeceu e retirou-se, flutuando pelo neon em direção a sua mesa e já são três meses que ela não falha uma quinta sequer, algumas vezes ela vem sozinha, outras num grupo de amigos e até mesmo aparece acompanhada de um homem, mas tenho certeza de que não formam um casal. Nos intervalos ela se aproxima para fazer seu pedido e ali conversamos um pouco, mas não vá pensar que me aprofundo, não vá imaginar que tenho a intenção de beijar esta moça, muito menos de levá-la até minha cama, pois devo confessar que tenho medo até de perguntar seu nome, não quero saber de que bairro vem, espero que ela nunca me diga que tem uma prima chamada Irene e espero que não demonstre curiosidade de saber a que signo pertenço. Esta última hipótese, penso que seria um irremediável desastre. Não quero arriscar a quebra do encantamento que possivelmente a faria dissipar-se e é bom ressaltar que ela também parece evitar estes assuntos vulgares e cotidianos e assim nossos diálogos navegam em meio a uma névoa de incertezas e hálitos de chope recém tirado e feiticeiro. Estes poucos momentos em que ela surge como cena de cinema já são o combustível de que preciso. Então fico por aí. Não necessito mais do que isso para matar minha sede. Torço também para que seus pedidos não estejam em nosso repertório pois assim chego em casa e, sem perda de tempo, inicio os trabalhos. Varo a madrugada escrevendo o novo arranjo, fazendo a lição de casa com perfeição para que os olhos de Marilyn brilhem na semana seguinte e até é bom contar uma passagem, pois Fabini, durante o ensaio da última terça, depois de desligar a guitarra, não resistiu à tentação e brincou em alto e bom som.

- Aí, maestro. Vou te falar. Depois que aquela dona apareceu, teus arranjos andam o must.

Tive de aguentar a galhofa dos demais colegas, mas Fabini brinca falando a mais pura verdade, pois numa noite destas executamos o arranjo de State, outro pedido dela, e a sensação que tivemos num determinado ponto da canção foi a de que se tirássemos as mãos dos instrumentos, a música seguiria tocando sozinha, tamanha a magia que a banda havia adquirido nestes novos tempos outonais, a orquestrinha estava voando, você pode acreditar, e Morettii, que geralmente é muito mais técnica do que sentimento, em seu solo de tenor fez os casais por um instante cessarem sua dança para melhor poderem admirar aquele surpreendente discurso musical carregado de todos os mais densos sentimentos deste mundo, Moretti tocou como se tivesse conhecido as mais lindas paisagens do planeta, tocou como se possuísse o coração varado por uma dúzia de paixões, Moretti, que era dono de uma frieza matemática, naquele solo chamou estrelas e eu poderia jurar que, por tudo isso, Pio escondia-se na bateria para que não o víssemos chorar.

Agora estou terminando o arranjo para Cry me a river, que foi o pedido da quinta passada. No momento em que ela citou o tema notei um quase imperceptível traço de tristeza percorrendo seu rosto e como isto é algo que não quero que aconteça de forma alguma, resolvi acelerar o andamento para que a melancolia vá figurar por outras bandas. Quero ver nosso público dançando com fúria esta marca que vesti com uma linha de sopros maquiavélica e estou ansioso também para apreciar Marilyn na pista com seu tailleur justo e seus movimentos lânguidos e indecifráveis. Já decorei a letra e isto me custou muito, pois não falo inglês e jamais cantei nesta língua. Neste exato momento deixo um pouco de lado o teclado do computador quando me vem uma nuvem de chumbo para soprar que talvez ela não apareça na próxima quinta, ou nas demais, quem sabe até seja possível que ela suma, como acontece normalmente com estes pássaros da noite boêmia que migram para outros bares ou outros hábitos, mas logo me tranquilizo quando lembro do instante em que ela, ao se despedir, segurou meu punho com mão trêmula e ares de misteriosa súplica e isto talvez tenha me feito entender que ela descobriu junto comigo esta espécie de ópio e que assim como eu, não tem forças para se livrar, então me debruço novamente sobre a pauta pois faltam alguns detalhes de guitarra aqui e ali, pouca coisa, logo tenho a forma final de mais um arranjo deste que tem sido meu trabalho e minha religião nestes dias chuvosos de junho, tudo para satisfazer os pedidos, os pedidos de Marilyn.

