terça-feira, 30 de junho de 2020

NAUTILUS E FÉLIX 3

Félix caminhava pelo muro à espreita de enxergar Ísis, aquela gata elegante que o vizinho teima tanto em manter encerrada, quando o buldogue pulou e latiu e Félix teve então de saltar abruptamente de volta ao pátio tão ensolarado que estava, pensando que aquele cão era por demais ridículo ao promover tamanho desalinho em sua alma tão, mas tão de boas.

Depois de recompor-se um pouco, Félix notou que Nautilus comia grama.
- Táz enjoado, Nautilus?
- Tôz, Félix. Fui brincar com uma borboleta e acabei mordiscando, sem querer, a asa. Daí você já sabe.
- Becs, Nautilus. O pó da asa de borboleta dá muita náusea. Por que não caça baratas?
- As baratas, como você sabe, andam muito rápidas nesta estação, Félix. Dia destes consegui pegar uma. Peguei porque ela era gorda que nem eu.§ Era lenta e gorda, a coitada da barata.§
- Crocante, Nautilus?
- Crocantíssima, Félix.
- Olha lá, Nautilus. Táz vendo? Lá no canto.
- Tôz, Félix. Ele tem aparecido todos os dias, por esta hora.
- A mulher quer que a gente pegue ele, Nautilus. Não é ridículo?
- Isso é coisa de gato antigo, Félix. Jamais cacei ratos em minha vida. É ridículo, sim. Não se caça mais ratos hoje em dia. Não, mesmo.
- Dia destes fiquei cara à cara com ele, Nautilus.
- E te deu alguma vontade de sentar a pata nele, Félix?
- Nenhuma, Nautilus. Eu vi o medo naquele olhar. Deixei que ele revirasse o lixo à vontade e fui ver se Ísis andava pelo telhado.
- Pobres ratos, não é, Félix? Enquanto estamos cochilando nas poltronas ou no calorzinho da pança do homem, eles estão no escuro dos esgotos ou nos bueiros, confinados.
- Uma vida ridícula, Nautilus?
- Bem ridícula, Félix.
- Então, quando eles vêm pra superfície pra tomar um pouco de sol, o que a gente faz, Nautilus?
- A gente finge que não é com a gente, Félix.§
- Olha lá, Nautilus! Ele tá nos mirando. Paralisou, viu só?
- Táz vendo como ele tremelica o focinho, Félix?§ Ele nos respeita. Respeita muito.
- Deixemo-lo, Nautilus. Seria ridículo se deixássemos de pegar este sol por causa de um pobre rato.
- Seria ridículo sim, Félix. Vamos ali pra pedra, que ali na pedra está quente e podemos roçar as costas na pedra enquanto olhamos pássaros no céu.
- E pássaros, Nautilus?
- Quê que tem pássaros, Félix?
- Caçamos pássaros, Nautilus?
- Esta conversa tá me dando cansaço, Félix.
- É vero, Nautilis. Bora pra pedra?
- Só se for agora, Félix.§
- §

NOTA DO AUTOR

Como os felinos riem com a alma e assim seu riso não tem propriamente nem som nem forma, resolveu-se estipular um signo para cada risada.

O signo é este: §

Também, à guisa de informação, é importante dizer que se trata de uma praxe felina o fato dos gatos colocarem o nome do interlocutor em toda frase.

Outra dado importante.

Os nomes dos gatos são escolhidos por eles mesmos e é por isto que de nada serve você tentar dar nome a um gato. Ele jamais atenderá.

Tenho certeza também de que você se surpreendeu com a repetição sistemática do termo “ridículo” em meio à conversação.

Explico.

Para os felinos, quase tudo neste mundo é ridículo. Sempre que você enxergar um gato sentado com o olhar perdido no vazio não tenha dúvidas de que ele está pensando que o universo que está ali, revelando-se a sua frente é, no mínimo, ridículo.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

NAUTILUS E FÉLIX 2

Nautilus abriu os olhos, viu a chuva fininha caindo no pátio e pensou que o melhor que tinha mesmo a fazer era ficar ali naquele tapete macio, tomando banho e olhando o movimento da casa.

Foi levantando lentamente, pois sabia que já estava quase na hora de ser servido o leite. Então bocejou comprido e durante a espreguiçada, pode ver Félix no degrau, com o olhar perdido.

