quarta-feira, 30 de setembro de 2015

PESCADOR

Apesar de ser agosto, a noite era de clima seco. Fazia uma lua gigante e um frio  fininho cortava Porto Alegre. Domênico, através da janelinha da guarita, viu ao longe os soldados cruzando o parque. Agora tinha isto. Soldados pela cidade inteira. Era a tal da revolução que todo mundo andava comentando. Domênico se espreguiçou e cruzou a portinhola da cabine apertada para poder esticar um pouco as pernas e dar uma olhada nos bichos. Pelo speaker o vigia ouviu o locutor da Guaíba anunciar que eram exatas duas da manhã e que na rua Caldas Júnior o termômetro batia nos 10 graus. Havia tanta lua que a Redenção parecia uma festa. Nem precisava lanterna. Domênico caminhou por entre a vegetação até o viveiro dos jacarés, que sempre lhe causavam assombro e talvez por isto fossem seus prediletos. Ficou ali por alguns instantes espreitando para ver se algum deles se movia, mas nada aconteceu, ainda mais com todo aquele frio. Os animais estavam uns por cima dos outros, petrificados, completamente imóveis. A imagem estática era apenas cortada pelo tênue filete de vapor que saia das ventas dos animais. Isto inspirou Domênico a tirar do bolso da japona um maço de Continental sem filtro. Enquanto batia o cigarro na palma da mão, pensou que os jacarés não deviam se importar muito com o frio, afinal eram animais gelados, mas talvez as araras  estivessem sofrendo. É claro que em julho tinha sido bem pior, fez perto de zero e bateu chuva quase duas semanas seguidas, mas 10 graus ainda era uma temperatura bastante baixa, mesmo com tempo seco. No momento em que colocou o cigarro na boca, o vigia viu que um vulto se aproximava.  A essa hora só podia ser Pedro. Era Pedro mesmo. O sorriso na boca não desmanchava nunca. Se aproximou e apertaram as mãos.
- Buenas, guarda Belo.
- Buenas que me espalho, pescador. 
- Como estamos? 
- Tudo na paz do Senhor. Vai uma carpa no capricho?
- Vai sim, Domênico. Vim buscar meu peixe. 
Pedro se abaixou e de cócoras, olhando ao redor por sob a copa das árvores, perguntou.
- E a guarnição? Já passou?
- Passou mais cedo, mas tem dois soldados fazendo a ronda. Faz uns cinco minutos que vi eles trotando pros lados da Bonifácio, mas até darem a volta toda, vai levar mais uns vinte. Dá tempo de sobra. 

Os dois homens tomaram a direção da guarita. Pedro sabia que o vigia tinha um café quente para lhe oferecer e Pedro precisava muito deste café. Estava exausto. Andava trabalhando doze horas diárias na obra e às duas da matina já deveria estar dormindo, pois acordava às 6, mas não tinha outro jeito.

Enquanto Domênico foi até a casinha, Pedro sentou num banco ao lado do laguinho e de dentro de uma sacola tirou um saco de aniagem. Seguido a isto, voltou a enfiar a mão na bolsa, desta vez com cuidado, como se dentro houvesse um animal venenoso, e trouxe do fundo um carretel de linha. 

Domênico já estava sentando a seu lado com a térmica e os copos. 
- Vai café, pescador? 
- Só tô pensando nisso, mestre.

O vigia  serviu um copo e o alcançou a Pedro. 
- E teu guri, Pedro? Melhorou?
- Seu chefia... acho que vai se salvar. Anteontem levamos ele no Pronto Socorro e o médico do plantão disse que o pulmão tava tomado. Deu uma receita de remédio que tive que comprar naquela noite mesmo, se não ele ia ser levado pela febre. Acabei gastando tudo o que tinha, mas hoje, no fim da tarde já vi ele com um brilho mais vivo no olho. Zezé é forte, vai aguentar. Não vou deixar nenhum dos meus se irem, Domênico. É um batalhão, eu sei, mas vou aguentar o tranco. Os pais da Sandra tão lá em casa também, e como tu já sabe, só eu trabalhando. Às vezes quase me desespero, mas passa. Vai passar sim. E meu guri vai ficar bom. Com remédio certo e carne de peixe.

Domênico serviu café para si e ofereceu um cigarro a Pedro que não aceitou.
- Gracias, velho. Quem não tem dinheiro não tem vício. Só o café já tá mais do que bom.

Os dois tinham se conhecido nos  canteiros de obra, e apesar da diferença de idade, começaram uma amizade que já durava  bem uns dez anos. Talvez tenha sido um grenal, no qual se encontraram ocasionalmente, que os tenha aproximado em definitivo, quando acabaram tentando curar suas cabeças inchadas com duas garrafas de cachaça da pior espécie. O Inter tinha tomado 4 do rival  e aquela goleada doeu fundo. Tempos depois, Domênico teve de largar o canteiro por conta de um problema na vértebra. Carregou um bilhão de tijolos até o dia em que as costas estalaram. Passou um mês paralisado na cama e por fim conseguiu uma aposentadoria por invalidez.  Teve sorte também, pois o patrão da mulher trabalhava no município e logo conseguiu coloca-lo no parque como vigia à noite e assim seu ganho ficava um pouco melhor.  Andava pelos 50. Era um mulato delgado e alto que sempre era obrigado a satisfazer a curiosidade dos colegas quanto a este nome esquisito que levava. Dizia que sua mãe havia lido numa revista e tinha achado bonito. Isto não era verdade. A mãe de Domênico era camareira do Plaza e acabou se deixando levar pelos encantos de um nobre Veneziano que havia descido no porto. Assim como veio, o italiano se foi sem deixar vestígio, deixando a moça apaixonada e grávida. A mulher foi vista muitas vezes pelo cais do porto, depois do expediente, perguntando se alguém sabia se havia embarcado um Duque ou Conde chamado Domênico, mas não havia nem sinal. A expressão "ficou a ver navios" se revela triste, quando entendemos que certamente provém dos tantos corações machucados, corações partidos por viajantes que se foram. 

