segunda-feira, 8 de maio de 2023

DO BEBETO


É no exato momento em que saio da vigília pra mergulhar no sono que caem as fichas da minha existência. Foi este ano, acho, numa tarde em que lutava contra uma sonolência feroz por ter dormido pouco à noite, que vi meu filho, no banheiro, sentado no vaso, falando comigo, com seus sete ou oito anos, fazendo alguma pergunta e colocando a palavra "pai" no fim da frase.

Com muita clareza, a vida estava me mostrando que um bom pedaço da trajetória já se fora, pois meu filho agora tem trinta e seis, e como dizia Millôr, viver é desenhar sem borracha.
Aquilo era a vida me alertando:

"Seu Corona, tente ser um pouco menos idiota. Preste mais atenção à jornada.”

Então tratei de levantar dali com uma dorzinha na alma que doía mas também acariciava, então lembrei de uma canção que fiz e que o refrão ficou assim "queria ser cantor, queria ser Pelé, queria ser guri e começar tudo de novo, eu amaria um pouco mais", mas faz poucos dias,- e este fenômeno só acontece nas tardes, - que já ia embarcando no sono profundo e me apareceu na frente o rosto do Bebeto e a fichona despencou numa avalanche.

Luiz se foi.

Não dá pra acreditar.
Se foi o Luiz Alberto, o cavalo xucro. O mais arteiro entre nós. Bebeto era arteiro. Os demais fazemos artesanato, e até um bom artesanato. Mas o Luiz arriscava.

Acho que foi em 86 que participei do lançamento do disco Pegadas e a partir dali trabalhamos juntos por alguns anos e foi nos aniversários de nossos filhos pequenos que tomamos os maiores porres de nossas vidas. Foi nessa época que compus esta canção que citei no primeiro parágrafo e há um verso que diz;

“Queria ser palavra tchê na boca dos amigos, espocando feito fogos de artifício, celebrando a vida sem cansaço ou dor”.

É uma homenagem ao Luiz, que apesar de ser fronteiriço, utilizava pouco esta expressão sulista, mas quando utilizava vinha sempre com um sorrisão galhofeiro, com aqueles dentões que ele tinha, falando alguma frase em forma de pergunta que terminava com “hein, tchê”?

Pra mim aquilo soava sempre como uma celebração.

Foi nesta época também que compusemos “Mais uma canção” que teve muito talento pra tocar na rádio e ao vivo era bala. “Mais uma canção” também era uma celebração. Na introdução todo mundo percebia que aquilo era um sol

Mais tarde nos afastamos um pouco por causa da política, mas nos últimos tempos havíamos nos aproximado e conversávamos algumas vezes por telefone onde o Bebeto dava notícias sobre sua saúde que estava comprometida.

Um dia, falando com King Jeam, marcamos de ir a São Leo pra ver o amigo. Era uma tarde quente. Chegamos nas casa do Luiz e da Simone e encontramos um Luiz com a alma e o intelecto intactos, apesar do corpo magoado e encontramos uma Simone pintando as paredes da sala e eu pensei que sim, que pintar a casa é um ato de esperança, um ato que vislumbra um bom futuro e a Simone ficou acompanhando uma boa parte da conversa caiando as paredes e King e eu ficamos ali um par de horas e contei ao Bebeto sobre o projeto do qual estou participando sobre o Veríssimo e contei algumas piadas do espetáculo e acabei por contar piadas antigas e cansadas que o Luiz já conhecia mas ele riu como se fossem novas, riu como ri um bom amigo.

Depois chegou a hora de irmos, e King e eu, como duas crianças perdidas, deixamos a casa aos tropeções, o que fez a Simone rir de nossa falta de jeito, Simone riu da nossa falta de intimidade com a dor, e durante aquela visita tratamos de não tocar em nenhum ponto dolorido, covardes que somos, temos tanto medo de chorar, chorar nos assusta e chorar em grupo seria catastrófico e por isso entramos no carro, King e eu e comentamos que seria importante voltar na semana seguinte, até mesmo pra, quem sabe, ajudar Simone em alguma coisa, mas logo deixamos as palavras de lado pois acho que pensamos a mesma coisa, pensamos que aquele momento era realmente o momento de despedida, pensamos que não veríamos mais o Bebeto e o resto do trajeto de volta foi em silêncio, um silêncio entrecortado por frases curtas e sem sentido.

Duas semanas depois despertamos com a notícia de que o Bebeto fora tocar milongas em outros pagos.

Se foi o Luiz. Uma baita referência de caráter, entusiasmo e criatividade artística. Se foi o amigo e colega que vai nos fazer tanta falta.

Se foi o Luiz. A ficha caiu.

Mas ainda estou estonteado.

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