- Que foi, Félix? Táz pensando novamente naquela gata, a Ísis?
- Claro, Nautilus. Táz sentindo o cheiro?
- Sim, Félix. Está muito claro. Flutua por todo o bairro, certamente.
- Este vizinho não é ridículo, Nautilus? Não abre nunca as janelas e assim Ísis não pode sair.
- É ridículo, sim, Félix. Mas acho bom você não pensar em invadir, como fez no cio passado.
- E sou louco, Nautilus? A mulher do vizinho me pegou na cozinha e sentou a vassoura no meu lombo. Se não sou ágil, ela me acerta em cheio. Seria ridículo.
- Mas depois você conseguiu, não é, Félix? Era uma noite de lua cheia. Lembro muito bem da gritaria.
- Se consegui, Nautilus. Lá naquelas telhas ali, tá vendo? Eu e Ísis. Ísis e eu.
- E o Sóros tentou bater em você. Aquele gato é grande, Félix. É bem maior do que eu.
- É grande sim, Nautilus. Sóros tentou me estrangular, mas fui mais rápido e ele acabou caindo do telhado. Daí, zás. Ísis foi minha, e trinta segundos depois eu já estava nos telhados do armazém pegando baratas.
- Eu lembro, Félix. Tão ridículo Sóros.
- Estava pensando em subir no muro e dar uma espiada nas janelas, Nautilus.
- Com esta chuva, Félix?
- Sim...mas pensando bem, acho que seria ridículo, não é, Nautilus? Chove tão fininho.
- Seria no mínimo ridículo, Félix!
- Ouviu este barulho, Nautilus?
- Claro que ouvi, Félix. Este barulho é música para meus ouvidos.
- Adoro o barulho dos pires batendo no chão, Nautilus.
- E eu não, Félix? Bora pra cozinha tomar este leite na temperatura perfeita.
- Bora, Nautilus. Entraremos ronronando pela porta. A mulher gosta tanto.
- Gosta muito, Félix. Entraremos ronronando e com os rabos lá no alto.
- Bem como a mulher adora, Nautilus. Daí ela fala com a gente com aquela voz meio fininha. Não é ridícula a mulher, Nautilus?
- É ridícula sim, Félix. Às vezes é bem ridícula.

E assim se foi a dupla em direção ao delicioso leite morno das quatro da tarde. O restante do dia foi dedicado a intermináveis cochilos em variadas poltronas e Félix sonhou com Ísis e seus gritos estridentes um par de vezes.

NOTA DO AUTOR

Talvez seja uma novidade pra você o fato dos gatos colocarem o nome do interlocutor em toda frase, mas afirmo que isto é uma praxe felina.

Outra dado importante.

Os nomes dos gatos são escolhidos por eles mesmos e é por isto que de nada serve você tentar dar nome a um gato. Ele jamais vai atender.

Tenho certeza também de que você se surpreendeu com a repetição sistemática do termo “ridículo” em meio à conversação.

Explico.

Para os felinos, quase tudo neste mundo é ridículo. Sempre que você enxergar um gato sentado com o olhar perdido no vazio não tenha dúvidas de que ele está pensando que o universo que está ali, revelando-se a sua frente é, no mínimo, ridículo.

sábado, 27 de junho de 2020

SEXO VIRTUAL NA PANDEMIA

Sozinho/a na pandemia?

Teria interesse num bom sexo virtual?

Informações in box.


Horário: entre 18hs e 20;30hs, atendemos pelo SUS.

Depois das 22hs fazemos no débito em até 3x, no entanto, devido ao adiantado da hora, não podemos gritar muito.

E pra vocês que são casados/as e não suportam mais ver a cara do conje, preste bem atenção!

Temos boas promoções também para suruba4 no wattsap e suruba30 no skipe. Contate seus contatos.

Serão aceitos maiores de idade e todos os sexos.

Solte as franga agora. Não espere o fim da pandemia.

Grato.

DAS CERVEJAS E DAS CANÇÕES

Ontem era uma noite fria e chuvosa por aqui e, contra a lógica, resolvi botar umas cervejas pra gelar. Pouca coisa, mas me senti muito afortunado por isso.

Servi num copo bonito. Coisa que jamais fiz. Nunca me importou o tipo de copo. Hoje, ando com estas manias. Tentar fazer todas as coisas da melhor forma possível. Até mesmo beber uma cerveja. E a cerveja que tomei é daquelas que dá vontade de beijar o copo. Cerveja de verdade, adquirida por preço módico.

Então lembrei de uma canção chamada Beirute, que faz tempo que procuro a letra na net e nunca acho. Mandei uma mensagem pro autor, que é o BE Alves e ficamos conversando um bom tempo.

Comentamos sobre o clipe de quarentena que a Janaína Maia fez com a “MAIS UMA CANÇÃO”, sobre a interpretação bonita e criativa que ela mandou e também sobre a quantidade de compartilhamentos e visualizações que o trabalho teve. Ficou bem bonito.

Recordo da tarde em que compusemos a canção. Deve fazer mais de vinte, certamente. Era também uma tarde cinzenta. Bebeto já tinha me dado a letra e numa saleta de criação da Jinga compusemos a música em meia hora.

