domingo, 7 de julho de 2019

JOÃO

Eu não assisti Jobim, mas vi João.

Foi no Araújo Viana em 96. Lembro que João, em determinado momento, começou a cantar Prenda Minha e a gauchada, bairrista como ela só, resolveu cantar junto. Não sabiam que aquilo era arriscado e o cara podia até levantar e ir embora. Quando João terminou a canção, fez uma ironia qualquer. Estava irritado. Disse que esperava um dia poder cantar pra gente Prenda Minha do jeito que ela devia ser cantada. Isto é: Sem coro.

Anos depois, acho que em 2003, numa lavanderia do Rio de Janeiro, lembrei deste fato quando peguei, ao acaso, um jornal e ali havia uma notícia sobre João que dizia que num concerto no Japão, um fã ensandecido deu um grito no meio do Desafinado e o artista ficou puto, interrompeu a tocata e saiu do palco. A galera começou a chamar João de volta, aplaudindo, depois gritando e por fim puseram-se de pé clamando pelo perdão do cantor ao conterrâneo trapalhão e João então voltou e postou-se no meio do palco e a reportagem conta que foram vinte minutos ininterruptos de urros até que o produtor, temeroso de que João tivesse tido um piripaque, pois durante este tempo todo manteve-se completamente imóvel, subiu ao cenário e quando se aproximou, descobriu que João estava apenas chorando. Depois de uma pequena troca de palavras, João voltou a sentar e fez o resto do show.

Dez anos mais tarde, quando tocava com Pery Ribeiro, tive a sorte de participar de uns concertos ao lado de Miele, Menescal, Danilo Caymmi e o assunto, certa noite, foi João.

Menescal comentou que João tinha uma capacidade imensa de convencer as pessoas a fazer suas vontades. João era um convencedor implacável. Menesca contou que o cantor, certa feita, fez um show em Sampa e no dia seguinte, o empresário chamou uma dupla de ajudantes para levar o cachê até o hotel. Diz que João não aceitava cheque. Tinha de ser dinheiro vivo. No meio da tarde, o empresário preocupado que os emissários tardavam a retornar, liga para o hotel e pergunta por eles. A resposta foi de que sim, os rapazes tinham ido até o quarto de João e ali ainda estavam já fazia algum tempo, mas João tinha pedido para que não fossem perturbados, nem mesmo por telefone. O cara desliga o telefone, mas uma hora depois, intrigado com o fato, liga novamente para a recepção, e num tom ameaçador, diz que é urgente falar com os empregados e que passassem logo de uma vez a ligação para o quarto, antes que ele decidisse não trabalhar mais com o hotel. Passados alguns tensos minutos, o empresário escuta com alívio a voz do Montanha do outro lado.

- Alô, chefe.
- Porra, Montanha. Que que tá acontecendo? Tô aqui nervoso com esta demora de vocês, pô?
- Sabe o que é, chefe? Nós pagamos o Seu João tudo bem certinho, mas é que na hora da saída ele nos convidou pra fazer um vocal no Doralice e eu e o Medeiros tamo aqui sentado na cama fazendo a segunda e a terceira voz.

Nunca me assombrei com João, pois cresci ouvindo. Tá amalgamado na minha alma. Li algumas coisas sobre ele pra descobrir que o cara inventou uma forma de cantar e uma maneira de tocar violão. Então, nas madrugadas, quando a gente tá na cozinha batendo um violãozinho, um sambinha ou uma bossa pra não acordar ninguém, a gente agora sabe que isto é João. Li também que o músico era meticuloso e ficava dias repassando a mesma canção até ficar da forma mais exata. Li ainda que no disco AMOROSO, que é um primor, com arranjos de orquestra do maestro americano Claus Ogerman, houve muita briga até se chegar à forma final. Conta-se que João pediu pra retirar quase todas as baterias executadas. João queria mais silêncio. Acho que o mundo de João era o violão e a voz e nada mais além disso. Nada que fugisse do seu controle de exatidão. Violão, voz e o silêncio. Aliás. Caetano lacrou; Melhor que o silêncio, só João.

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