É sábado, é fim de tarde e tenho de caminhar. Tenho de caminhar pra fazer a tal da manutenção, capice? Pra poder atuar e assistir com mais qualidade e por mais tempo.
Muitas vezes juro caminhar todo dia até o último dia. Quem sabe até, se caminhar todo dia, nunca aconteça o último dia.
Nunca cumpro o prometido, mas hoje é um dia em que resolvo caminhar, e vou no ritmo exato para que haja o tal ganho cardíaco, vou na velocidade certa também para não alucinar com excessos de oxigênio, afinal de contas a caminhada sempre gera pensamentos e pensamentos nunca quero deixar de te-los.
É um ruído muito forte que me assusta na avenida. Sigo a trajetória da moto que passa em velocidade demencial e sinto que o primeiro sobressalto me traz a raiva, velha companheira, mas a raiva logo cede seu lugar a outro sentimento, quando torço para que o cara não se estrebuche no chão. Aquele homem de capacete arrisca tudo por uns grãos de adrenalina e esquece completamente que existe alguém por aí que pensa tanto nele e que às vezes até reza.
Entro por uma ruela deserta, ando 50 metros e passo por um guardinha de rua, o qual não consigo ver o rosto. A música muito clara que vem de seu radinho me turva a vista. É alguma canção de Roberto, do disco “Em ritmo de aventura”. A nostalgia, depois de cegar-me por um breve instante, desce a jato, arrepiando a espinha, e movediça, atrapalha meus passos quando se mistura a folhas secas e pequenos redemoinhos. É sim. Parece que vai chover.
Então lembro, e não há nenhuma razão para isto, que tenho de ir ao supermercado comprar uvas. O que acontece é que devoramos todas as uvas. Não vê que é inhaca de pobre? A uva é a única fruta barata deste verão e por isso a comemos com fúria. Agora tenho de comprar mais. Tomara que ainda haja e que continue barata. Andam dizendo por aí, que se faltar água, as frutas vão ficar mais caras do que o ouro.
Caminho as últimas quadras e este último pensamento gris me traz a urgência de beber. Mas não posso. Estou tomando antibióticos. Então vai assim mesmo. Na seca. Eu encaro. Encaro estes novos tempos que vêm se desenhando um tantinho apocalípticos. Sigo caminhando e tento pescar no ar outros devaneios. Quem sabe, junto com eles, virão cores mais vivas.
É sábado, é fim de tarde e os redemoinhos crescem, brincando rente ao chão e isto me faz lembrar do filme "Beleza Americana". Mas não vou falar sobre isto, já que pressinto ter de acelerar o passo. Parece mesmo que vai chover. Os pensamentos então estancam ou se perdem de vez, não sei ao certo. Mas agora já não me angustio. Mais tarde os esculpo pra sempre no branco da máquina de salvar.
Fc – janeiro - 15
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