SETEMBRO - pOa - 16
domingo, 4 de setembro de 2016
O BEIJO COMPRESSA
Tenho uma bola no estômago e uma dor de cabeça que é como se meu time tivesse perdido dez partidas seguidas por dez a zero. Me sinto humilhado. Me sinto indignado. Não sei como será a vida de agora em diante. Compor, tocar, escrever. Tudo isso vai ter de se passar dentro de uma nova paisagem. A paisagem do golpe, da infâmia. A indignação cresce com o correr do tempo. Ela não amaina. Então estou tentando aprender como administrar esta nova configuração. Daí resolvo sair pra quem sabe me embriagar um pouco e me vou em direção ao Odeon, que lá tem boa música, lá estão Jorginho do Trompete e Maurinho, com o qual ainda vou sentar ao lado pra ver se aprendo alguma coisa, e no Odeon bebo um par de chopes, mas estou ansioso demais e resolvo tomar o rumo da Cidade Baixa e quando chego no Marinho fico sabendo que houve manifestação com quebra quebra nas imediações e a noite está fraca por conta disso. De qualquer forma resolvo entrar, e por sorte encontro alguns bons companheiros de copo e assim podemos trocar ideias e lamentos encostados ao balcão. Isso serve pra desanuviar um pouco e há uma cerveja que não é de toda má, uma cerveja que desce fácil, é bom que se diga, e o grupo que está tocando samba é competente e faz bonito, num volume aceitável. Então vou me reconciliando um pouco com a vida, e vou flutuando pelos fantasiosos brilhos que a noite tem até o momento em que me chega a fome avassaladora e tenho tido a mania besta de apreciar Mac Donalds nas madrugadas, e é pra lá que me dirijo, depois de consultar a blitz no celular, pois a corrupção é uma tradição consagrada por estas bandas e eu não poderia deixar de confessar minha parte de culpa nesta geleia toda, e chegando lá, paro em frente ao caixa e peço o Número 1, pois nunca soube fazer outro pedido que não fosse o Número 1, e o atendente é um menino de negritude rara, certamente haitiano ou senegalês e penso em entabular alguma conversa amistosa com ele, mas seu olhar de quem ainda está atento a alguma dor antiga me impede de fazê-lo, me sinto coxinha na frente deste garoto que está a milhares de quilômetros de sua terra, então não o molesto com qualquer pergunta tola, me restrinjo a levar meu duvidoso banquete até alguma mesa pra dar início ao imediato devoramento das batatas que dia destes descobri ser um dos alimentos mais nocivos que existem, pois o azeite certamente foi usado muitas vezes, mas esqueço disto no exato momento em que escuto a meu lado uma menina de uns quinze, falando animadamente ao telefone, contando que "a Aline estava na fila do caixa agora mesmo e pegou alguém, tu acredita? a Aline beijou a boca de um cara desconhecido na fila do Mac" e daí penso que isto sim é que seria o must, isto sim é que seria um verdadeiro bálsamo pra meu espírito machucado e bêbado. Que estupenda fortuna seria encontrar em uma fila qualquer, alguma das milhares de almas gêmeas que possuo, como todo e qualquer ser deste planeta também possui, e se ela se iluminasse com minha presença, reconhecesse meu olhar e se decidisse a dar-me a honra de dividir um beijo, este beijo eu chamaria de beijo band-aid, ou quem sabe beijo aspirina, este providencial beijo eu batizaria de beijo compressa, que viria tão bem pra aliviar esta minha febre que já dura um tanto e sabe-se lá até quando vai, sabe-se lá até quando vai esta febre.
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