Me sinto muito bem em toda e qualquer situação e não tenho dúvida de que esta recompensa me foi dada pelos anos.
Agora, por exemplo, estou na fila de frios do supermercado. Minha mulher ligou e pediu que eu comprasse meio quilo de queijo Minas, o mais barato, mais saudável e mais insosso entre todos os queijos.
Não estava preparado para uma missão como esta, pois me sinto bastante cansado de trabalhar o dia todo, e como se não bastasse, a temperatura deve estar beirando os 40, mas não dá nada. Atenderei de muito boa vontade ao pedido simples que me foi feito.
Agora, tem apenas 5 pessoas à minha frente e o atendimento está sendo feito por 2 homens. Isto significa que vai ser rápido.
Então, aproveito pra relaxar, boto um sorriso nos lábios e observo o movimento das pessoas, bisbilhoto um pouco, espio o que elas compram, se olham preços e mostram alguma expressão de desagrado ou aprovação.
Reparo que um dos atendentes tirou as luvas e saiu do balcão. Isto poderia ser considerado como uma perda, mas sem problema. O rapaz que ficou é ágil. Conhece bem o riscado e vai pesando e etiquetando os pedidos com presteza.
O ar condicionado não anda muito e isso me faz sentir a camisa colando nas costas. Os pés inchados também começam a gritar um pouco lá embaixo mas nada que me abale, ainda mais neste momento em que só tem um gordinho à minha frente e também noto que já há duas pessoas atrás de mim. Quando se está na fila é confortante saber que tem mais gente atrás de você do que na sua frente.
Reparo que o gordinho, que deve ter minha idade, pede a mesma coisa que vou pedir. Meio quilo de Minas. Ele nota que está sendo observado e ao mesmo tempo em que dirige a mim um sorriso levemente pegajoso, pergunta ao atendente se pode provar o queijo. Isso é uma coisa que nunca fiz. Sempre me faltou cara de pau para tanto, mas o gordinho parece simpático e admiro estas pessoas que sabem exatamente o que querem e então fico olhando aquele pedaço de queijo chacoalhar dentro da boca do cara, que parece não ter gostado da prova e aponta para outra marca e o atendente lhe estende outro tiquinho que o gordo coloca na boca com rara destreza e então levanta as sobrancelhas em sinal de aprovação e o rapaz corta um bom naco e o pesa, mas o gordo parece tão animado com a qualidade do produto que resolve levar não mais 500 gramas, e sim 1 quilo, ao que o atendente depois de uma rápida procura sem resultado pelo balcão, revela como única solução a busca no depósito, pois por ali já não havia tal peça, e o homem com um gesto vago consente, que sim, que ele vá logo pois este é um Minas de primeira, e o rapaz, sem qualquer expressão no rosto, sai por uma porta traseira e então o gordo dirige a mim algumas palavras e talvez o assunto seja o calor, ou a qualidade do queijo, não sei bem, não consigo entender ao certo, pois noto com aflição que a fila aumenta rapidamente atrás de mim e sinto que o homem tem uma bafo enjoado, uma mistura de hipoglós com cocô de nenê, uma coisa do outro mundo, mas por sorte ele me esquece e devolve sua atenção ao rapaz que já retorna com uma peça imensa de queijo nas mãos e agora é observar o queijo ser despido de algumas camadas da embalagem plástica e pronto, está feito, mas ouço o homem preguntando se era exatamente aquela marca a que havia provado e aprovado e os dois tecem um diálogo vacilante, com palavras indecifráveis, não sei como conseguem entender-se com tão pouca clareza, e o homem em teatral tom de súplica pergunta se pode provar novamente para ter absoluta certeza e com esta atitude percebo que a fila se rebela e adivinho alguns surdos queixumes de impaciência atrás de mim, mas não me deixo levar, e apesar de sentir uma pressão que começa na