quarta-feira, 29 de março de 2017

PLANILHA

- Putz. Hoje não prenderam ninguém.
- É.
- Tédio, viu?
- Eu não gosto.
- De que?
- Quando prendem. Fico nervosa.
- Eu, atualmente, só gosto disso. Todo o resto acho um saco.
- Sério? Você tá muito neurótico com isso tudo.
- Sério. Fiz até uma planilha no meu quarto. Quase toda a parede.
- Não acredito.
- É. Com os nomes dos presos, partido, estado, quantia desviada, quantia devolvida, uma planilha bem completa.
- Mesmo?
- É. Ficou linda. Ficou gigante.
- Bacana.
- Queres ir lá conhecer?
- Teu quarto? Já conheço. Aliás, tô careca de conhecer teu quarto.
- Minha planilha você não conhece. Vamos?
- Pra que? Você acabou de dizer que o resto tudo é um saco.
- Tomamos uma cervejinha.
- E aí?
- Coloco uma musiquinha.
- E?
- Aí você dá uma olhada na planilha, pode dar alguma sugestão.
- Taquiuspariu, Alberto, que ideia fixa essa. E aqueles dias que você me prometeu no Itaimbezinho?
- Pois é. Acho que não vou ter recesso.
- Que recesso, caralho?! Você tá desempregado, homem!
- É mesmo. Você tem razão, querida. Bom. Acho que uns dias a gente podia tirar sim. Mas vou ter de digitalizar minha planilha pra poder levar pro Canion e acompanhar a movimentação.
- Putz. Isso não vai dar certo.
- Vamos indo?
- Por que essa pressa toda?
- STF, daqui a pouco, expondo suas covardias na TV Justiça ao vivo e a cores.
- Vai à merda, Alberto.

sábado, 11 de março de 2017

A LAGARTIXA MARLEY & O PINGUIM LASANHA

Dois espécimes raros de animais têm sido vistos pelas florestas e orlas flamengas. Digo que são raros por haverem migrado das terras do sul e também por estarem em extinção. Um deles é a Lagartixa Marley.

Marley tem predileção pelas árvores e montanhas e total adoração pela lua. Quando esta surge no horizonte, Marley sempre lhe aponta o dedo fino e branco e emite pequenos ruídos de aprovação. Lânguida por natureza, atrai a cobiça de machos e fêmeas de outras raças, mas a isto quase nunca vê, pois seu olhar está sempre descansando sobre imagens e sonhos. Apesar do nome sugestivo, não tem atualmente qualquer relação com a planta canabis seativa, e nem necessitaria , já que leva um jardim florido junto ao cérebro. Lagartixa Marley pertence à classe dos leves.

O outro animal a que me refiro é o Pinguim Lasanha. Lasanha tem sempre os pensamentos com alguns minutos de atraso, o que o faz nunca estar no lugar onde deveria estar. Devido a isto, apesar do porte avantajado, adquire a fantástica característica da invisibilidade, e se pode dizer que tal fato lhe traz o importante benefício do “corpo fechado”, mas também sérias desvantagens de toda ordem, afinal de contas, quem não é visto nunca é lembrado. Este indivíduo tem forte ligação com o oceano e não é raro vê-lo comunicando-se com as salgadas águas nos momentos em que besouros e nóias silvestres dão-lhe alguma trégua e não o picam tanto na cabeça. Pinguim Lasanha pertence à classe dos densos.

Os dois espécimes, apesar das grandes diferenças químicas e biológicas, se protegem mutuamente, e tem sido encontrados sempre juntos, brincando brincadeiras tolas e repetidas, mas parecem muito satisfeitos com isto. Vez por outra, surge uma pequena desavença, mas esta é logo superada, pois os dois sempre acabam lambendo as feridas um do outro.

É nos momentos em que estão roubando peixes do mar que aparecem as nuvens, então eles deixam tudo que estão fazendo para jogar sua atenção a estas nuvens carregadas que vêm das terras frias. Sempre tentam ler o que dizem as gordas nuvens, mas as mensagens nunca são o bastante claras e seus olhos se cruzam e se tocam logo após elas passarem. Geralmente, é neste instante que os dois desconfiam que, por suas extremas diferenças, se aproxima o momento de procurarem por seus iguais, porém , talvez por uma defesa natural, logo em seguida esquecem disto, afinal de contas há muitos peixes bonitos no mar. Peixes lindos. Pedindo para serem roubados.

