sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

FINDI

- Ernesto.
- Hum.
- Coisa boa, né? Um sábado de folga, só pra gente descansar...
- Humhum.
- ...pra relaxar, ficar de papo pro ar, conversar...
- Humhum...
- Querido. Você tá muito absorto hoje. Tá aéreo...
- Tô?
- Tá sim. Tá tudo bem?
- Tá. Tudo certinho.
- Então me diz no quê que você tá pensando!
- Eu?
- Não! Eu, Ernesto! Claro que é você. Me diz!
- Digo o que?
- No que você tá pensando?
- Não tô pensando em nada, querida.
- Ninguém não tá pensando em nada, Ernesto! Fala logo, pô.
- Bobagem...pensando nada...pensamentos voláteis...
- Ernesto. Me responde uma coisa. Você me ama?
- Amo.
- Ama mesmo?
- Amo muito.
- Então. Quem ama não tem nada a esconder. Quem ama de verdade divide tudo com o outro. Não é? 
- É. 
- Diz, então !
- Bom...tava pensando neste clima politico pesado que tá atrapalhando o fim do ano das pessoas, esta discórdia que...
- Ahhh! Para, Ernesto! Não vem com essa. Você tava com uma cara de babão cheio de reminiscências.
- Tava?
- Tava sim. Fala de uma vez!
- Na verdade, quer saber?
- Quero
- Eu tava lembrando da primeira vez que a gente transou.
- Sério?
- Seríssimo.
- Não acredito. Tás inventando isso.
- Tô não.
- Tás me enganando. E me responde. Se você tava lembrando da nossa primeira vez, que na época era novidade, é porque você não gosta mais da nossa transa atual!!? Encheu, não é isso?
- Nada. Tô até imaginando que seria uma grande ideia se a gente transasse agora. Vamos?
- Nop.
- Por que nop?
- Não posso. Tenho de fazer as unhas, depois supermercado...
- Bobagem. Isso tudo pode ficar pra depois.
- Pode não. Olha só. Se você não ficar muito pensativo, taciturno desse jeito, amanhã, depois do Fantástico, rola.
- É?
- É.
- Tá bom.
- Marcado. Mas, Ernesto... Vai fazer alguma coisa.
- Como assim?
- Vai ocupar este cérebro. Não fica por aí, pensando besteira.
- Mas que besteira?
- Ora, querido. Você sabe do que tô falando. Besteira...
- Sei não.
- Sabe sim. Óh. Tô vendo pela tua cara, com este risinho cínico.
- Tá vendo o que?
- Te conheço muito bem, Ernesto. Já sei do que tás lembrando, fofo!
- Tô lembrando o que, pô?
- Eu sabia! Tás lembrando daquela sirigaita, Ernesto!
- Que sirigaita, Marília?
- Para de rir, Ernesto! Tás lembrando daquela vadia de novo. To vendo muito bem nessa tua cara safada. Você acaba de estragar meu findi, Ernesto! Este é o teu prazer.
- Bah, Marília! Não dá pra te aguentar com tuas milhares de improváveis conjecturas. Fui.
- Volta aqui, Ernesto. Fala, desgraçado! Tás pensando naquela vaca, né?
-...
- Volta aqui e responde! Ah, não vais vir? Tá bom então. Sabe aquilo que te prometi pra depois do Fantástico? Esquece. Dou prum mendigo, mas não dou pra ti.
- ...
- Volta aqui, Ernesto! Putz. Tão bom que tava o findi e esse merda tem de estragar tudo.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

MAYA

Já fazia algum tempo que eu estava sob a ducha daquele hotel em terras tão longínquas. Era um banho interminável. Não tinha forças para sair da massagem que a variação da torrente me oferecia.

Estava preso às oscilações do jato ora forte, ora fraco, ora forte... estava preso porque talvez aquilo trouxesse as sensações das ondas do mar, este ser generoso que se dá por inteiro. Mas o mar também te compra. E quando te compra, te escraviza. O mar nunca te deixa ir de verdade.

De olhos fechados, naquele banheiro completamente tomado pelo vapor, destituído de qualquer referência espacial, tal qual linhas do horizonte e arestas arquitetônicas, vasculhando memórias e reflexões, buscava alguma ideia para escrever sobre, quando de repente escuto uma voz feminina dizendo qualquer coisa em inglês, que acabei não entendendo, é claro, pois não sou nem um pouco íntimo com o idioma.

Penso então que pode ser alguma camareira, mas a porta havia sido cuidadosamente trancada e esse tom glacial nada tem de humano. Lembra saguões de aeroporto ou gares agitadas. Não há ninguém além de mim na habitação. Disso tenho certeza.

