Estou sentado no sofá de uma ampla sala à qual não reconheço.
Móveis, paredes e ornamentos todos possuem tonalidades de cinza.
É um espaço clean, como diriam as pessoas que são clean.
Estou só e observo tudo a meu redor, tentando achar algum ponto de referência.
Nada.
Me encontro em um ambiente refinado, de extremo bom gosto ao qual nunca vi mais gordo.
Há silêncio no ar, silêncio este que neste exato momento é quebrado pelo ruído de chaves na fechadura e daqui de onde agora estou sentado, vejo o que seria a porta da rua sendo aberta por alguém que não tenho a mínima ideia de quem seja e meu coração dispara quando se revela a silhueta de uma mulher, que depois de fechar a porta com estrondo, me mira com olhos irritados e vocifera cheia de caras e bocas.
- Não dá maishhh pra suportarrr o trânsito deishhhta cidadium. Isso ishhhtá parecendo o Rii, ou São Paulo. Tudo engarrafado.
Reparo que a frase foi pronunciada com um acentuado sotaque de menina do Alto Leblon e no momento em que ela se livra do casacão negro e da gorra de lã, consigo juntar as peças e é aí que meu coração quase sai pela boca, pois descubro que se trata de, nada mais, nada menos, Cecília Malan.
Ela se aproxima e faz menção de me beijar, mas na hora agá, fazendo uma careta, recua e enquanto despe o tailleur também de cor negra, fuzila.
- Caracaishhhh. Você ainda não tomou banho? E esta sua barrrrba eshhhtá horríveum.
Fico ali, estático, assombrado, paralisado, afinal de contas a Cecília Malan despe, na minha frente, também os sapatos e caminha pela casa só de calcinha e soutien. Se queixando de sede, entra na cozinha e logo manda, aos berros.
- Caracaishhh. Você não lavou a louça. Eishhhta pia eishhhtá cheiaum.
Ainda aturdido com a nudez da magnífica figura, reparo que estou de camiseta e se ela chegou da rua com sobretudo e o despiu, é porque o apê tem calefação e pra um gauchinho como eu, que usa blusão dentro de casa, isto tem um imenso valor, e juntando mais um pouco as peças, descubro que estou em Londres e mais do que isto, Cecília e eu somos casados, e claro que também chego à óbvia conclusão de que tudo não passa de um sonho idiota, mas que puta sonho, não é não? e a linda mulher volta da cozinha reclamando que não aguenta mais as pessoas da redação, que são todos uns incompetentes, uns relapsos, que ela não tem liberdade para criar as pautas, que são um grupo de invejosos e enquanto ela vai desenrolando esta catilinária, lembro que alguém havia me comentado que ela possui um quadrilzão e é ali que coloco minha atenção, não é um quadrilzão, é um quintilhão ou um sextilhão, é uma bacia de respeito, uma bacia hidrográfica, é a bacia do mesmo tamanho que tinha a bacia prateada na qual minha vó me dava banho, e já me sinto tomado pela luxúria, e isto me deixa preocupado, pois qualquer tesãozinho que rola no meio de um sonho faz a gente despertar, e nem pensar, quero prolongar ao máximo este devaneio, e vejo seus passos decididos, com pés um tanto grandes, mas gosto igual, em direção aos quartos, e sua voz novamente ecoa pelas paredes do apartamento dizendo que;
- Caralho, Feurrrnaumdu. Você é incapaishhh de colocarrrr suaum tualhaum pra secarrr, Feurrrnaumdu!!! Que Porra é eishhhta?
Sem me mover daquele sofá gris, escuto a porta do banheiro sendo fechada também com violência e penso cá comigo;
Carácoles, nunca imaginei que essa menina falasse palavrão, e olha só o jeito que ela me trata, tá pensando o que?, mas que mala essa mina, não para de reclamar um instante, e quer saber de uma coisa, que se dane, não vou esperar ela sair do banho, não vou comer ninguém não, mas que falta de respeito é essa? Pronto!, tá decidido, vou é sair deste sonho que ganho mais e então abro os olhos e reconheço meu quarto de paredes manchadas e sinto o nariz entupido, é claro, com esta rica umidade que nos devora e na porta do quarto aparece minha mulher sorridente que me recebe com.
- E aí? O bonito dormiu bem? Que vagabundagem, hein?
