Há farelos na cama sobrados da noite passada que pinicam minhas costas e esta sensação aliada a uma ressaca monstra me faz levantar. Havia também calor e suor debaixo das cobertas. Já aqui fora faz frio e só há uma blusa à mão. É peça de roupa feita de lã, e sei que em contato com a pele também vai irritar. Depois de vesti-la e de não encontrar chinelos, deixo o quarto com a antiga sensação de haver deitado nu na grama, tomado pela comichão causada por um ser invisível que em outra era chamávamos de micóliuns. No momento de entrar no banheiro bato com o cotovelo no batente da porta. O golpe não machuca tanto o braço, no entanto o sobressalto faz minha coluna parecer desconjuntar-se. Urino e ao sentir respingar canelas e pés, lembro de um colega alemão que sugeria fazer esta atividade sentado e ele tinha lúcidas razões para isso. Então reparo no espelho a careta que surge em meu rosto no exato instante em que minha língua encontra uma afta novinha em folha. Quando inicio a escovação dos dentes descubro também que se avizinha um torcicolo que promete muito. Da tríade afta-torcicolo-soluço só me falta este último. Desajeitado, escovo a afta com rudeza e isto me faz lacrimejar um pouco. Lavo o rosto, também de forma estabanada, e sinto a água congelando meus antebraços, escorrendo para dentro do blusão. Invado a cozinha à procura de algo que sacie minha sede e para amplificar meu desassossego, percebo que faltou luz e isto já deve fazer um bom tempo. Não tenho água potável na geladeira nem fora dela. Encontro meia garrafinha de coca do mês passado e entorno nauseado o líquido doce e morno, enquanto observo pela janela da área a chuva torrencial que desaba sobre a grande cidade de trânsito inerte e lembro que tenho uma reunião às 10, lembro também que a bateria de meu celular arriou no meio da festa de ontem e como não tenho luz, concluo que não tenho rádio, não tenho TV, nem computador e nem puta ideia de que horas sejam. Não sei qual foi a data em que acabei me tornando mais um tolo digital. Pensando que seria por demais ridículo bater à porta de algum vizinho para pedir a hora, o que me resta é sair por aí para saber a quantas anda o mundo, então decido meter-me em minhas roupas sem banho mesmo, pois banho quente também está em falta. Ao deixar a cozinha sinto os pés gelados pela pedra e como se não bastasse, o arroz cozido da véspera se gruda em minhas solas. De volta ao quarto me visto como um autômato, sofro para pentear meus cabelos emaranhados e me obrigo a cortar dois chumaços. Dou uma geral na cozinha para ver se encontro velas e a busca é infrutífera. Não tenho velas e se for pensar bem, acho que nunca tive e mesmo que as tivesse, de nada adiantaria pois também não possuo isqueiro e muito menos fósforos. Seria o máximo poder dispor de uma lanterna neste momento em que preciso vencer 25 lances de escada, mas a lanterna não passa de uma longínqua figurinha na memória. Inicio então a lenta descida dos degraus na escuridão total, pois as luzes de emergência devem ter se esgotado. Vou encostado pela parede, pé ante pé, no breu e no silêncio e resolvo não contar os andares vencidos, mas agora talvez esteja no 21, e no 21 um tipo de desamparo vem se aproximando e por um momento perco a referência de espaço, de tempo, por um instante me foge o sentido do que realmente estou fazendo ali e logo me vem a impressão de estar avançando por um subterrâneo sem fim e aí então surgem as lágrimas, tão perdido que me sinto, lágrimas certamente facilitadas pela fraqueza que causa o excesso de gim, e estas lágrimas de borbotões molham o cimento por onde me arrasto, mas aos poucos vou me acalmando, os pensamentos voltam a se ordenar e vou me recuperando deste encontro, uma pequena amostra do animal selvagem que se chama solidão, e na porta que dá acesso ao 18 vejo que há uma luz pálida, revelando que alguma boa alma deixou uma vela no patamar, o que dá uns ares trêmulos de terreiro à escadaria e isso me faz imaginar até o cheiro de eucalipto