Então tiro a cabeça do raio de ação da forte corrente de água, para que os ouvidos possam perceber qualquer outro sinal estranho e é neste momento que escuto uma outra voz, também feminina, num claríssimo espanhol, dizendo:

“No malgasteis el água”.

Quando isto acontece, é como uma carta de alforria ou a chegada da melhor notícia, a mais esperada. Me apaixono instantaneamente por esse acento centro americano que me aconselha a ter uma pouco mais de responsabilidade ecológica. Diferentemente da frase yankee, esta nova voz está plena de calor.

Cuba? Panamá? Costa Rica, talvez. É uma voz de tonalidade adocicada da flor do tabaco que não foi e jamais será fumado. É compressa fresca para uma febre que vem desde a infância. É azuis e verdes sobrepostos, aquarelados.

No dia seguinte repito o banho e novamente me excedo no tempo. Com o celular na mão e a têmpora latejando, como alguém que furta enquanto a cidade dorme, gravo a mensagem de Maya. Sim. Não tive dúvida de que a dona daquele timbre estonteante também era dona desse nome. Maya.

Quinze dias depois, no escuro de meu quarto, por sobre uma trilha sonora hipnótica, escuto Maya flutuar, e a cada exatos oito compassos, Maya me sugere cuidado com a utilização da água.

Isso tudo pode parecer um tanto insano, mas é algo que tem me acalmado nestes dias tão contaminados pelo medo e pelo ódio. Para que se possa enfrentar um mundo que está tomado pela loucura, há que buscar remédios também demenciais. Não seria este o processo da homeopatia?

Deixando de lado estes raciocínios que parecem tolos e ilógicos, gostaria de contar que ouvir Maya desde minha cama, serve para arrefecer um pouco o tanto de solidão que me toca e ao mesmo tempo, me divirto com o estranho e delicado gosto que me vem à boca, como se fossem pétalas, pétalas destas que se usam em chás.

Nunca provei deste tipo de infusão, mas penso que deva ter este sabor, este exato sabor que agora sinto, quando ouço Maya me sugerindo mais uma vez que não gaste água.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

NÃO CONTESTE BOLSOMINION

Tenho visto algumas pessoas comparando a eleição da besta à do Collor.

Eu acho um imenso engano.

Collor era um político ordinário padrão como tantos outros que estão por aí. Fez muitas promessas e enganou muita gente.

A besta, além de ordinário, é um puta destruidor de tudo que é positivo.

A besta é um medíocre. Um ressentido.

Que foi eleito também por um contingente de ressentidos, como ele, que passaram a ter um certo protagonismo nas redes sociais e se agruparam para ter coragem de bradar suas insanidades. A grande sacada foi encontrar um representante que avalizasse sua idiotia.

O fenômeno da besta é algo muito novo, que nem os estudiosos conseguiram explicar direito ainda.

Trump, ingleses fora do mercado comum e a besta são filhotes da mentira criada por técnicos que ganham muita grana pra ferrar a humanidade. Seu público alvo é composto de magoados. Cultuadores do ódio que compartilham mentiras, mesmo sabendo que se tratam de mentiras. Dia destes, nas páginas da extrema direita, vi pessoas gritando que "criar e propagar fake news é um direito democrático. Acredita quem quer".

Isto tudo é uma grande vingança.

Mas não é uma vingança contra o PT ou contra a corrupção do PT. Até o antipetismo é, de certa forma,  uma mentira e a gente já sabe que até mesmo os eleitores da besta não acreditam que ele seja honesto.

A vingança é contra a luz do pensamento.

É uma vingança contra as ideias. Contra os criadores, contra a cultura. É uma vingança dos ressentidos contra a esperança, contra a beleza.

Eles querem destruir tudo. Eles se identificam com as ruínas. Se sentirão confortáveis num mundo vazio de música nova, um mundo sem pensadores, um mundo oco de reflexões e questionamentos. Desejam um mundo de águas rasas onde tudo e todos sejam rasos.

Eles têm um arsenal de memes que utilizam para combater argumentos. É só o que eles têm. Memes com kkk no final. Não formulam nada.

Nunca tente trocar uma ideia com algum adorador da besta.

Você vai ficar chateado e ele vai exultar, porque o lance dele é destruir.

Já faz tempo que não refuto nada desta gente. E fujo de ler o que escrevem. Não divido mais pedaços da minha vida com estas pessoas.

Não conteste os bolsominions. Eles se alimentam da tua energia. Eles sobrevivem do teu sofrimento.

Deixe eles entre eles.