Quase todas as canções que componho são feitas no violão. Naquela tarde não foi diferente. Fui colocando os acordes e fomos fazendo juntos a melodia e Bebeto ia reorganizando a letra de acordo com os novos caminhos que iam sendo criados. Aquela harmonia do refrão é muito esquisita. Não sei de onde tirei aquilo. Não faz parte do meu DNA. E do Bebeto tampouco. Mas ficou muito bom. Talvez tenha sido psicografada.

Logo depois fizemos uma gravação que só a introdução já era um puta prenúncio de que aquilo era um baita tema. Nos concertos era um arraso e a canção tem até hoje um grande talento radiofônico. Ganhamos até dinheiro com direitos autorais, você acredita?

Mas como eu disse, esta canção pela qual temos imenso carinho, foi composta na Jinga, uma produtora musical na qual trabalhamos nos noventa.

Foi lá, alguns anos antes disso, que o Garay Engels, meticulosamente, criou uma letra e entregou pro Calique que inventou uma melodia e depois de gravada e batizada de VIDA, foi aprovada por publicitários para ser a canção institucional da RBS.

Tempo destes, Garay me chamou pra fazer um novo arranjo para o fim do ano e ficamos emocionados com o fato da canção estar cumprindo trinta anos de vida.

Atravessei a noite bebendo e pensando sobre a canção que pode ser eterna. Às vezes você pode estar batendo um violão e de repente cria uma coisinha sozinho, ou acompanhado, e o lance toma vulto e cai no agrado e a canção voa por aí.

Volta e meia encontro alguém que descobre que também sou autor desta música e esta pessoa me fala que MAIS UMA CANÇÃO foi muito marcante numa fase de sua vida. Aí também me sinto bem afortunado.

Assim como me senti afortunado nesta madrugada por poder mandar pra dentro um omeprasol junto com uma magnésia bisurada antes de dormir e assim não desalinhar tanto a máquina no dia seguinte.

DR. ESTRANHO


Depois de colocar os óculos azuis, parou em frente ao espelho e gostou do que viu. Achou que a máscara caiu-lhe muito bem.

Foi comprimindo os olhos, pouco a pouco, e assim, sua imagem ficou parecendo com a do Dr. Estranho. Resolveu então experimentar algumas poses marciais sem descerrar o olhar, mas repentinamente, sem razão alguma, sobrevem uma sequência de quatro espirros e isto faz com que tenha absoluta certeza de ter se auto contaminado e decide que a única solução para o caso é sair correndo do quarto, jogar a máscara infectada no banheiro e rolar feito um comando no meio da sala.

Após o salto acrobático, com extrema agilidade levanta-se e distribui aos quatro cantos meia dúzia de socos e pontapés, e cada golpe dado mata mil coronavírus. Cada golpe desferido elimina cem gafanhotos.

Repara com olhos assombrados que seus movimentos fazem o chambre esvoaçar e repete o espancamento de forma mais exagerada para poder melhor observar como a capa flutua de um lado a outro durante a terrível batalha.

Seguido a isso entra arfando na cozinha, descasca uma bergamota e coloca os gomos de dois em dois na boca. Meio que se engasga com o suco abundante e lacrimeja enquanto cospe as sementes do parapeito e assim pode ver que Igor está caminhando sem máscara pelo estacionamento. Joga o resto da berga sem gosto no lixo, dá um passo atrás empertigando o corpo e com as mãos em concha, grita a todos pulmões.

- Hey, Igor! Você está sem máscara. Respeite o coronavírus ou será dizimado!

O esforço traz um pouco de tosse. A questão agora é esquecer tudo, voltar ao quarto de olhos fechados e, sob hipótese alguma, encostar em qualquer parede ou móvel, pois estão todos eletrificados.

No trajeto pisa em algo borrachento que assobia com a pressão e isto faz com que tenha certeza de se tratar de um pokemon, embora estes já estejam extintos há mais de treze séculos.

Em frente ao banheiro abre os olhos lentamente e quando vê a máscara no chão, agonizante, aplica-lhe um bom tanto de laser para acabar de vez com seu sofrimento. É importante economizar laser durante a epidemia do mal.

Então move-se um pouco em câmera lenta quando de forma repentina decide imprimir velocidade supersônica, e depois de um salto triplo multi carpado, aterrissa em segurança na cama.

Sem perda de tempo, abre o esconderijo das máscaras, retira mais uma e a coloca cuidadosamente na boca. Hordas de gafanhotos covid se aproximam e certamente tentarão invadir.

Agora é só questão de esperar.

COMPRAS NA PANDEMIA

Na volta do super modifiquei o modus operandi.

Encho a banheira.

Jogo as compras tudo dentro.

Entro em seguida. Com a roupa e tudo.

A maioria dos produtos não boiam.

Então coloco meus patos de borracha e alguns golfinhos pra atividade ficar um pouco mais lúdica.

