quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

A FILA

A maturidade me deixou sereno. Tenho andado mais tranquilo do que água de poço, como dizem no sul.

Me sinto muito bem em toda e qualquer situação e não tenho dúvida de que esta recompensa me foi dada pelos anos.

Agora, por exemplo, estou na fila de frios do supermercado. Minha mulher ligou e pediu que eu comprasse meio quilo de queijo Minas, o mais barato, mais saudável e mais insosso entre todos os queijos.

Não estava preparado para uma missão como esta, pois me sinto bastante cansado de trabalhar o dia todo, e como se não bastasse, a temperatura deve estar beirando os 40, mas não dá nada. Atenderei de muito boa vontade ao pedido simples que me foi feito.

Agora, tem apenas 5 pessoas à minha frente e o atendimento está sendo feito por 2 homens. Isto significa que vai ser rápido.

Então, aproveito pra relaxar, boto um sorriso nos lábios e observo o movimento das pessoas, bisbilhoto um pouco, espio o que elas compram, se olham preços e mostram alguma expressão de desagrado ou aprovação.

Reparo que um dos atendentes tirou as luvas e saiu do balcão. Isto poderia ser considerado como uma perda, mas sem problema. O rapaz que ficou é ágil. Conhece bem o riscado e vai pesando e etiquetando os pedidos com presteza.

O ar condicionado não anda muito e isso me faz sentir a camisa colando nas costas. Os pés inchados também começam a gritar um pouco lá embaixo mas nada que me abale, ainda mais neste momento em que só tem um gordinho à minha frente e também noto que já há duas pessoas atrás de mim. Quando se está na fila é confortante saber que tem mais gente atrás de você do que na sua frente.

Reparo que o gordinho, que deve ter minha idade, pede a mesma coisa que vou pedir. Meio quilo de Minas. Ele nota que está sendo observado e ao mesmo tempo em que dirige a mim um sorriso levemente pegajoso, pergunta ao atendente se pode provar o queijo. Isso é uma coisa que nunca fiz. Sempre me faltou cara de pau para tanto, mas o gordinho parece simpático e admiro estas pessoas que sabem exatamente o que querem e então fico olhando aquele pedaço de queijo chacoalhar dentro da boca do cara, que parece não ter gostado da prova e aponta para outra marca e o atendente lhe estende outro tiquinho que o gordo coloca na boca com rara destreza e então levanta as sobrancelhas em sinal de aprovação e o rapaz corta um bom naco e o pesa, mas o gordo parece tão animado com a qualidade do produto que resolve levar não mais 500 gramas, e sim 1 quilo, ao que o atendente depois de uma rápida procura  sem resultado pelo balcão, revela como única solução a busca no depósito, pois por ali  já não havia tal peça, e o homem com um gesto vago consente, que sim, que ele vá logo pois este é um Minas de primeira,  e o rapaz, sem qualquer expressão no rosto, sai por uma porta traseira e então o gordo dirige a mim algumas palavras e talvez o assunto seja o calor, ou a qualidade do queijo, não sei bem, não consigo entender ao certo, pois noto com aflição que a fila aumenta rapidamente atrás de mim e sinto que o homem tem uma bafo enjoado, uma mistura de hipoglós com cocô de nenê, uma coisa do outro mundo, mas por sorte ele me esquece e devolve sua atenção ao rapaz que já retorna com uma peça imensa de queijo nas mãos e agora é observar o queijo ser despido de algumas camadas da embalagem plástica e pronto, está feito, mas ouço o homem preguntando se era exatamente aquela marca a que havia provado e aprovado e os dois tecem um diálogo vacilante, com palavras indecifráveis, não sei como conseguem entender-se com tão pouca clareza, e o homem em teatral tom de súplica pergunta se pode provar novamente para ter absoluta certeza e com esta atitude percebo que a fila se rebela e adivinho alguns surdos queixumes de impaciência atrás de mim, mas não me deixo levar, e apesar de sentir uma pressão que começa na nuca, uma micro dor na têmpora e a certeza absoluta de que o ar condicionado pifou de vez, estou leve, estou calmo, acreditando que o homenzinho bafento vai pegar seu queijo e zarpar para qualquer outro canto do universo, mas não, infelizmente ele também quer mortadela, e há duas opções, pistache e pimenta, e o “gordo que sabe o que quer” pede para provar as duas, e apoia o queixo na mão em pose de severa dúvida e vai tirando do bolso da calça um celular e não acredito que este filho de uma égua vai ligar pra casa pra saber qual das mortadelas ele deve levar, a fila atrás de mim, já com umas 10 pessoas vibra como uma cascavel, mas continuo tranquilo, este cara não vai me irritar, e fico admirando a maneira carinhosa com que ele fala ao telefone, certamente com a mulher, talvez até seja a mãe, quem sabe uma senhora idosa e enferma e isto me enternece, o cuidado que ele tem com a velhinha, mas ele encerra a chamada de forma brusca, mandando um beijo na bunda pra quem está do outro lado da linha, e nesse momento pisca o olho pra mim, querendo me tirar pra cúmplice de sei lá que tipo de relação é esta que se manda um beijo na bunda no final da ligação? que bosta, e tudo isto me deixa um pouco tonto e quando volto a mim, ele está pedindo presunto e logo em seguida salaminho, meio quilo de salaminho em fatias bem fininhas é salaminho pra um exército, este gordo filho de uma hiena cagada agora abriu um sorriso largo em direção às azeitonas, azeitonas com caroço, sem caroço, recheadas, ele diz ser amante das azeitonas e quer dos 3 tipos, e claro que vai provar, este imbecil, este filho de uma camela histérica, a fila já tem 20 pessoas com fisionomias assassinas e esse hipoglós bundão tá jantando bem na nossa frente, e ele não para por aí, este filho de uma jumenta, ele agora quer nata, e vai dois potes, e creme de leite, e doce de leite e acredita que tá voltando pros queijos este canalha? Vai Prato, Muzzarela, Provolone, o cestinho do gordinho cocozíssimo de nenê tá lotado até a boca e ele pede pra provar a Ricota, mas me diz quem é que prova ricota? Ricota é uma merda sem gosto e ele tá fazendo cara de prazer com a ricota na boca, pode isso?, este protozoário fazendo expectativa à frente de todos, de olhos fechados com ricota passeando pelas gengivas? O silêncio se fez agora, um silêncio de hecatombe, a fila não emite ruído algum, apenas se pode sentir uma poderosa vibração de átomos pelo ar e o “homem que sabe o que quer” olha para o atendente e sorrindo agradece, dizendo que nada mais quer, que basta, que não vai levar ricota desta vez e girando sobre os calcanhares passa por mim e pisca novamente, e eu, em resposta, lhe faço uma pequena mesura ao mesmo tempo em que dou-lhe um delicado passapé, para que tropece com estrondo e espalhe seus víveres pelo chão e assim ganho meu tão ansiado lugar no balcão, eu sei que a fila se joga sobre o homem, pois escuto o ruído dos primeiros bofetões e cascudos, mas sujeito o atendente pela gola, impedindo-o de ir em defesa do criminoso filho de uma barata, que agora apanha com toda justiça, então grito a ele que quero aquele pedaço de Minas, é! Aquele pedaço que sobrou, aquele mesmo, rapazinho, isto, pesa! pesa logo! bota o preço! Me dá isso aqui! e possuído pelo assombro, tomado pelos piores sentimentos que um homem possa ter, com minha encomenda debaixo do braço saio célere, passo pela briga, um amontoado indefinido de pessoas possessas e vislumbrando um pedaço da barriga gorda e branca do vermezinho no meio daquela confusão, num ímpeto, consigo belisca-la, e só então me retiro para o conforto merecido do lar, que este energúmeno quase me tira do sério, quase acaba com minha serenidade.