Já Pedro tem todas as mesclas. Se trata de um pelo duro legítimo, baixo e atarracado, amulatado de olhos verdes, descendente dos primeiros portugueses que aportaram por estas terras e que foram se misturando com índios, negros e espanhóis. Nasceu no litoral, filho de pescadores de Tramandaí. Seu pai tinha barco e tudo, mas o rapaz com 20 anos resolveu ir para a capital em busca de outras oportunidades. Acabou se enrabichando com uma guria do Partenon e logo  vieram os filhos e assim, a vida foi rapidamente se tornando difícil e  com tantas  bocas para alimentar, o remédio foi aprender o ofício de pedreiro. 

- Domênico, por que é que de uns dias pra cá tem esta soldadama por toda a cidade? 
- Revolução, pescador. Não ouviu falar?
- Na firma eles andam comentando, mas nem presto atenção. É um tipo de guerra que nos metemos?
- Dizem que é uma guerra contra os comunistas.
- E quem são os comunistas?
- Não sei. Nunca vi um. Mas boa coisa é que não é. Cadê o pão?
- Taqui. 

Pedro levantou, tirou do bolso um pequeno toco de pão e voltou a sentar. Manuseou o carretel de linha até liberar o anzol. Mostrou a  Domênico.

- Olha só. Troquei por outro um pouco maior. Estes peixes andam muito graúdos. 

O vigia viu o reflexo da lua cintilando no anzol dourado. Falou em tom grave.
- Vai logo, antes que eles voltem.

 Pedro arrancou um pequeno pedaço do miolo do pão, amassou-o até  tornar-se uma esfera quase perfeita e colocou-o no anzol. Num gesto hábil jogou a linha na água, ali pertinho, coisa de dois metros, e nem 5 segundos se passaram, já sentiu o puxão brutal. Estava fisgado. 

- Olha só, guarda Belo, como ela puxa. Ela é valente. É uma carpa grandona.

Domênico, às vezes pedia para segurar a linha e sentir o peixe lutando, gostava da sensação, mas esta noite tinha muita luz no parque e podiam ser vistos de longe. Queria que Pedro terminasse logo com aquilo.  Se fossem pegos, perderia o emprego na certa.

- Tira esse bicho logo de uma vez, Pedro. 

Pedro acatou o pedido do amigo e trouxe o peixe  para a superfície. Era uma carpa amarelada e imensa. Ficou se debatendo e roncando na grama do canteiro.

- Que baita peixe, pescador! Este deve ser o maior que tu já pegou. Olha o tamanho dessa cabeça. 

- É sim. É linda ela. Deve ter uns 6 ou 7 quilos. Foi bom eu ter trazido o saco grande, senão ia ficar o rabo de fora.

Sem perda de tempo Pedro colocou o animal e a linha dentro do saco e limpou as mãos apressadamente no capim gelado. Secou o resto nas calças mesmo.

- Bueno, Guarda Belo. Me vou antes que os soldados voltem.
- Acho bom. Tenho a impressão que ouvi trote pros lados da Osvaldo.

Os dois fizeram silêncio e Pedro inclinou a cabeça para quem sabe escutar o som dos  cascos.

-É sim. Acho que eles já tão voltando. Domênico. Domingo destes vou te convidar pra comer um peixe lá em casa. É só o Zezé arribar. Combinado?

- Combinado, pescador. Agora vai. Não perde tempo.

Pedro se esgueirou por entre a copa das árvores e rapidamente chegou até a João Pessoa. Não queria caminhar de jeito nenhum pelo interior do parque, pois podia ser revistado, então na avenida se sentiu mais aliviado. Teria pela frente  um bom bocado ainda. Pegar a Ipiranga, andar um bom trajeto até  chegar no Menino Deus. Depois tinha de subir toda a Silveiro até o morro de Santa Tereza, mas não havia o que lamentar, pois tinha o seu peixe bem guardado e num passo acelerado levaria  menos de uma hora para chegar em casa. Por sorte a noite apesar de fria estava seca e Pedro foi espiando as estrelas e assoviando baixinho uma do Teixeirinha pra ver se afastava um pouco os maus pensamentos. A caminhada seguia serena e tudo parecia tranquilo até à esquina da Venâncio, mas são coisas que acontecem nessa vida, o cenário, algumas vezes, muda bruscamente, a paisagem se torna irreconhecível e foi exatamente isto que Pedro sentiu quando ouviu o forte ruído do motor e ao voltar-se, se deparou com o camburão vindo em alta velocidade pela contramão e foi aí que sentiu o gelo percorrendo a espinha, pois teve a certeza de que era com ele a confusão, mas o veículo passou rente e 50 metros adiante abordou 3 homens que saíram  sabe-se lá de onde e cruzavam a via. Pedro atravessou a avenida em direção à calçada oposta com o coração pulando nas têmporas. Não quis mudar de direção para não parecer suspeito mas também quis evitar passar tão perto dos oficiais que agora gritavam nervosamente para que os homens se deitassem no solo e Pedro, sem parar de caminhar, arriscou olhar praquilo e viu que eram rapazes franzinos que não teriam mais de 20 anos, certamente estes pirralhos não seriam os comunistas, e quando viu um dos soldados batendo com a coronha do fuzil na cabeça de um deles experimentou um sentimento raro de medo misturado com raiva latejando no peito e isso o fez acelerar a marcha em direção à Azenha mas só começou a correr quando ouviu aquele estampido tão forte, o ruído do aço contra o aço, tão feio, sem dúvida era tiro, mas será que atiraram neles? ou tentaram fugir quem sabe? mas por que atirar assim em alguém? são uns meninos, uns fedelhos, o que teriam feito de tão grave? e Pedro com seu valioso peixe que ainda se debatia debaixo do braço só parou de correr quando cruzou a Ipiranga e então, sem ar e sem forças, se apoiou na mureta da ponte pra botar as tripas pra fora nas águas do riacho, que desespero, que sensação horrorosa esta, ter a morte assim tão perto, que sentimento tão doído de desamparo, uma pena tão grande daqueles três,  podia ter sido qualquer um, podia ter sido ele, e por que não? a não voltar mais para casa, a não ver nunca mais seus filhos, podia ter sido ele, por algum engano qualquer, agora podia estar deitado no frio do asfalto sobre um poça de sangue, podia ter sido... 