Eles vão se dissolver aos poucos.

sábado, 8 de dezembro de 2018

DJAVAN

Programa muito bom na TV com o Djavan.

Me lembrou de quando recém havia chegado ao Rio de Janeiro e numa noite, no momento em que entrei no Rival, Djavan estava no palco acompanhado por um músico apenas. Acho que era o lançamento do Songbook de João Bosco e a canção era lenta. Fui pro fundo do teatro e fiquei de pé, observando a performance. Pensei.

Putz. É como se fosse um anjo cantando.

Conheci um carioca chamado Jaburu, que além de ser um grande compositor, tinha uma inteligência daquelas que tornava importante fazer-se silêncio pra ouvir o que ele tinha a dizer sobre música. Jaburu, certa feita, num boteco, sentenciou que nunca se deve imitar Djavan cantando porque é algo que a gente vicia e nunca mais deixa. Tem muita beleza em sua forma de cantar.

Verdade verdadeira.

Aqui pelo sul Djavan não chegava. Muito melancólico, era o que se falava por estas bandas.

Os publicitários odiavam. Por esta melancolia, Djavan não seria referência pra nada em propaganda, mesmo que se diga por aí que melancolia nada mais é do que a felicidade de estar triste. Eu curto muito uma melancoliazinha, mas sei que melancolia não vende jeans e muito menos detergente.

Mas num belo dia, Djavan fez uma canção e introduziu nela a seguinte frase; “Te devoraria como a Leonardo de Caprio”.

E os astros fizeram seu trabalho.

“Titanic” foi lançado na mesma época e jogou Leonardo às nuvens. A canção de Djavan pegou carona neste trem. Esta é uma teoria minha e só minha.

O que sei é que a partir deste momento ”Te devoro” passou a ser a música mais tocada na noite porto alegrense e lembro que foi surpreendente entrar na casa de um amigo e ouvir as melancolias alagoanas de Djavan. Sua filha, que estava com quinze, havia comprado o CD.

Nessa época era Djavan por todo canto que chegou a encher.

Um tempo depois ele fez um show no Araújo Viana lotado e nas primeiras filas só menininhas de quinze anos. Apaixonadas pelo cara.

Djavan, numa entrevista, disse que sua carreira tinha tomado um rumo que ele não estava gostando muito.

Era muito sucesso, acho.

Mas foi uma boa conjunção astral que o tornou mais popular ainda. Anos antes, sua trajetória já havia dado um bom salto com o disco Luz, onde Samurai foi o carro chefe, mas o "eu te devoro" jogou o cara pras estrelas.

É sempre bom quando a cultura se propaga, mesmo quando ajudada por um golpe de sorte.

Neste momento estamos necessitando de muitos golpes de sorte, pois se antes o poder não se importava muito com a cultura, agora o poder deseja aniquilá-la. 


Djavan é necessidade vital brasileira.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

PAPO CUECA1

- Olha só.
- O que?
- Que espuma linda.
- É mesmo. Esta ceva é uma loucura.
- Teor nas alturas. Teor fodão.
- Bah. To Chaplin total.
- Então...mais um brinde!
- Mais um brinde!
- A nós. À nossa amizade!
- À nossa amizade!
- Agora...eu tava pensando.
- Ih...isso is not goody.
- Pô, presta atenção! É sério. Deixa te falar.
- Manda.
- Vai prestar atenção?
- Acho que vou. Vai. Fala, antes que eu desmaie.
- Lá vai.
- Hum.
- Do pó viemos, ao pó voltaremos e não comemos ninguém.
- Opa, opa, opa! Fala por você. Eu comi muita gente.
- Comeu nada. Te conheço desde pequeno. Comeu rolhas.
- Ah, ah! Quem não comeu foi você, cabação.
- Olha. Tu comeu uma romena?
- Não.
- Comeu uma búlgara?
- Também não.
- Tailandesa?
- Nem.
- Não comeu ninguém.
- Comi argentina.
- Que argentina?
- A Eneida.
- A Eneida você não comeu. A Eneida foi tua mulher por vinte anos. Além do mais ela veio de Buenos Aires com seis meses de idade. A Eneida não conta.
- Humpf.
- Comeu uma aeromoça?
- Não.
- Uma sargenta?
- Tampouco.
- Uma tenenta, uma caba. Comeu?
- Bah.
- Comeu uma cantora? Uma fagotista? Uma otorrinolaringologista?
- Não.
- Não to certo? Nesta puta vida não comemos ninguém.
- Eu comi professora.
- Ah. Isso eu também.
- Comi muita professora.
- Eu também. Toneladas.
- Você não comeu mais que eu.
- Ah, ah. Claro que comi. Quer apostar? Comi professora pra caralho.
- Vamos ver isso daí. Tem caneta? E papel?
- Tenho. Vamos ver.
- Vais ver a surra que vou te dar. Bah. Tá tudo girando.
- Vai logo com este levantamento. E não vale inventar.