nuca, uma micro dor na têmpora e a certeza absoluta de que o ar condicionado pifou de vez, estou leve, estou calmo, acreditando que o homenzinho bafento vai pegar seu queijo e zarpar para qualquer outro canto do universo, mas não, infelizmente ele também quer mortadela, e há duas opções, pistache e pimenta, e o “gordo que sabe o que quer” pede para provar as duas, e apoia o queixo na mão em pose de severa dúvida e vai tirando do bolso da calça um celular e não acredito que este filho de uma égua vai ligar pra casa pra saber qual das mortadelas ele deve levar, a fila atrás de mim, já com umas 10 pessoas vibra como uma cascavel, mas continuo tranquilo, este cara não vai me irritar, e fico admirando a maneira carinhosa com que ele fala ao telefone, certamente com a mulher, talvez até seja a mãe, quem sabe uma senhora idosa e enferma e isto me enternece, o cuidado que ele tem com a velhinha, mas ele encerra a chamada de forma brusca, mandando um beijo na bunda pra quem está do outro lado da linha, e nesse momento pisca o olho pra mim, querendo me tirar pra cúmplice de sei lá que tipo de relação é esta que se manda um beijo na bunda no final da ligação? que bosta, e tudo isto me deixa um pouco tonto e quando volto a mim, ele está pedindo presunto e logo em seguida salaminho, meio quilo de salaminho em fatias bem fininhas é salaminho pra um exército, este gordo filho de uma hiena cagada agora abriu um sorriso largo em direção às azeitonas, azeitonas com caroço, sem caroço, recheadas, ele diz ser amante das azeitonas e quer dos 3 tipos, e claro que vai provar, este imbecil, este filho de uma camela histérica, a fila já tem 20 pessoas com fisionomias assassinas e esse hipoglós bundão tá jantando bem na nossa frente, e ele não para por aí, este filho de uma jumenta, ele agora quer nata, e vai dois potes, e creme de leite, e doce de leite e acredita que tá voltando pros queijos este canalha? Vai Prato, Muzzarela, Provolone, o cestinho do gordinho cocozíssimo de nenê tá lotado até a boca e ele pede pra provar a Ricota, mas me diz quem é que prova ricota? Ricota é uma merda sem gosto e ele tá fazendo cara de prazer com a ricota na boca, pode isso?, este protozoário fazendo expectativa à frente de todos, de olhos fechados com ricota passeando pelas gengivas? O silêncio se fez agora, um silêncio de hecatombe, a fila não emite ruído algum, apenas se pode sentir uma poderosa vibração de átomos pelo ar e o “homem que sabe o que quer” olha para o atendente e sorrindo agradece, dizendo que nada mais quer, que basta, que não vai levar ricota desta vez e girando sobre os calcanhares passa por mim e pisca novamente, e eu, em resposta, lhe faço uma pequena mesura ao mesmo tempo em que dou-lhe um delicado passapé, para que tropece com estrondo e espalhe seus víveres pelo chão e assim ganho meu tão ansiado lugar no balcão, eu sei que a fila se joga sobre o homem, pois escuto o ruído dos primeiros bofetões e cascudos, mas sujeito o atendente pela gola, impedindo-o de ir em defesa do criminoso filho de uma barata, que agora apanha com toda justiça, então grito a ele que quero aquele pedaço de Minas, é! Aquele pedaço que sobrou, aquele mesmo, rapazinho, isto, pesa! pesa logo! bota o preço! Me dá isso aqui! e possuído pelo assombro, tomado pelos piores sentimentos que um homem possa ter, com minha encomenda debaixo do braço saio célere, passo pela briga, um amontoado indefinido de pessoas possessas e vislumbrando um pedaço da barriga gorda e branca do vermezinho no meio daquela confusão, num ímpeto, consigo belisca-la, e só então me retiro para o conforto merecido do lar, que este energúmeno quase me tira do sério, quase acaba com minha serenidade.
Fernando Corona – Dezembro 14 - pOa