domingo, 8 de novembro de 2015

OS SAPATOS ESQUECIDOS


Nos últimos dias se tornou comum que maus pensamentos me visitem no momento em que abro a porta de casa para tomar o corriqueiro rumo da padaria. Desconfio que isto anda rolando com você também.

Isto certamente está acontecendo devido à notícia que já se espalhou por todas as querências de que na realidade não há e nunca houve efetivo policial à altura para frear a criminalidade que está por aí.

As autoridades fizeram este desfavor à comunidade riograndense. Informaram aos meliantes que eles podem ir pra galera sem medo.

Ontem, depois de vencer o aflitivo pensamento de que alguém pode me apontar uma arma, saí pelas ruas e um outro novo sentimento me tomou. A atmosfera anda muito esquisita. Estamos em novembro, mas as cores do céu, tenho certeza, são de maio. E estes ventos gelados só podem provir dos Alpes Suiços. É cosa de louco.

Estas constatações misturadas vão dando uma sensaçãozinha de final dos tempos. Não é?

Então estava caminhando e tentando digerir estas impressões, quando me deparei com algo que vez por outra acontece, e sempre me assombra.

Ali, no meio do passeio público, numa calçada que não tem muito movimento de passantes, havia um par de sapatos jogado, esquecido. Acho que eram sapatos femininos e estavam em muito bom estado. Eram sapatos quase novos. Como explicar sapatos deixados assim na via?

Então resolvi fotografar, não sem antes dar uma boa olhada ao redor pra me certificar que não havia ladrões malvados querendo confiscar meu precioso smart phone.

Fotografei porque a configuração deles era por demais curiosa e sugestiva e juro que não mexi na cena.

Era como uma pose de Fred Astaire. Como se a pessoa tivesse sido abduzida em algum momento qualquer em que a dança lhe estava proporcionando extrema alegria. Os sapatos deixados seriam uma espécie de assinatura dos extra terrestres.

Este já é um sentimento bastante melhor. Antes, quando via sapatos bons esquecidos na rua, sempre me vinha a ideia de que o dono havia de certa forma desistido. Ou que havia chegado à conclusão de que sua vida tinha chegado num ponto tão ruim que seria melhor começar tudo de novo. Descalçar os sapatos e abandona-los seria a primeira atitude, mesmo que isso viesse a acontecer em praça pública.

Depois que o chapéu saiu de moda, o sapato se tornou a peça mais emblemática da indumentária. Conheço gente que acha que você pode vestir qualquer trapo, mas os sapatos tem de estar bala. Estas pessoas acham que se você calçar um bom sapato, já está bem vestido.

Se você leu estas imprecisas linhas e viu a foto, deve ter notado que há cocô de pássaro num dos pés.

Isto também me fez pensar que talvez esta mulher, a dona dos sapatos, estivesse indo à padaria, assim como eu, e assaltada por esta imensa gama de maus pensamentos, fez algum desesperado pedido aos céus que foi imediatamente atendido, e no momento em que viu que havia se livrado de vez de sua triste condição humana, bateu asas e se foi, não sem antes dar uma boa cagada no símbolo de sua jornada.

Eu já ia dando o "enter", quando ainda me veio o palpite final de que talvez um fantástico beijo a tenha tirado do solo, a tenha feito levitar para logo em seguida ser levada nos braços pelos fios da madrugada, um beijo que a deixou assim, assim, sem palavras, sem lembranças, sem enredo. Um beijo que a fez esquecer dos sapatos e de todo o resto... um beijo daqueles que ri de tudo, que ri até do medo.

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