Foi Zezé mesmo quem usou os braços fortes e tatuados para tirar a grande mala do bagageiro do ônibus e depois de estancar por alguns segundos em frente a um ponto de táxi resolveu que faria o trajeto a pé mesmo. Foi então puxando cuidadosamente a mala vermelha pelas calçadas irregulares de Tramandaí, nas quais não pisava havia mais de 5 anos, 5 anos de ausência que pareciam 10, embarcado na sua maior parte do tempo, vivendo uma dura e diária tentativa de frustrar a caça das baleeiras nos gélidos mares japoneses, mas agora estava no seu chão, do outro lado do mundo onde fazia uma manhã luminosa de dezembro com pouco vento, apesar de ser ainda primavera, então Zezé foi respirando aqueles ares de nostalgia, tentando controlar a ansiedade de chegar logo de uma vez e ver sua gente. Não o estavam esperando, pois não havia dito que chegaria. Seria  quase uma surpresa. Depois de cruzar a Flores da Cunha, Zezé entrou com o coração apertado na Riachuelo e já da esquina pode ver a casa, bonita que lhe pareceu, pintadinha e bem conservada e ali na varanda, sentado com chimarrão na mão, o velho Pedro, seu pai, parecia sorrir sem razão, como sempre, e esta visão fez Zezé voltar 40 anos até aquela madrugada em que a febre amainou e a fome  lhe fez acordar e sair da cama e ao chegar na modesta cozinha viu seu pai ali de pé, na penumbra, com os olhos molhados de quem chora, que gozado, pai ri, pai nunca chora...

- Volta pra cama Zezé. Tá frio.

Nisso a atenção do menino foi atraída pelos estertores da carpa dentro da pia. Se aproximou com olhos arregalados.

- Bah pai, que peixão! Qual é a marca?
- Não é marca, Zezé. É raça que se diz.
- Qual é a raça?
- É carpa.
- Ela vai morrer?
- Vai.
- Quando?
- Vai dormir, Zezé.
- Ela precisa morrer?
- Vai pra cama.
- Pai, tô com fome.
- Vai pra cama filho. Vou te fazer um pão com manteiga. Te levo lá.

Zezé afastou estas tão claras lembranças para pular  o portãozinho como fazia quando era adolescente e viu como marejavam os olhos do velho antes do abraço forte. Olharam-se em silêncio, para quem sabe descobrir as marcas que o tempo havia feito.

- Como estão as coisas, pescador?
- Na santa paz, Zezé. Que coisa esta. Faz muito que ninguém me chama pescador.

Pedro passou a mão no rosto barbado do filho. Acarinhando a saudade, brincou.

- Meu filho comunista se vai por este mundo afora e demora, demora tanto a voltar.

Zezé abriu um sorriso largo.

- Não é comunista, pai. É ativista. E a mãe?
- Foi na feira. Não demora a chegar. Mas, entra, vamos tomar uma purinha pra comemorar.

Zezé entrou na casa de cheiros tão familiares. Quase nada havia mudado com exceção da pintura nova. Sentou-se na cozinha, enquanto o velho abria armários e escolhia copos.
Pedro foi servindo os copos com a azulzinha de Santo Antônio e indagando.

- Mas Zezé, tu deve tá com fome. Queres comer alguma coisa?

Pela janela, o filho pode ver as andorinhas pousadas nos fios de luz. Isto era prenúncio de chuva. Não tinha erro. Zezé tinha aprendido isso com o velho, como tantas e tantas outras coisas importantes e este pensamento fez com que sentisse uma paz imensa acariciando o peito. Uma paz que, talvez até aquele dia, nunca tinha sentido.  Sem tirar os olhos dos pássaros, aquele homem forte, tisnado pelo sol de tantos oceanos, respondeu ao velho quase num engasgo.

- Tô com fome sim, pai. Tem pão com manteiga? 


 

  


  


domingo, 27 de setembro de 2015

MAIS UM TIQUINHO DE Nietzsche. Bolsonaro de lambuja.



Comentei com vocês que minha burrice e eu estávamos tentando ler "E ASSIM FALOU ZARATUSTRA" do gauchão Nietzsche? Comentei, né?

Devo ter comentado também que há um prólogo que revela sobre qual assunto o livro versa. Não fosse isto, confesso com amargor, estaríamos ainda mais perdidos. Pelo que saquei, Zaratustra prega que o homem pode vir a se tornar um super-homem, mas para isto ele tem de dizer não à religião e a qualquer tipo de deus.


A frase consagrada do livro: 


DEUS ESTÁ MORTO

Mudando de assunto mas continuando no mesmo.

Comentei também que de vez em quando vou na página do Bolsonaro dar uma incerta e deletar "amigos" que curtem a página?

Atenção! 


Se você for fazer isto, é preciso cuidado neste momento. Tem alguns petralhas maníacos que estão ali pra dizer desaforos ao perverso homem. A estes deixo quietos.

Mas você vai encontrar também pessoas que curtem de verdade aquele idiota.