Fernando Corona

segunda-feira, 6 de março de 2017

DA CEVA

Já faz anos, fomos fazer o Compoor canta Lupi lá pelas fronteiras e depois da tocata enveredamos pela noite e aterrissamos num bar Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro e talvez estivesse também Everson Vargas e havia uma cerveja uruguaia chamada Patrícia e mandamos baixar duas e achamos incomum o nome e o formato grandão de litro e logo também nos pareceu estranho o sabor forte, mas fomos nos amalgamando e pedindo mais e quando o sol já dava as caras, chegamos ao hotel engatinhando. Todos completamente apaixonados pela Pati.

Algum tempo depois a Patrícia chegou por aqui por estas bandas e fiquei alegre até o momento de beber e verificar que tava fracolas . Daí fiquei sabendo que a Ambev tinha comprado.

Algo parecido aconteceu faz pouco tempo num bar aqui de PoA. Cheguei no balcão e perguntei que cerveja tinha. Uma das opções era Eisenbahn. Quis saber o preço e era o mesmo das outras. Bueno. Me atirei, é claro. Quando botei na boca, que decepção. Era Skol. Ambev de novo. Como é que uma cervejaria consagrada como a Eisenbahn vende a permissão pra botar seu nome no rótulo de uma água suja? Coisa parecida aconteceu com a Devassa, uma cerveja carioca de primeira. Vendeu o nome pra botar em latas que são um horror. Intragável a Devassa em lata. As de garrafinha ainda são o must.

Faz alguns anos li no jornal que a Ambev tinha comprado a Cerpa, uma cerveja feita no Pará que era pra mim a melhor cerveja do país. Levou uns dois anos pra eles ferrarem a Cerpinha. Uma noite, no Rio Scenarium, no RJ, pedi uma. Tinha gosto de tungstênio titanizado. A Cerpa tava uma merda, mas os caras ainda tentaram manter uma certa personalidade. Gosto sintético esquisitíssimo.

A Polar, ceva feita aqui nos Pampas foi a primeira a cair. Era boa a Polar e acabaram com ela. A última que rolou pelo precipício foi a Sul Americana, uma cerveja carioca muito boa e barata. Ambev também meteu a mão e transformou em lixo líquido. Mais uma grande perda, pois tinha um preço bem acessível.

A Antárctica aqui do sul era massa e caiu. A Original também. A Bohemia, a cada dia que passa, fica mais caricata. Só restou a Serramalte que ainda é uma puta cerveja. Estes tempos o supermercado tava vendendo a Serra em garrafas pequeninhas. Fantásticas. Tem um gosto nostálgico de quando a gente era criança, provava aquela bebida amarela e achava ruim, amarguenta, mas já adivinhava a onda interessante que aquilo tinha. A Serramalte é um cerveja que a gente pode se dedicar, isto quer dizer, dá pra sentar e beber numa larga escala, ao contrário das artesanais que andam por aí. Artesanais tão arrebentando sim, mas é pra provar, beber um pouco, conversar sobre elas. Não dá pra ficar enchendo o pote. São muito fortes e substanciosas. Te deixam enjoado antes de ficar bêbado.

A Ambev tem como meta comprar e aniquilar todas as cervejas do planeta. A Ambev é um troço parecido com o sertanejo universitário. Quer transformar tudo num sabor único. E ruim.

E sendo ruim assim, a cerveja pra nós brasileiros tem de estar estupidamente gelada. Pra que a gente não sinta o gosto. No ano de 2011 o percussionista alemão Andreas Weiser me convidou pra visitar sua casa. Ficava num prédio recuperado da segunda guerra, era quinto andar, não tinha elevador, o pé direito imenso e uns degraus altinhos. Tive um infarto no terceiro andar e um AVC no quarto. Quando consegui chegar ao apartamento, Andreas me levou até a cozinha e me ofereceu uma cerveja. Sentamos à mesa, ele se abaixou e pegou uma garrafa de um engradado. Reparou na minha cara surpresa e disse que na Alemanha não se botava cerveja na geladeira, que isso era coisa de brasileiro. Era começo de verão em Berlim. Fazia uns vinte graus e aquela cerveja de fato era saborosa, mesmo estando à temperatura ambiente.

PS. Sabe a Proibida? Experimentei dia destes. Dei um gole e joguei fora. Consegue ser pior do que tudo que já provei até agora. Malt nojenta e Kaiser dão de 10.

AH...SÓ MAIS UMA COISINHA. Estas cervejas horrendas como Skol, Antártica, Brahma estão sendo feitas com cereais não maltados e diz que isto indica um grande risco de serem transgênicos. É mole?