Sento na cama, pensando “Bueno, é aí que me refiro, o tratamento por estas bandas já é um pouco melhor”. Paro em frente ao espelho e observo a ordinarice de minha barba. Seguido a isso, levanto o braço e sinto que meu sovaco não cheira a nada que esteja vivo e nesse instante escuto a voz impertinente de minha mulher vinda do banheiro.
- Óh! Deixou de novo a toalha molhada em cima da roupa seca. Taquiuspariu. De novo?!
Ouvindo aquilo. varado pela amargura, volto a me deitar. Puxo os cobertores e fecho os olhos dicumforça.
Quem sabe encontro uma zona neutra num sonho bobo destes que a gente corre e não sai do lugar. Quem sabe?
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
terça-feira, 17 de outubro de 2017
O GORDINI
Tinha eu quatro ou cinco anos de idade quando, certa feita, vínhamos da praia no Gordini que meu pai havia recém comprado e fizemos uma parada numa concessionária Willys Overland para, ora vejam só que tão priscas eras, ser instalado um porta luvas no carrinho.
No momento em que estacionávamos em frente ao estabelecimento, passou caminhando por nós um homem que levava nas mãos duas galinhas gordas e minha avó sugeriu que se comprasse uma franga daquelas para ser preparada na janta.
Meu pai ficou furioso com a disparatada ideia e nem pensar que alguém ousasse introduzir um animal daqueles no seu novíssimo e reluzente Gordini.
O Gordini era filho do Dauphine e depois viria a ser o pai do Corcel. Era assim que eu enxergava os laços que uniam os automotores.
Mas retornando...
Enquanto meu pai, dentro da loja, regateava o preço do acessório e sua instalação, lá fora minha avó, mandando às favas a proibição, fazia um bom negócio com o andarilho. Colocou então a penosa dentro de uma caixa de papelão e a depositou sigilosamente sobre o banco de trás, entre ela e eu.
Meia hora depois, estávamos já na estrada, e faltavam poucos quilômetros para chegarmos a Porto Alegre, quando aconteceu o que não devia. A franga resolveu se expressar. Deu uma curta e grossa cacarejada. Meu pai, ouvindo aquilo, começou a sapatear ao volante, se pôs a gritar e a urrar impropérios e como resposta, obteve apenas o silêncio aturdido de minha mãe e minha avó. Foram uns quinze minutos de rezingamentos e acusações aos quatro ventos.
Mais tarde, Dona Maria Bonetti Villeroy torceu o pescoço do pobre animal, depenou-o, deu-lhe tempero, levou-o ao fogo e logo depois à mesa.
Meu pai, apesar de contrafeito, comeu. Comeu e repetiu.
Em total silêncio.
No momento em que estacionávamos em frente ao estabelecimento, passou caminhando por nós um homem que levava nas mãos duas galinhas gordas e minha avó sugeriu que se comprasse uma franga daquelas para ser preparada na janta.
Meu pai ficou furioso com a disparatada ideia e nem pensar que alguém ousasse introduzir um animal daqueles no seu novíssimo e reluzente Gordini.
O Gordini era filho do Dauphine e depois viria a ser o pai do Corcel. Era assim que eu enxergava os laços que uniam os automotores.
Mas retornando...
Enquanto meu pai, dentro da loja, regateava o preço do acessório e sua instalação, lá fora minha avó, mandando às favas a proibição, fazia um bom negócio com o andarilho. Colocou então a penosa dentro de uma caixa de papelão e a depositou sigilosamente sobre o banco de trás, entre ela e eu.
Meia hora depois, estávamos já na estrada, e faltavam poucos quilômetros para chegarmos a Porto Alegre, quando aconteceu o que não devia. A franga resolveu se expressar. Deu uma curta e grossa cacarejada. Meu pai, ouvindo aquilo, começou a sapatear ao volante, se pôs a gritar e a urrar impropérios e como resposta, obteve apenas o silêncio aturdido de minha mãe e minha avó. Foram uns quinze minutos de rezingamentos e acusações aos quatro ventos.
Mais tarde, Dona Maria Bonetti Villeroy torceu o pescoço do pobre animal, depenou-o, deu-lhe tempero, levou-o ao fogo e logo depois à mesa.
Meu pai, apesar de contrafeito, comeu. Comeu e repetiu.
Em total silêncio.
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