E a grande ironia!

Se você entrar no perfil desta gente, vai ver que são pessoas simples e vai encontrar muitas citações a Jesus Cristo e Deus Nosso Senhor. São as pessoas de "bem" que curtem beatismos, preconceito e, surpreendentemente, tortura. Tudo junto ao mesmo tempo reunido. Bolsonaro, entre outras graves infâmias, apoia a tortura.

Claro que alguém vai dizer que estas pessoas nada sabem. E é exatamente isso. As pessoas nada sabem e não querem saber. A ignorância é um ótimo álibi pra se ser malvado. A ignorância tá pertíssimo do mal.

Os países mataram e continuam matando em nome de Deus. Mentira, é claro. Deus neste caso é um maravilhoso álibi pra matar por dinheiro. E a palavra liberdade está sempre coladinha à palavra Deus.

Desconfio, cada vez mais, que este livro de Nietzsche resume a grande tragédia humana a apenas uma palavra; Deus.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

O NOME E O EGO

Era um livro sobre bossa nova e contava sobre a célebre gravação de Águas de Março. Elis falou pro Tom que levaria seu pianista aos EUA e diz que o Tom ficou bravo e não queria, mas a cantora fincou pé e o Mariano acabou indo.

Tom cantou e tocou flauta no vídeo onde Elis e ele, os dois de pé, frente a frente, interpretam a linda canção de forma divertida, o que certamente ajudou a celebrizar o clip. Ficou aquela coisa du carai. Leve e antológica. Nessa parte do livro, diz também que o Tom, que tinha mania de mudar o nome das pessoas, chamava a cantora de Élis, acentuando na primeira sílaba e chamava o pianista de Camargo, diferentemente de todo o resto das pessoas que usava Cesar ou Mariano.


Coisa parecida fazia o Brizola no programa do Jô Soares. O político pronunciava o nome do apresentador com "o" aberto.

- Mas viu, Jó?...

Falava desta forma e fazia uma pausa, com um sorriso matreiro nos lábios e o olhar vivo faiscava, como que dizendo...aqui eu sou o patrão, aqui eu sou o pai eu dou o nome como me aprouver. No caso do Jobim também. Era uma forma sutil de ter um certo poder sobre as pessoas. Parece uma coisa mínima mas acho que tem o seu peso. Fica ali, no subtexto, subliminar. Tô chutando?

Dia destes uma pessoa próxima, numa conversa, lamentou o fato de que possuía o acentuado hábito de apelidar seus amigos na infância. Me comentou que achava que com isto, tinha plantado o rancor no coração da galera. E é verdade mesmo. Ele apelidava todo mundo. Acho que era uma tentativa de liderança sobre o bando. Apelidar é nomear, ou nominar. Apelidar é batizar e quem batiza é o padre, ou o pai, então penso que apelidar é uma forma de tentar desqualificar, ou enfraquecer, o indivíduo no grupo. Eu apelidei algumas vezes. Também fui perverso. Já faz muito tempo que não faço isso. Acho que foi desde que descobri que as pessoas gostam de ter seu nome pronunciado no meio da frase que se fala. Notei que o olho da pessoa brilha quando isto acontece. Me parece nobre fazer isto. Colocar o nome do interlocutor no meio da sentença.

Saindo do assunto, mas continuando no mesmo, Osho e a filosofia Zen consideram isto tudo uma grande bobagem. Pra eles, o nome e o ego são a mesma coisa, e acreditam ser de vital importância matar o ego. Já li textos bem interessantes sobre isto. Quando você consegue eliminar o ego, e descobre o que eles chamam de real centro, você fica imune à qualquer ofensa, assim como deixa de ser sensível aos elogios. E como necessitamos de elogios. Não é?

Nestes tempos de rede social, os egos nunca estiveram tão borbulhantes e inflamados, afinal a rede, de uma certa forma, nos torna a todos protagonistas. Talvez por isto haja tanta convulsão por micro motivos. Talvez por isto haja tanto ódio escorrendo. O ego. Construído sobre frágeis alicerces. Se melindra por qualquer coisinha. Será que é isso?