defumado e animado pela tênue claridade, posso acelerar um pouco o passo, e sigo um pouco neste beat, pois nos andares seguintes a configuração é parecida e quando chego ao 15, cruzo por dois moradores calvos, de idade indefinida, que sobem lentamente, eles vem conversando em tom de reza e não me dirigem o mínimo olhar e sinto alívio no 13 pois ali o número de velas é ainda maior, mas no 12 volta a escuridão total e meu ritmo diminui novamente, quando de repente escuto uma porta batendo e em seguida se lança um vulto muito rente a mim, saltando degraus de três em três, portando um poderoso facho de luz, um rapaz muito alto, muito magro, uma silhueta destas de história em quadrinhos que vai descendo vertiginosamente, deixando como rastro apenas o som dos passos vigorosos, portas se abrindo e se fechando com estrondo, e acompanho aquele ruído que vai se desvanecendo pouco a pouco e por sorte no 9 há velas novamente, há também música vinda de algum apartamento, há cheiro de temperos onde o manjericão predomina, há sinais de civilização que confortam, mas me irrito com a dedução de que se há gente cozinhando, estou fodido pois minha reunião era às dez e isto me faz voltar a acelerar o ritmo e no 7, as luzes de emergência estão funcionando e assim posso quase correr e quando chego ofegante à avenida vejo que a chuva não dá trégua e o tráfego se mostra estático e conformado. Me aproximo de um táxi vazio e a impressão que tenho é a de que o motor está desligado e o homem dorme ao volante. Entro afobadamente e isto parece fazê-lo despertar.
- Toca pro centro.
- Esquece rapaz. Deu no rádio que lacrou. Sem previsão.
- Como assim, lacrou?
- Eles tão dizendo que é o big bug que tá rolando. Não ouviu falar dessa treta?
- Não. Não sei o que é isso.
- Eles andam falando muito nessa parada, mano. Mas não sabia que era pra já. É muito carro, brother. Parou tudo. Inda mais essa chuva que tá batendo desde ontem de noite.
- E que horas você tem?
- É quase duas da tarde, bro.
Sem mais palavras, saio do veículo aos tropeções e entro na pastelaria logo em frente. Preciso botar algo urgente no estômago antes que desmaie. O boteco está lotado, mas consigo um bom lugar em um dos balcões. Espero o atendente e neste meio tempo, tento dar uma organizada no espírito. Perdi a reunião e perdi a la grande. Não tenho o menor ânimo para telefonar pedindo desculpas ou qualquer coisa do gênero. Sinto um desconforto sem medida, como se o dia estivesse fora do prumo. Parece que há uma desordem generalizada no ar, e logo me vem à cabeça a possibilidade do planeta ter saído de seu eixo durante a noite. Este é um dos grandes medos dos cientistas, que entediado tomei conhecimento assistindo a um destes programas bobos sobre apocalipse. O Big Bug da Terra, já diria o taxista. Saio do transe e reparo então que no balcão em frente, uma chinesa idosa me fita e sorri. Com a insistência desta atitude, me constranjo e lhe faço um sinal indagativo. Ela, sem desmanchar aquela máscara, com um tom de voz maquinal, diz alguma coisa a qual não consigo entender. Sinto então que alguém a meu lado toca meu braço e é um rapaz, também oriental que com a mesma espécie de sorriso na cara me fala num português estropiado.
- Você não entende, né? Ela disse que cê tá com cara de quem acordou com farelos na cama. É coisa do nosso povo. É coisa que se fala na China.
A sensação do dejavu que esta revelação me causa quase me faz perder o equilíbrio, e decidido a não mais enxergar pessoas, lutando contra a náusea, lanço meu olhar pela grande janela do estabelecimento e constato que a chuva continua caindo com a mesma intensidade. Vejo também que meu táxi está na mesmíssima posição e o perfil do motorista tem a boca aberta de quem ressona sem culpa. Não há som de buzinas nem de motores. Minha afta assovia e o torcicolo responde. Uma moça vem me atender e faço meu pedido com certa dificuldade, pois chegaram os malditos soluços.
OUTUBRO - 16 - pOa
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