Quase me afogo no momento de tirar os blusões, mas depois de me debater um pouco, noto que apenas o teto resultou molhado, e o fato não me parece que seja um desastre de monta.

Então lavo tudo cuidadosamente com sabonete, shampoo e creme rinse. Até as sacolas plásticas.

Leva bem umas três horas, mas é enriquecedor pra alma.

Ah!

Importante não fazer cocô dentro da banheira nessa hora.

Isto pode trazer algum desgosto.

E também fará dobrar o tempo da função porque daí tem de lavar o alcatra com escova e clorofina, e isto é uma tarefa que além de árdua, é perigosa pois pode respingar duvidosa mistura nos olhos.

E a mãe fica braba.

domingo, 21 de junho de 2020

SEM ASSUNTO

Tô na cozinha e tenho vontade de escrever.

Milhares de assuntos e ao mesmo tempo nenhum.

Daí lembro de uma crônica do Rubem Braga em que ele conta que chega na redação com obrigatoriedade de prazo para cumprir seu trabalho, e está sem assunto, e é a partir desta falta de assunto que o cara cria um texto pra lá de lindo.

Você lê a última frase e tira todos os chapéus.

Um tempo depois, encontrei no 100 MELHORES CRÔNICAS DO BRASIL um comentário que acho que é do Mário de Andrade que diz algo como:

"O Braga é o fino, mas ele fica melhor ainda quando não tem assunto."

Eu estava escrevendo exatamente sobre isso quando o celular travou. Tem acontecido.

Daí é preciso apertar todos os botões ao mesmo tempo pro troço desligar e às vezes demora um tempinho pra isto acontecer e ele ressuscitar.

Não é boa coisa ter de sair pra comprar um novo celular nestes tempos. Tá rachadinho mas é guerreiro, e vou ficar chateado se bater as botas.

É importante também não quebrar os óculos e pior ainda seria fazer a besteira de limpar o cartão de crédito com álcool e danificá-lo definitivamente. Então, o cartão trato como ente contaminado. Não limpo e tampouco dirijo meu olhar a ele.

Resolvo ler estes dois últimos parágrafos e me dá vergonha.

Acho que nunca senti tanta vergonha na minha vida. Vergonha e culpa. Muitas vezes maiores do que o próprio medo.

Vejo então que já são quatro da matina, ligo a TV no noticiário e o assunto Queiroz abre as manchetes com fúria.

No momento em que escrevo esse nome, o Facebook me oferece marcar uma tríade de amigos que possuem o mesmo sobrenome e penso que, por isto, devem estar ouvindo todo tipo de piada infame por estes dias.

Melhor mesmo nem falar sobre isso. Os Corona temos ouvido muitíssima baboseira.

Mas pensando bem, nem dá nada. Meu sobrenome poderia ser o mesmo da besta e isto sim, tenho certeza, seria bastante mais doloroso.

Não acho que o texto esteja grande coisa, mas acho que resultaria bem pior se grafasse o nome dele, pois a simples leitura deste já faz aumentar a náusea. A náusea e a vergonha.

Bueno.

Acho que é hora de ir pro catre e quem sabe ler um pouco de Cortázar ou o próprio Braga pra ver se consigo botar minha vergonha pra dormir.

Acalmar a alma.

Sossegar o cérebro até...

até o cérebro ficar sem assunto.

Nos vemos.

sábado, 13 de junho de 2020

METEOROLOGIA

Jamais prestamos atenção ao teor central da previsão do tempo na televisão. Pouco nos importa a secura do ar da região sudeste ou a tempestade de granizo que nunca acontece.

Na verdade, o que nos interessa mesmo é analisar e criticar o modelito ou a postura dos apresentadores do quadro meteorológico.

Foi a Maju, com suas impecáveis elegância e beleza que nos deu boa referência para afiarmos nosso implacável crivo.


Entao, nestes tempos, é com a ambrosia chacoalhando na boca que nos regozijamos com o mau gosto da combinação das cores que aquela baixinha usa, ou com a boca de chupar faca da loirinha, ou damos boas risadas da cabeça de alfinete daquele apresentador que usa um casaquinho de cagar em pé.

Nos últimos dias temos lamentado o fato de haver surgido uma nova apresentadora à prova de comentários. Ela é completamente correta. Não há o que elogiar. E tampouco sentar o ferro.

No momento em que ela aparece, mami e eu paramos com o falatório e nos quedamos ali, avaliadores, em silêncio, contrafeitos com nossas impossibilidades. Observamos meticulosamente todos os detalhes. Nada a reparar.

Então levanto para fazer o café enquanto minha mãe, entre suspiros, corta à faca comprimidos.

Nunca falamos nada a respeito, mas eu sei que ela sabe e ela sabe que eu sei que mais dia ou menos dia, a moça vacilará.

E cá estaremos.