setembro - 15 - pOa

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

PINTURA

Sou pintor. Pintor de telas. Ou quadros, como se fala mais popularmente. Utilizo óleo e apenas óleo. As outras tintas jamais me interessaram. Minha pincelada é exatamente Toulouse ou Modigliani, e quando quero também sou Picasso. Saiba você que deixei de tentar criar qualquer coisa, e isto faz muito tempo. Não tenho vergonha nenhuma de revelar que num determinado momento de minha vida resolvi me dedicar por inteiro e até meu último dia à cópia. O resumo de minha passagem pelo planeta se tornou uma busca incessante pela cópia exata. A cópia absoluta, como gosto de dizer até hoje. Em frente ao cavalete podia ficar muitas horas copiando e recopiando incansavelmente Rembrandts, Cezanes e Monets. Isso tudo principiou no século passado, quando perambulei pelo velho mundo, quase morando nos museus e foi nos museus que estudei a técnica pictórica até as últimas consequências. Copistas espanhóis e franceses acompanhavam de perto, com curiosidade e estupor, a exatidão da cor e do traço de meu trabalho. Quando voltei ao Brasil, trouxe minhas melhores réplicas de muitas das mais famosas telas da história da humanidade e é em cima delas que ganho a vida. Tenho sorte de, apesar da idade avançada, não necessitar de óculos e ainda saber com justa precisão a quantidade de luz a ser empregada nas obras que sempre consigo vender por um bom preço. Mas não pense que esta foi uma jornada fácil e rápida. Levei 60 anos para assassinar meu ego de vez e me tornar o que sou agora sem sentir pontadas na alma. Sou um pintor copista. Simples assim. Eu copio. E também me custou 60 anos descobrir que este novo "eu" precisava viver só. E assim estava sendo. Cheguei a um ponto de harmonia tal, que sentia intenso prazer no simples ato de refletir. Quando me cansava desse pensar ou de tanto pintar, sempre acabava sendo levado até a areia da praia e foi em frente ao mar que fui descobrindo uma maneira de paralisar pensamentos. Acho importante lhe dizer que isto é de extrema valia. Numa destas caminhadas comecei a achar que Juarez Matos tem uma sonoridade por demais estranha a tal ponto de perder por completo seu sentido, e lembro que isso aconteceu no exato momento em que o sol desaparecia por trás dos Dois Irmãos. Sim. Você pode me chamar desta forma, se quiser: Juarez. Está escrito numa carteira de plástico que sou Juarez Matos e este nome está junto à fotografia de meu rosto. Dia destes pintei minha carteira de identidade detalhadamente, frente e verso, numa tela de mais de 3 metros de altura e a coloquei na sala de minha casa, na Gávea. Talvez tenha feito isto com medo de perder os fios de conexão. Quando não se tem com quem falar ou quando não se ouve o som da própria voz por largo tempo, pode haver o perigo de você perder contato com a torre. Então, toda manhã, quando desperto, tomo a direção da sala e paro em frente à tela. Ali está minha foto. Ali está meu nome. E assim não me sinto tão perdido. Sim, eu moro na Gávea. Moro muito bem, não duvide disto. Dia destes vendi um Gauguin por quase 10 mil doletas. Verdade. Os abastados cariocas pagam e ficam felizes. Então minha vida é tranquila, pode acreditar. Quero dizer...era tranquila até aquele dia de São Sebastião, como lhe conto a seguir. Naquele feriado que se iniciava, naquele fim de tarde de sexta feira, o Rio de Janeiro já estava melancolicamente vazio. Apesar da noite já estar se apresentando, o calor ainda batia nos 40. Tinha tomado meu terceiro banho naquele dia e estava no Jobi, bebendo, absolutamente sem brisa, sem vontade de nada e sem ninguém para trocar qualquer palavra, quando vi aquela mulher tropeçando pela calçada, vindo na direção de minha mesa. Estancou frente a mim com olhar fixo. Não a conhecia, ou não lembrava. Pensei que poderia ser até uma cliente, mas não. Tinha os olhos vermelhos e inchados. As lágrimas corriam. Teria 30 anos, no máximo. Pulseiras, correntes e anéis. Burguesia etílica. Conheço um pouco este estilo. Então a moça revelou sua bêbada e chorosa voz, num tom de sentença inapelável.

- Vou dar pra você.

Fiquei sem ter o que dizer a ela que continuou.

- Meu marido tá com outra...descobri hoje. Filho da puta.

E desabou num choro convulsivo. Os garçons se aproximaram para quem sabe me livrar da doida, mas algo me fez querer que ela não se fosse e depois de um gesto vago em direção a eles para que não fizessem caso, convidei-a para sentar e lhe ofereci algo para beber.

- Descobri hoje de tarde. Como é que ele pôde? Com a Tânia?
Logo com ela, meu Deus? Mas não vai ficar assim. Acabei de dizer pra ele que iria trepar com o primeiro que encontrasse ... e você foi o primeiro. Então é você.

Continuei em silêncio, sem saber o que fazer. Ela exalava álcool e cigarro por todos os poros, estava num estado mental deplorável, mas eu podia notar que era uma mulher estupenda em suas formas e a cabeleira longa e densa foi o que mais me encantou, a forma daquele cabelo grosso, castanho, suave. Tive vontade de enfiar meus dedos naquelas fartas madeixas mas não havia bebido o suficiente para também ter coragem para selvagerias.

- Vai me comer ou não? Se não vai, fala logo. Vou embora.

Devo lhe dizer que nunca fui covarde. Nunca me aproximei das loucas, das insanas. Nunca me aproveitei das drogadas nem das chucas, mas talvez a porra da vida se aproximando da reta final tivesse me transformado num serzinho abjeto naquele exato momento de tamanha oferta e acho que pensei que não teria outra oportunidade de estar em uma cama com uma mulher de beleza tão generosa e foi quase um ato impensado que me fez responder num tom baixo e vil, para não ser ouvido pelas poucas pessoas que estavam ali por perto:

- Vou sim. Vou pedir a conta.

Naquele momento fiquei tenso, não lembro ao certo da sequência dos fatos, mas recordo de não ter esperado pelo troco pois os garçons já me irritavam com suas fisionomias de deboche e quando cruzamos com ansiedade a avenida, era como se eu estivesse atravessando uma fronteira e pudesse ser alvejado por uma bala a qualquer instante. Então entramos em silêncio no meu carro e em silêncio tomamos o rumo de minha casa e lhe conto que naquela noite não deixei pedra sobre pedra, lhe relato que naquela deslumbrante e incandescente  noite comi e recomi aquela estranha tanto, mas tanto, que sua expressão de desespero foi pouco a pouco se transformando na mais doce serenidade e seu cheiro de cavernas defumadas foi dando lugar a um aroma de amêndoas e mel e algumas horas depois, quando ela exausta adormeceu profundamente não tive dúvidas de ir buscar meu material no estúdio e usei carvão e usei óleo e a fotografei e a esbocei e a pintei e lhe dei comida quando despertou, e nos banhamos, e voltamos a foder e mergulhei insanamente num transe que deformava tempo e espaço com esta mulher que me tirou a paz que eu ingenuamente pensava ter, esta mulher de carnes tão duras e fartas e de hálito de leite fresco e glacial, esta mulher que resolveu ir-se dois dias depois, tão diferente que ficou daquela criatura que conheci, esta mulher que se foi sorridente pelas ruas de uma Gávea ensolarada, se foi... deixando um buraco bem aqui, no meio do meu estômago.

