quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

o eixo da terra

O eixo da terra nestes últimos anos tem sofrido suas mais bruscas mudanças.

Este fenómeno tem afetado sobremaneira a ordem natural do planeta.

Já há relatos de camelos que se tornaram tão peidorreiros que seus donos tiveram de abandona-los nos desertos mais recônditos do Saara.

Conta-se que no interior do Uruguai uma onda de gafanhotos comeu um trator inteiro. Não sobraram nem os pneus.

Aqui em casa também é notória a mudança de atitude das lagartixas. Sempre tão ágeis, sempre com aquele olhar atento de gerente de almoxarifado e agora parecem caricaturas do que eram. Desatentas que andam, parecem dopadas ou então estão sofrendo algum tipo de depressão.

Quem se regozija com tal condição são as baratas, que passeiam calmamente pela casa com suas bolsas à tiracolo e se pode dizer que nunca estiveram tão gordas as baratas daqui, pois quando ocorre a chinelada certeira, percebe-se com clareza o quão crocantes estão as queridas.

Fiz este relato à guisa de informação apenas e não me passa pela cabeça de forma alguma espalhar o pânico entre os nobres condôminos, mas devo dizer que já não se encontra em profusão pela casa as metades de barata como em anos anteriores.

Já se sabe que a lagartixa janta apenas a metade da barata e foi deste hábito que surgiu a conhecida expressão:

LAGARTIXA QUE SE PREZA NÃO COME BUNDA DE BARATA.

Bueno.
Sem mais...
Desde já agradeço a prestimosa atenção.
Bjus e abraçus.

POTES

          Já lavei toda louça, limpei o fogão e deixei para o fim a tarefa mais delicada. Retirar a comida da panela e depositá-la no pote. Mas não vá pensar que é a lavagem da panela que me assusta. Nada disso. O que me assombra de verdade é o fenômeno comida ao pote. Já cumpri o primeiro estágio. Encontrei um pote adequado. Neste momento, o pote está à minha frente com a comida dentro. Fiz o transporte de forma correta e quase não sujei o entorno. Isto já é algo de se agradecer com mediano fervor. Então agora estou sentado à mesa, calibrando o espírito, terminando meu café, enquanto tomo fôlego para encetar a finalização da tarefa que é voltar ao sinistro armário e encontrar a tampa exata. Só assim o pote poderá chegar a seu destino nos confins da geladeira e só assim poderei deixar a cozinha na ponta dos pés e caminhar pela casa com a alma levinha, prêmio que só recebe aquele que executa tal tarefa com sucesso e precisão. 


          Tomo o café sem pressa. Se fumasse, certamente estaria com um cigarro na boca, aplicando-lhe tragadas medonhas, pois me chega a lembrança da noite da última segunda feira em que, desajeitado, resvalei a mão numa das tampas que escorregou sobre outra tampa e sobre outra que desequilibrou uma pilha de potes, potinhos, potões, potíssimos, de vários tamanhos e matizes e a avalanche tomou proporções de catástrofe com a derramada brutal destes utensílios asquerosos, que tem pote que quanto mais você lava, mais parece engraxado e você se exaure sobre ele com esponjas atopetadas de detergente ou com esfregões de aço temperados com sabão de coco e tudo parece inócuo, e dia destes minha mãe me olhou com olhos desconfiados pois eu usava o secador de cabelos num destes potes com detestável tampa azul, imaginando ser um lança chamas, e no fim da atividade, com cuidadosos passos de procissão, carreguei-o até o armário de modo que a vertigem me desse alguma trégua, mas volto ao assunto e sigo contando daquela noite de segunda que vos falava antes, noite em que os potes esparramaram-se pela casa, ganhando pátio e muro e por fim invadindo a sala do vizinho que assistia ao seu noticioso, Seu Heraldo, que embraveceu de tal forma que gritou mais alto do que nunca, gritou que aquilo não podia acontecer, potes de variados tipos adentrando assim desse jeito pelo tapete de sua sala, importunando-lhe justo no momento em que as manchetes tão excitantes sobre crimes e acidentes horripilantes eram locutadas pelo homem da TV tão distinto com seu topete exato e tom de voz metálico de um cinza chumbo, chumbo de balas perdidas que cruzam incessantes a cidade dos ninguéns e Seu Heraldo, possuído pelo ódio que provem de diversas fontes não hesitou em chutar potes e repotes para todas as direções a tal ponto de deixar nestes as marcas de seus sapatos perversos e novamente eu de esponja na mão e bombril e o resto é o resto que já se sabe e já se sabe um bom tanto.

          Então estou aqui, terminando meu café, regulando a respiração para tomar o rumo do armário e sei que ao me aproximar vou sentir novamente a vibração surda que vem de seu interior, um coração que bate sem pressa, com escárnio, e sei também que em cada pulsação há um aviso para que eu tenha imenso cuidado com o castelo de cartas que engenhosamente ali está edificado, um aviso para que minha mão não vacile e não trema, um claro recado para que eu não esqueça daquele antigo jogo de varetas onde o mais leve movimento em falso sempre podia ser fatal.