Era uma banda grande. Dois brasileiros, um espanhol, um dominicano, um porto-riquenho, um panamenho, um mexicano e um uruguaio. Fomos chamados para acompanhar uma cantora brasileira de duvidosa qualidade. Seu marido era o empresário e este era mais duvidoso ainda.
Estávamos na praia de Gandia, na província de Valência e os shows prometidos tinham caído todos. Apesar disso, fomos alojados em belos apartamentos, com vistas mediterrâneas fantásticas.
Ewerson Vargas e eu já estávamos ilegais e comentamos nossa preocupação com este empresário que levianamente afirmou que silucionaria o problema nos conseguindo os tão sonhados vistos de trabalho. Chamou um cupincha chamado Paco e ordenou que o cara pegasse nossos passaportes pra realizar a tarefa.
Ficamos preocupados, pois além da questão da clandestinidade, nossos passaportes agora estavam na mão de um picareta, mas três dias depois, o cara nos tira da cama às nove da manhã.
Lembro da cena. O cara senta na cabeceira da mesa e Ewerson e eu, sentados um de cada lado, sem camisa e descabelados por uma ressaca monstra, ficamos mirando com ansiedade Paco, com ar solene, enfiar a mão dentro de um envelope.
O cara então retira dali de dentro um passaporte, abre-o, e com fisionomia compungida, se dirige ao Ewerson.
- Mira, Ewerson. A ti no te han dado el visado especial.
Fiquei olhando aquilo e pensei "putz, não quiseram dar o visto pro Ewerson" e então Paco repete a cena de abrir e olhar o passaporte que havia restado e me olhando sem mudar o semblante, me entrega o dito sentenciando.
- Y a ti tanpoco.
Naquele momento não tínhamos o humor necessário para cairmos na gargalhada, mas esta se tornou uma história consagrada.
Vez por outra surge oportunidade de usar a sentença lacradora.
- Y a ti tanpoco.
Bueno.
Acompanhando esta desconfortável mistura entre céu e inferno, um dente do siso tentando nascer sem espaço, há vários dias, estava me deixando a vida impossível.
Numa madrugada de sexta para sábado, acordei a Jannice, pois a dor já atingia o ombro. A boca não fechava por conta da inflamação na gengiva e as lágrimas vinham ao natural com a dor insuportável.
Tiramos Pani, o pianista, da cama e lhe pedi que me levasse até o povoado para tentar achar algum dentista. Não lembro como descobrimos o consultório, mas lembro do colega sair do carro para vomitar um pouco. Na noite anterior tínhamos enchido a cara.
Por sorte encontrei um bom profissional. Naquele tempo, quem necessitava fazer um tratamento dentário ia pra Suécia, pois a Espanha era famosa por dentistas ruins. Era assim também com o aborto. As espanholas iam a Londres. Fazer um aborto na Espanha significava grave risco.
Mas, voltando. O dentista deu uma olhada rápida em minha boca e receitou antibiótico e anti-inflamatório. Este último, em forma de supositório.
Bueno.
Cheguei em casa e fui direto pro banheiro pra estudar a operação. Abri o invólucro. Eu conhecia supositórios fininhos, mas este suposi espanhol era diferente. Era mais curto, talvez tivesse uns três centímetros, e possuía um formato de bala, um tanto gordinho.
Sentei no vaso e a partir daí descobri, com assombro, dois fenômenos da mais alta importância.
Primeiro. O cu não quer que nada entre. Ele oferece tenaz resistência a qualquer tipo de penetração e confesso que quase desisti da empreitada pensando que aquilo era realmente algo totalmente contra a natureza, mas a dor era tamanha que cerrei os olhos e concentrei-me com fervor na abominável atividade e foi aí então que, obstinado, descobri o segundo e formidável fenômeno.
O cu rejeita tudo que lhe é oferecido, mas se o artefato introduzido chegar até sua metade mais uma quarto de milímetro, as forças se invertem, e o cu suga o objeto com fúria avassaladora, e inclusive a força do vácuo traga tudo que estiver ali por perto, como partituras, lápis, borrachas e salgadinhos, tudo isso se dirige atabalhoadamente para a zona de confluência.
Depois de toda esta ventania, perplexo, caminhei com cuidado pelo apartamento, reorganizando pensamentos e pregas.
Impressionante. Em três horas, minha gengiva havia desinchado e a dor diminuído bastante.
Uma semana depois, pegamos o trem e deixei pra lá o trabalho falcatrua. De volta a Madrid, andava pela Gran Via e sentia vertigens. Na bula dizia que era efeito colateral. Além dessas merdas, tive de ouvir a galhofa dos músicos que diziam que eu havia me viciado nos foguetinhos.
Os colegas da infortunada gira, por aqueles dias, foram na casa do empresário tentar cobrar algum dinheiro, mas lograram apenas assistir ao cara, melancolicamente, entrar algemado num carro de polícia.
O dente foi ganhando espaço pouco a pouco e está aqui comigo, passados trinta anos. O cara é gigante e o utilizo para serviços pesados, tal como mastigar costela gorda e matambres em geral.
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