Ela não largou do marido rico. Sente por ele um tipo de amor que ninguém pode condenar e além disso os dois tem um filho pequeno. Mas me encontra uma vez por semana "para se vingar mais um pouquinho", como ela gosta de dizer. Minha casa agora tem mais de 50 telas onde ela está retratada. Vou até fazer uma exposição no centro da cidade, você acredita? Em minha sala, por onde todas as quintas ela caminha de pés descalços, pendurei também sua carteira de identidade em tamanho gigante. Ao lado da minha. Assim ela também não se perde tanto, pois ali ela pode ver sua foto e ali também está seu nome. Anita Vieira de Castro. Tem nome de rua, você não acha? Muitas vezes tenho cantado este nome como um mantra, enquanto trabalho, e é nesse momento que penso que Anita é bem mais do que música. E é mais do que livro também, ou verso ou cinema... Anita é tela... Anita é pintura.

FC-SETEMBRO-15-pOa


NO BOTECO

- O Temer?
- É.
- O que acho dele? ...
- Isto.
- Torço todos os dias pra que aquela linda, a mulher dele, esteja dando pra outro.
- É? Por que?
- Traíra.
- Entendi. Mas esse outro era tu, né?
- Eu não!
- Por que não?
- Já viu aquele cara? Aquele botox moderado?
- Que que tem?
- Parece figura do Tarantino.
- Malvado?
- Muito. Somem com teu corpo. Nunca mais te encontram.
- Hm.
- Mais seguro que outro coma.
- Eu, então.
- Tu comia?
- Comia.
- Putz. Tá louco! Não tem medo?
- Me cago de medo. Mas comia.
- Sério?
- Comia na cama deles. Em nome da democracia.
- Ah, moleque corajoso! Corajoso e democrata. Contigo golpe não se cria. Mas me diz uma coisa.... e a Maria?
- Que Maria?
- A do Rosário? Comia também?
- Claro. Já pensou aquela voz na cama, te irritando?
- Tesão, né? E a Dilma?
- Tenho especial atração pela Dilma. Comia fácil.
- Hum. Deixa ver...e a Erundina?
- Bom...se tivesse clima.
- Caralho.
- Que?
- Te admiro.
- Já sei. Me comia.
- Se tivesse clima...até que...
- Tomanocu.
- Sifudê.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

ORBITAIS 5 - do nascer

Caramba, 
a gente não quer sair da cama quente,
não quer sair do banho fervendo,
e quando o sexo acontece,
a gente não quer parar nunca mais,
não quer deixar daquele ambiente quente e úmido,
pois não é verdade que em outras plagas batizaram o orgasmo de "pequena morte"?,
porque gozar, para o homem é sempre um fim,
mas pra mim,
gozar também é algo como renascer,
então adio,
postergo,
porque a gente não quer ter de nascer de novo,
nascer é muito duro e difícil e todo dia a gente volta a nascer brutalmente, quando desperta pela manhã,
talvez por isso alguém andou dizendo por aí que só atinge a felicidade aquele que morre,
e deve ser exatamente por isto que invado mais e mais as madrugadas, porque adormecer significa que haverá um despertar e despertar é uma alegoria do renascer e tenho pensado que tenho mais medo de nascer do que de morrer,
e Almodóvar sabe muito bem disto,
tanto é que numa cena de um de seus filmes que parecia ser ridícula,
mas está longe de se-la,
apesar de cômica,
o cineasta espanhol retrata um pequenino homem entrando ansiosamente em uma vagina imensa,
tentando desesperadamente voltar, quem sabe seria o "desnacer",
talvez seja este o ponto principal e mais central da reflexão sobre a existência ou talvez a Lispector tenha feito uma frase ainda mais genial e definitiva que diz "Ter nascido me estragou a saúde".


Não sei bem se é isso mesmo,
se é pura bobagem,
talvez aí tenha bastante de bobagem como em tudo que andamos tateando, mas foi assim que me veio e foi assim que com esforço consegui escrever.

sábado, 12 de setembro de 2015

A BEBEL TÁ AFIM DE TI

Foi bem assim que a Fátima falou. Que a Bebel tava afim de mim. Já fiquei nervoso, do melhor nervosismo que alguém pode sentir. Mas já estava desconfiado também. Dias antes, a Fátima me colocou de costas coladas com a Bebel. Depois de verificar o que queria, revelou empolgada:

- Viu só? Eu não disse?

Pesquei alguma coisa ali. Certamente Bebel queria saber se eu era mais alto que ela. Isto era importante. Ser mais alto, nem que fosse um milímetro. Eu tinha dois amigos. O Ronaldo e o Celso. Os dois tinham 1.83 de altura. Eu tinha 15 anos e lembro que cheguei a pensar, por algum momento, que com o passar do tempo eu também teria os meus 1,83, mas infelizmente me mantive anão. Bueno...pelo menos era mais alto que a Bebel, que tinha cabelos longos, pele e olhos claros. Bonita e meiga. Tão quietinha a Bebel...

Esta medição que me refiro foi feita num jogo de vôlei. Nunca joguei vôlei. Eu achava que vôlei era coisa de bichinha, assim como também achava que basquete era coisa de moscão. Eu era do futebol e fazia uma pequena concessão algumas vezes pra jogar um tenisinho. Mas tava ali, jogando vôlei naquela tarde só por causa das gurias, entende? Pelas gurias, tudo. É claro. Então, tinha surgido aquela novidade, e eu teria de pedir a Bebel em namoro.

No sábado teve uma festinha no bairro e lá estava eu, calça boca de sino de tergal bege, que é a cor preferida da minha mãe que costurou a calça. Carteira de identidade numa meia, dinheirinho na outra. Era careta calça com bolso. Não se usava de jeito nenhum! Meu pai ficava puto com esta moda.