DEZ MINUTOS DEPOIS

- Olha só. Terminei.
- Terminei também. Eu comi doze teachers.
- Sério?
- Bem sério. Te ganhei lindo, não foi?
- Na minha lista tem vinte e quatro, mas como tô vendo dobrado, são doze também.
- Ah, para com isto! Tá inventando.
- Tô não.
- Empatamos?
- Não. Eu ganhei.
- Mas é doze a doze? Empate, pô.
- Lembra a Marilourdes?
- Lembro sim.
- A Marilourdes foi diretora.
- E daí??? Também fiquei com a Marilourdes!
- Ficou antes de mim!
- Claro. Sempre fui mais adiantado que você, seu molenga.
- Você ficou com ela quando ela cuidava do audiovisual. Não era diretora ainda.
- E aí?
- E aí ganhei. Tu não tem diretora na tua lista.
- Tomanocu.
- Um brinde à minha vitória.
- Um brinde sim! Mas não à tua vitória, cuzão.
- A que então?
- Um brinde à vida.
- Um brinde às profes?
- Sim. Um brinde às profes.
- Que nos aguentaram.
- Isso. Deixa te contar que já sofri por professora.
- Sério?
- Sério. Até corno fui.
- Bah. Isso eu não sabia.
- Fui.
- Mas rapaz. Você tá chorando. Não faz isso que eu choro também.
- Parius. Sofri pra caralho. Eu adorava aquela cara de braba que ela tinha. Professora faz tanta cara de braba na aula que acaba ficando com cara de braba pra sempre.
- Hum.
- Ela andava fria comigo e um dia bebi tanto que quando encontrei ela, disse pra ela que queria ser o estojo dela. Falei que me bastaria pra ser feliz se eu pudesse ser o giz dela. Falei isso tudo de joelhos.
- Putz. Que ridículo, cara. E ela?
- Fez um carinho na minha cabeça, deu uma gargalhada e entrou no ônibus. Por sorte o ônibus se foi e ela não me viu emborcar no barro. Depois me contaram que viram ela bebendo com um barbudinho no Bar Batana.
- Bah. Mas para de choradeira. esquece isto. Mais um brinde. Prestatenção nessa espuma, meu irmão!
- Tá. Que rica espuma! Um brinde a nós que do pó viemos, ao pó voltaremos e comemos geral.
- Isso. Passamos o rodo.
- Pelo menos no magistério.
- Uhuuuuu!!! Um brinde ao magistério.
- Ao magistério e à nossa amizade.
- À nossa larga amizade, cabação.
- Te considero vaitefudê.
- Tomanocu.

Das PANELAS

Teve uma época em que morei com um colega no bairro do Leblon, Rio de Janeiro, num conjunto de prédios apelidado de Selva de Pedra.

Tal complexo, por seu arrojo e modernidade, fez parte da abertura da novela que causou furor na década de setenta.

Meu colega cozinhava e pode-se dizer até que fazia isto com certo talento.

Eu chegava de madrugada, abria a geladeira e lá estavam as panelas com o rango.

Me servia com o devido cuidado para não raspar as panelas, pois se fizesse isto, teria de lavá-las. Então, sempre deixava um pouco.

No dia seguinte, a cena era a mesma.

O cara, com uma cara preparada, vinha me perguntar o motivo de eu não ter comido todo o conteúdo. Me indagava, malandramente, se a comida não estava saborosa, se o rango não estaria a meu gosto, se lhe faltava tempero e eu respondia que sim, que era uma comida de primeira, mas que a fome não era pra tanto.

Eu não gostava de lavar panelas e meu brother, muitíssimo menos. Então rolava esse teatro.

Tempos depois, quando já vivia em outro bairro, fui fazer um ensaio na casa do cara e junto com outro colega fomos convidados a almoçar.

Era um cozido. Estava muito bem feito, mas vez por outra, tirávamos da boca algo que era impossível mastigar. Tomados pela desconfiança, fomos depositando aqueles cacos escuros na borda dos pratos.

Num determinado momento, o baixista não se contém e pergunta.

- Véio? O quê é que são estas crostas?

A resposta nos assombrou de verdade.

- É da comida anterior.

Bah. Definitivamente o cara não gostava de lavar panelas.