Bedeu desceu da Bike e foi o tempo certo de tirar o trompete da mochila e começar a entoar o LULA LÁ. Lídia já estava reportando ao microfone quando ouviu as primeiras notas estridentes do instrumento dourado.
Aquilo andava sendo uma rotina. As matérias em frente ao Planalto agora tinham sempre como fundo esta trilha e Lídia, depois do primeiro sobressalto, enveredou o texto, surpreendendo a equipe, e quase aos berros foi locutando que "músicos um tanto desafinados estão tocando neste momento para o hasteamento da bandeira". Bedeu captou a chacota e como um relâmpago, num andamento brutal, cuspiu Donna Lee, de Charlie Parker e se sabe que quando Charlie está no ar, prótons e elétrons se movimentam e assim as moléculas se desordenam e os mortais sentem imensa dificuldade para pensar, quanto mais entabular alguma frase com sentido. Apesar de atrapalhada, a moça deixou o microfone na segurança das mãos de seu ajudante e se dirigiu a Bedeu a passos largos.
- Pô Bedeu! Me dá uma trégua, porra!
- Que conversa é essa de hasteamento? Tás de fake news?
- Era só um teste, cara. A matéria faço de tarde...mas você me tira do sério...vai tomar no cu, Bedeu.
- Me desculpe, Lídia. Mas tô fazendo minha parte. Tô deixando minha marca pequena pra ver se a gente restitui um pouco de nossa dignidade, mas me fala... gostou do Bird que toquei?
- Nem sei. Nao conseguia ouvir nem meus pensamentos.
- Música boa é assim mesmo. Pra sacudir tudo aquilo que está paralisado.
- Hum.
- Lídia.
- Que?
- Que horas você dá a matéria?
- Não digo.
Lídia sabia que era tarefa impossível esconder-se de Bedeu. Ficou observando o músico que, com cuidado, repunha o trompete na mochila. Reparou no sorriso matreiro que não se desmanchava nunca. Aquela boca sabia tocar e mais que tocar, sabia também beijar e otras cositas mas.
Ele insistiu.
- Que horas?
- Pelas quatorze, seu chato.
- Tá. Nos vemos por esta hora.
- Te cuida com esta bike.
- Pode deixar. Ah...Lídia.
- Fala.
- Você está iluminada hoje.
- Você acha?
- Acho sim.
- Obrigada.
- Este cabelo ficou muito bom.
- Você reparou?
- Reparei. Tás linda.
Os dois sentiram o vácuo que se formou naquele instante. Uma vertigem feito Charlie Parker. Então beijaram um beijo rápido e lambuzado sem fazer caso da equipe curiosa que os observava . Bedeu pedalou dali vigorosamente. Inundado pelo sol estonteante da capital, podia jurar, e não conseguia crer, que estavam nascendo milhares de pequeninas flores naquele imenso gramado tão pisoteado pelo ódio e o desespero. Foi neste momento que o músico desconfiou que por ali também medrava a esperança e este pensamento o fez virar o corpo para poder enxergar Lídia, que apesar da considerável distância, ainda acompanhava sua trajetória e acenava.
Nenhum comentário:
Postar um comentário