A Bebel tava lá, toda linda, na festa que tava animada, no meio das pessoas e eu sem coragem. A mão suava. Fiquei remanchando um tempo, escolhendo as palavras que seriam ditas. Até que chegou um momento que pensei que era hora, que eu não podia ser tão perna de rato. Então fui lá e falei com voz trêmula pra menina que queria falar com ela.

Por aqueles dias eu tinha lido Love Story e tinha uma cena em que a mocinha pegava o mocinho pela manga do casaco e acho que esta cena se tornou emblemática e logo resolvi utilizar o mesmo expediente. Peguei a Bebel pela manga e a levei prum canto mais escondido pra me declarar. Depois o Dido veio me dizer.

- Pô, cara. Parecia que tu tava levando ela presa.

Mas voltando, pedi em namoro, ela aceitou e nos beijamos. Meu primeiro beijo foi meio babado mas rapidamente eu já estava dominando a técnica da baba perfeita. Como é bom, né?

No dia seguinte, no clube do qual era sócio, tinha o Barrico. O Barrico era a boate da gurizadinha e funcionava das 4 da tarde às 8 da noite. Pois bem. Bebel e eu entramos na boatezinha e nos beijamos durante 4 horas sem parar. Saímos de lá exaustos e com as bocas vermelhas. O Dido depois veio me dizer.

-Cara! Quando tu saiu lá de dentro, tu parecia um velho!

Lembro que fiquei cansadão realmente. E o Ronaldo veio me criticar.

- Porra, cara! Conversa um pouco. Não beija tanto.

Não dei muita bola. Eu lembro um pouco deste começo, mas não lembro nada como terminou o namoro. Acho que não durou nem uma semana. Talvez porque a gente não tivesse assunto. Era uma preocupação que me afligia. Beijar eu achava fácil. Mas e o assunto? Que que eu vou falar com esta guria? Éramos mais caipiras nestas priscas eras.

De vez em quando lembro da Bebel e do meu primeiro beijo e acho que sempre vou pensar que este é o melhor e um dos mais importantes assuntos.

Nunca deixarei de me sentir profundamente agradecido, maravilhado e assombrado quando uma mulher me escolhe pra beijar sua boca. E sinto isto de verdade. Não é pra ser fofo ou own, que tá na moda falar.

É uma coisa minha... certamente coisa de caipira.

FC-SETEMBRO-15-pOa

domingo, 6 de setembro de 2015

IMPOSSIBILIDADES DE UMA AMEBA

Eu sou um protozoário. Os pequenos serviços, não sei fazer nada. É raro acontecer de eu ter sucesso nestas mini empreitadas. Quando isto acontece, me sinto muito bem.

Mas tem coisas dificilíssimas de se fazer. Não sei por que cargas d’água, sempre que vou desparafusar qualquer coisa, um dos parafusos está travado. É uma sina. Quando forço um pouco mais com a chave, danifico a fenda, e acabo tornando a tarefa impossível. Não sai nem por uma caralha. ...Diz que tem cara que consegue tirar um parafuso nesta condição. Mas como é que pode? É muita sabedoria.

Uma vez, minha avó me mandou lixar umas cadeiras de ferro.

Eram brancas e ela queria pintar de preto. Se eu tivesse resolvido levar a cabo a tarefa, estaria lixando até hoje. Não saia nadinha daquela tinta branca. Cosa de loco.

Uma vez a mãe da Júlia, que agora tem 11 anos, me mandou descascar uma abóbora pra fazer sopa pra ela. Uma destas abóboras verdes, que não são tão grandes. Depois de meia hora de extenuante luta, eu tinha conseguido tirar uma casquinha de uns 5 centímetros apenas. A abóbora tava toda cavocada. Eu ia levar mais uns dois ou três dias pra descascar toda. Nunca tente descascar uma abóbora verde. É impossível.

O serviço mais tapeado que já fiz? Faz tempo. Tive de lavar uma calça jeans a mão. Fazia temperatura negativa. A calça foi ficando dura. Parecia um pesadelo passar sabão naquele troço congelado. Ao mesmo tempo que tentava lavar, caia na gargalhada ao observar minhas imensas impossibilidades. Pendurei aquele picolé de calça de qualquer jeito, meio suja mesmo, e fui tomar vinho.

Tenho inveja destes caras que tem uma caixa de ferramentas e uma furadeira. Homem que é homem de verdade possui uma furadeira Bosch. Sou uma ameba. Foi só dia desses que aprendi a fazer café e a colocar roupa na máquina de lavar e descobri com tristeza que a máquina não coloca a roupa na corda.