Fernando Corona – Dezembro 14 - pOa

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

DEVANEIOS E BABAQUICES

Não sei como, mas o galo conseguiu escapar heroicamente do despacho no qual seria sacrificado e os atendentes do posto de gasolina se comoveram com o fato e resolveram adota-lo. 

Construíram até uma casinha pra ele numa diminuta praça triangular aqui de Petrópolis.

É um galo reluzente, bonito, fortão, que fica ciscando o dia inteiro no gramadinho junto a um sinal, num local onde o trânsito é muito intenso.

Sempre se disse que galináceo é bicho burro, mas nunca ouvi falar de galinha atropelada. Gato e cachorro tão sempre dançando na via, mas a galinha sabe viver tranquilamente à beira da estrada. Nunca é colhida.

Já faz anos que o galo está ali. Dizem que no fim da tarde ele atravessa a rua e vai dormir num matagal que tem ao lado.


Ouvi dizer também que os caras do posto trouxeram uma galinha pra fazer companhia ao bicho e dia destes fui caminhar por ali por perto e vi de longe, na pracinha, as silhuetas do galo e de uns animaizinhos menores, que pareciam caminhar animadamente sobre ele. O valente galinho constituiu família. Não é um final mais do que feliz pra quem ia ter seu pescoço torcido?

Hoje passei pelo local e lembrando da cena da família galinácea, me veio à cabeça o filme de Martin Scorsese de 1988, “ A última tentação de Cristo”.

Fiquei impressionado na época, com o tema que mostrava Jesus na cruz em meio aos delírios daquele martírio todo, imaginando que bom mesmo teria sido ser uma pessoa normal, ter uma profissão, uma família, uma casa. E não sacrificar-se.

Os pensamentos voam, se ligam e logo me vem também um pouco de política. A ideia de que Cristo era na verdade apenas um homem com ideias socialistas e igualitárias e a Globo da época negou esta realidade, e inventando um deus, escreveu um livro grosso que contou a história oficial e de lambuja também criou o negócio mais rentável da humanidade. A Igreja.

Lembrei logo depois disso daquela do Magro do Bonfa que tá no Brique da Redenção olhando uns crucifixos. Se interessa por um e quer saber o preço.

- Quanto custa esse?

