sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
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Ânimus vinha descendo a ladeira pensando que não teria muitas horas para dormir e a segunda feira que estava despertando, já começava a cuspir os primeiros carros das moradias e foi na esquina que Ânimus se deteve, pois ali havia uma porta de garagem branquinha, impecável, e por que não?, ainda não havia pessoas na rua, coisa mais simples é abrir a bolsa e tirar o tubo e serão alguns movimentos rápidos, uma breve coreografia e o rapaz de braços longos sentiu o cheiro acre da tinta esvoaçando, isto era o oxigênio que fazia seu coração palpitar e então, mastigando a raiva, de olhos fechados, na ponta dos pés e braços abertos, elegante como um toureiro, caminhando de costas, afastou-se dez pequenos passos, respirou fundo e num repente escancarou os olhos para admirar o resultado final, picho massa, ficou irado, brother, inda mais com uma baita luz que bate nele pra galera toda poder visualizar até na madruga, e vai irar geral, man, vai irar as pessoas que vão criticar a mácula negra feita naquela porta tão recém pintada, uma maldade, uma falta de respeito, dirão e pensarão os passantes, e Ânimus devolveu o tubo à bolsa e desfez o sorriso pois a claridade do dia que se aproximava apontava obrigações e virar a noite sempre lhe trazia uma sensação de que haveria uma segunda vida atropelando uma primeira que nem foi vivida direito, uma vida de solavancos e tropeções e esta merda de sol já vai aparecer, viver deveria ser uma noite interminável onde a gente pudesse pichar até as nuvens pra irritar Deus, que certamente é o que mais merece, e Ânimus se foi ladeira abaixo com estes pensamentos num passo de soldado que tem intimidade com a guerra, porque do jeito que a coisa é, é guerra mesmo e não tem outra palavra.
Exatamente uma hora depois, enquanto Ânimus, o bancário, cabeceava seu sono no ônibus superlotado, aquela porta recém pichada foi abrindo lentamente e o carrinho azul de Cora, a professora, emergiu da casa que ainda cheirava a café e quando o portão se fechou não demorou muito para que ela deixasse o veículo e colocasse as mãos na cintura para observar o presente de Ânimus, os traços vigorosos e expressivos que foram feitos em tão poucos segundos e ela inclinou a cabeça para mudar os ângulos da visão, colocou a mão no queixo e decidiu retornar à casa por uma porta lateral e não tardou a voltar à rua com tintas e pinceis e sem perda de tempo usou gris e vermelho, alguns detalhes apenas, uns poucos contornos escarlates muito vivos e traços cinza chumbo aqui e ali para sublinhar as formas brutas daquela garatuja negra que o pichador havia feito durante um passo de balé e Cora tomou distância para enxergar o resultado e já havia escolares da vizinhança observando com curiosidade aquela atividade rara, tão cedo da manhã e a professora, depois de coçar a cabeça para saber o que a cabeça dizia, voltou a entrar e a sair novamente com aquilo que faltava, o amarelo, apenas alguns respingos de amarelo, um quase ocre, coisa pouca, pequenos sóis e aí então sim, estava concluída a criação que talvez lembrasse um tanto alguma figura nipônica, mas aquilo também era Espanha, o amarelo deu ares de escudo e brasão, assim pensou a professora que abaixou-se com divertida agilidade para desenhar sua assinatura no fundo preto, imitando os caracteres que usava Miró e então ouviu o alarido entusiasmado da gurizada que descia apressada a ladeira em direção ao colégio, que já eram quase oito, viu que estava atrasada, havia de meter-se logo de uma vez em seu carrinho azul e ir-se, pois do outro lado da cidade havia muitos alunos esperando, ávidos pelas cores de Cora.
Foi na quinta de madrugada que Ânimus enxergou de longe a viatura estacionada na ladeira. Pensou que seria melhor entrar por uma rua transversal e assim evitaria passar pelos PMs, mas andava farto deste sentimento cansado, o medo, então decidiu continuar sua marcha com seu passo decidido de oficial e lembrou do picho daquela noite vagabunda e ficou curioso, vamos ver se essa gente limpou ou pintou a porta de novo, mano, que se isso aconteceu não vai dar pra repichar porque os homens tão no bico, meu, e o rapaz foi se aproximando e diminuindo o ritmo pois já podia perceber que havia cores sobre seu desenho e não estava entendendo o que poderia ter acontecido e completamente alheio aos policiais que agora estavam a poucos metros de distância, estancou em frente à garagem de Cora e a raiva companheira de todo o sempre não deu as caras desta vez e sim um assombro que lhe invadiu o corpo deixando as pernas trêmulas com aquela visão e a palavra que seus lábios deixaram escapar uma vez se repetiram mais duas, bonito, bonito, bonito, bro, que coisa essa, mano, que dá assim bem aqui no peito, uma ânsia de gritar e rir e chorar tudo ao mesmo tempo, mano, e Ânimus foi observando os detalhes dos traços enquanto passava a mão pelo metal do portão, como um marceneiro que alisa com carinho a madeira que foi recém trabalhada, e então reparou que havia letras na parte inferior e agachou-se para ler Cora em amarelo no fundo negro e pensou que sim, mano, eu também quero colocar aí a minha firma, tá ligado, eu também sou autor, mas os homens tão aqui bem nas minhas costas me fresteando, brother, já escuto até as vozes, eles vão meter confusão, mas eu coloco a bolsa aqui no meio das pernas e os caras não vão sacar minha intenção, porque tem de ser agora, porra, é só um A e um chapéu em cima, vai levar meio segundo e depois de feito tá feito, bro, e daí me jogo pela viela e mesmo que eles venham com o cambura eu me lanço na praça que tá pertinho, véio, e na praça ninguém me segura, eu sempre fui sombra da noite, e então com cuidado o rapaz tirou o tubo da bolsa e preparou o ataque, Ânimus, neste instante ouviu que as vozes dos militares haviam subido de tom, certamente já se dirigindo a ele que sem mais, ao lado direito de Cora, num átimo, rabiscou seu  e a fuga começou com passos rápidos pela ruela mas o som dos coturnos fez Ânimus desabalar carreira pela ruela escura, eu corro pra caralho, mano, com aquela farda pesada eles não me pegam, eu sou The Flash, porra, e este som, o que é isso? estes locks tão me mandando pipoco, man? tão atirando em mim? mas que gente mais doida e malvada, malvada e sem talento, mandaram bala e erraram todas, descarregaram os berros e nenhuma pegou, man, eu corro pra caralho que sinto o ar gelado na cara, este vento é meu, corro tanto que tô até voando, tão bom voar assim, enxergando tudo que é telhado das casas, porque voando desse jeito vou pichar terraço pra ser visto de avião, vou pichar arranha céu e o caralho, man, tudo que é monumento nas maiores alturas vai ganhar meu desenho e minha firma, voando assim desse jeito, tão leve que tô, man, voando assim eu picho o planeta.
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