DEPOIS DO BANHO

Estava eu em frente ao espelho, penteando meus parcos cabelos depois do banho, completamente arrepiado de emoção, pois da sala a TV mandava Chico Buarque pela casa toda e claro que não era nenhuma destas emissoras que diariamente nos traem quando nos oferecem seu lixo e suas mentiras, e o bem estar da boa temperatura do banheiro me fez lembrar de uma entrevista com Ricardo Darin que disse sentir-se constantemente agradecido por ter a sorte de poder tomar dois banhos quentes por dia e tenho me sentido assim por também possuir o que considero um modesto oásis no meio de tanta tristeza e caos que vai se aprofundando desde a cidade onde vivo até outros lados do mundo e lembrei também de que certa feita a minha querida Vika me convidou pra assistir ao Senhor Buarque no Canecão e eu andava duro e ela pagou e tudo e eu pensei que ia ser apenas bacana, mas acabei chorando que nem criança uma boa parte do concerto, pois aquilo era demais de lindo e a casa cheia de gente de tudo que era idade, todo mundo emocionado com a entrega daquele gênio bonito, porque o Chico ao vivo me pareceu impressionante, ele estava vibrando, ele estava dando o máximo como artista como sempre deu compondo, gigante planetário, sempre fez uma arte de ponta, criativa, nova, nos dando referência, educando nossa estética e assim também nossa ética, e na frente do espelho, pensando nisso, me deu pena que exista uma gente que não lava a boca com sabão pra falar dele, uma gente que por suas ideias tacanhas e pequenas, e mais do que tudo por ignorar e querer ignorar, o que é muitíssimo pior, resolve não ser Chico e prefere ser Lobão, ora vejam, uma gente feia e endinheirada que vai pras ruas pedir o que mesmo? uma gente fascista, homofóbica, racista, uma gente feita de ódio e pobre de argumentos, uns ninguéns, uns destituídos com os quais ainda não consegui descobrir qual o fio de comunicação para lhes fazer entender que estão equivocados, que o mundo vai se tornando mais e mais uma praia onde chegam crianças mortas, porque o egoísmo fez seu reinado no planeta e 1 por cento da humanidade possui a metade dos bens do mundo, e mesmo assim não estão contentes, ainda querem mais, querem tudo pois cada vez mais vai sendo instituída uma permissão para se ser perverso e como é que vamos fazer isto? como poderemos melhorar a capacidade destas pessoas para que reflitam um pouco mais? para tentarmos mudar o rumo terrível que as coisas estão tomando, antes que nossa jornada se transforme numa tragédia ainda mais generalizada e definitivamente irrecuperável?

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

POR ONDE ANDAM TEUS PÉS



POR ONDE ANDAM TEUS PÉS?

Facebookianos e eu fizemos a sétima canção da IDEIA COMPARTILHADA. Maria Nilma sugeriu POR ONDE ANDAM TEUS PÉS e Julio Kling mandou uma frase que tinha a palavra MARFIM e a partir daí decidi que a letra iria por um caminho ecológico.

É estranho fazer uma canção com este teor. 


Acho que no Brasil quase não existem canções que falem em ecologia. Tô certo?

Me diverti um pouco utilizando o gigante Marvin Gaye como referência e a intro tem a melodia de What's going on.

Na década de 80 vivi na Espanha e lembro de uma tarde em que estava sentado na mesa da sala, na calle Enrique Trompeta, no bairro operário de Legazpi, em Madrid, quando ouvi a notícia de que o artista tinha sido assassinado por seu pai. Acho que isso foi em 85 ou 86. Foi assassinado por ser gay.


Nesta época, a Espanha vivia sua nova democracia. 


Havia o otimismo de um socialismo que funcionava muito bem. 

O presidente do governo, Felipe Gonzalez era muito respeitado. Madrid tinha um prefeito fantástico, Tierno Galvan. 

Um velhinho, que certa feita entrou num grande concerto de rock, chegou no microfone e perguntou pra massa; "Están todos colocados?" Ele queria saber se estavam todos chapados. A posse de uma pequena quantidade de haxixe tinha sido permitida no país e Tierno era moderninho. Era amado na cidade.

E tinha o rei também, que a gente gostava muito. Juan Carlos tinha peitado os militares em 81 quando os babacas fascistas tentaram dar novamente um golpe de direita. Então éramos fans do cara.

Pois é. Mas olha só. Vários anos depois Juan Carlos andou por aqui pelas Américas e mandou o Chavez calar a boca numa destas reuniões de cúpula ou algo assim. 


Até aí tudo bem. 

O brabo foi saber que poucos meses depois o rei de Espanha foi encontrado na África matando elefantes. 

É mole? 

Uma coisa destas deixa a gente perdido, pensando que a humanidade tá uma merda e não tem jeito mesmo.

E ainda tem este dentista americano que entra na África pra matar o animal mais lindo que existe. Um cara destes não tem mãe ou filhos? E estas pessoas que o rodeiam vêem as fotos de sua ignóbil caçada e o aclamam? Não se entristecem nem o censuram? Não? Mas que tipo de gente é essa?


Bueno. Acho que a canção ficou biita. Participaram Maria Nilma, Julio Kling, Aline Julio e Vânia Mallmann. Aqui vai a letra também.

POR ONDE ANDAM TEUS PÉS

Por onde andam teus pés? 
Teus sapatos estão sujos de sangue. 
O sangue da seiva do mundo 
O licor da vida. 
Por onde andam teus pés? 

Como pode um homem 
que diz ter um deus 
olhar nos olhos de seus filhos 
logo após covardemente alvejar 
o mais glorioso rei 
Por onde andam teus pés? 

Em Pequim um jovem joga flores aos céus 
E espera por sinais 
Por onde andam teus pés? 

Por onde andam teus pés? 
Por praças de touros, safaris, arenas 
Teus anéis de marfim tem o preço da dor 
por onde andam teus pés? 

Como pode um rei 
e  agora vos falo de um rei dos homens 
calar a preciosa vida do planeta 
e posar tão sorridente 
ao lado de tão ignóbeis troféus 
por onde andam teus pés? 

Em Paris uma menina, fim de tarde, na janela espera por sinais 
Por onde andam teus pés? 

Virá, 
de um futuro virá 
uma estrela pra nos guiar 
avatar, avatar 
Virá, 
de um futuro virá 
uma estrela pra nos salvar 

Como pode a geleira de alguns corações 
compartilhar venenos e desertos 
suas vozes nos banquetes abafam outras tantas vozes 
que clamam do além mar 
Por onde andam teus pés? 

Em São Paulo um velho homem liga seu radinho 
à espera de sinais 
por onde andam teus pés? 

Virá, 
de um futuro virá 
uma estrela pra nos guiar 
avatar, avatar 
Virá 
de um futuro virá 
uma estrela pra nos salvar


https://www.youtube.com/watch?v=FtlpOAA-skI