- É quinze reais.

- Quinze? E sem o magrão?



Comecei falando sobre galo e acho que devo terminar falando também sobre galo.

Seu Lauro tinha uma fazendinha e criava aves de toda espécie.

Ele gostava muito de sua criação e tinha um papagaio que falava muito.

Seu Lauro queria saber por que os outros animais não falavam como o loro.

Começou a pesquisar. Pegou um garnizé no poleiro e reparou que a plumagem era igual a do loro, assim como os pés também não diferiam do papagaio falante.

Abriu a boca do loro e viu que o loro tinha uma língua pontuda e quando abriu a boca do garnizezinho viu que ali estava a grande diferença.

O galinho também tinha uma língua pontuda, mas havia uma bolinha grudada nesta ponta. Seu Lauro chegou a uma conclusão lógica.

- Mas claro, tchê. É esta bolinha que impede o garnizé de falar.

Foi lá no quarto, pegou a tesourinha da mulher, abriu a boca do bichinho e pronto! Cortou a bolinha atrapalhadora. O garnizé deu uma boa cuspida, olhou bem pro velho e arrematou.

- Obrigado, Seu Lauro!!!



FC dezembro 14

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

ORBITAIS 2

o homem está estirado na cama. tem o controle remoto na mão,

zapeia

zapeia

uma bunda

volta

volta 1 ou volta 2?

a bunda foi-se, sumiu ou talvez nem bunda fosse

zapeia

zapeia

zapeia

hum... uns peitos no decote.

volta.

a modelo da hora posando



sem graça

sem gosto

zapeia

zapeia

para

coxas. coxas grossas.

cena de praia.

comercial.

zapeia

zapeia.zapeia

zapeia. zapeia. zapeia.

zapeia. zapeia. zapeia. zapeia.

zapeia. zapeia. zapeia. zapeia. zapeia.

zapeia. zapeia. zapeia.zapeia.zapeia.zapeia.

zapeia. zapeia. zapeia. zapeia. zapeia.

zapeia. zapeia. zapeia. zapeia.

zapeia. zapeia. zapeia.

zapeia. zapeia.

zapeia...

a mulher está ao lado e lê.

está de costas para ele e ele aprecia a pele fresca que ela apresenta depois dos cremes. a mistura do cheiro dela com o cheiro dos lençóis recém trocados é convidativa. será que ela quer? talvez ela faça, mesmo sem querer, nunca há de se saber. então as mãos do homem deixam de lado o controle e começam a trabalhar com calma o corpo da mulher. pode ser que desta forma, alguma faísca acenda a magia. ela parece gostar do toque. se mostra receptiva, responde e se entrega sem palavras. a função dura cerca de dez minutos ou pouco mais que isso. os dois experimentam o mesmo orgasmo e flutuam nele por breves instantes. quando as estrelas se dissipam, o par mantém o silêncio e o homem sente que nesse momento, em meio a este vácuo, poderia compor uma sinfonia, se músico fosse, ou poderia escrever uma grande obra ou projetar uma ponte ou quem sabe seria boa ideia levantar da cama, andar nu pelo apartamento, caminhar lentamente de olhos fechados e respirar estes ares de verão, abrir a geladeira, morder a goiabada e com dedos melados ir até a janela para desintegrar nuvens com rajadas de raio laser e isto certamente o faria lembrar de uns bonequinhos brancos que eram esgrimistas, ou lançadores de dardos que pertenciam a um pequeno amigo que agora é historiador conhecido, quem sabe telefonar para ele, e perguntar, se ele, pelo menos, lembra dos atletinhas que ficavam presos a uma base redonda, talvez fossem prêmios de refrigerante ou picolé, ou quem sabe nada disto, e sim que este momento de vácuo do que se chama libido seria precioso para afundar-se em livros e descobrir de uma vez por todas o que foi o tal do Iluminismo de que tanto se fala, a Revolução Francesa, as Grandes Guerras, Freud, Luther King, Martinho Lutero, tudo isto de que ele apenas ouviu falar em  sua eterna e irritante superficialidade, ou quem sabe seria melhor atirar-se corajosamente de cabeça num crediário e comprar passagens para o Japão, ou bem menos do que isto, é uma vergonha ter de confessar que aos cinquenta nunca tenha visitado o complexo de Badej que está aí ao lado, apenas duas horas de carro, e assim os pensamentos flutuam pelo branco das paredes do quarto, nestes instantes em que hormônios se reorganizam e este vazio deixa espaço para que novos sóis e coloridos pedaços de lua cintilem em variadas órbitas, assim como brisas que invadem o quarto e trazem retratos tão antigos e puros, tantos cheiros de amores que se foram, viraram poeira e desapareceram no ar e este último devaneio faz a mão do homem deslizar pelo macio do lençol e esta mão encontra sossego no controle remoto e o dedo indicador automaticamente aciona o seletor e o homem então ergue um pouco a cabeça e

zapeia

zapeia

zapeia

opa. panturrilhas. formidáveis panturrilhas.

Volta 1 ou volta 2?