Foi na semana passada que entreguei uma melodia a um colega pra ver se ele se inspirava e colocava alguma letra em cima. Passados alguns dias ele me liga para comunicar que havia terminado o trabalho e queria me mostrar o resultado da composição.
Marcamos num bar e estranhei o fato dele trazer apenas uma pastinha debaixo do braço. Depois das saudações, sentamos, gritamos por dois chopes escarlates, e ele então pediu desculpas por não portar o violão e comentou que por estes dias andava numa correria bárbara, mas apesar do tempo tão exíguo, se sentia bastante satisfeito com o rumo que havia tomado nossa criação. Com um sorriso enigmático, abriu a pasta, retirou de dentro algumas folhas impressas, e tomado por uns ares de quem está prestes a ter sua genialidade por fim descoberta, entregou-as a mim.
Percebi, de antemão, que a fonte era Tempus Sans, que muito me agrada, e ele havia utilizado letras graúdas, generosas, para redigir o impresso que parecia muito claro em sua apresentação.
No momento em que se revelou o título da canção, deixei escapar uma pequena interjeição de agrado, pois aquilo me pareceu deveras interessante e talvez este gesto tenha feito meu amigo sorver o chope mais ruidosamente do que era de seu costume ao mesmo tempo em que acompanhava meus movimentos com olhos de uma feliz e incontida expectativa;
- Sapo Cururu?
- Isto mesmo. Sapo Cururu.
Li em voz alta e pausada a primeira estrofe.
- Sapo Cururu,
na beira do rio,
quando o sapo canta,
ó maninha,
é porque tem frio.
Levantei os olhos do papel, pois pressenti que meu amigo, limpando com a manga do paletó o bigode rubro, fazia uma clara menção de que começaria a explanar.
- Sabe o que é? O sapo aqui do sul, o batrákio gaudérius, nesta época do ano onde há muito frio e umidade nos fins de tarde, sofre uma brusca mudança em seu metabolismo e isto faz com que ele sinta um frio terrível. Neste momento, por uma defesa natural, ele começa a coaxar e como está sempre junto ao grupo, logo forma-se o que se poderia chamar de o grande coral.
- Sim. Continue.
- O som resultante de centenas, talvez até milhares de bocas de sapo cantando ao mesmo tempo, cria uma frequência que atinge diretamente o córtex do animalzinho, e isto ativa uma enzima que triplica o fornecimento de adrenalina no corpo dele e assim o sangue passa a circular com mais velocidade fazendo o sapo voltar a ficar aquecidinho.
Ouvindo tal magnífica explicação, assombrado, bebi quase todo meu chope com goles brutais, e semi engasgado murmurei.
- Sério?
- Sim. Pesquisei e tudo.
- Beleza. Agora me diz uma coisa. E a maninha?
- A maninha é a cunhada.
Neste instante, o rosto de meu colega se iluminou com centelhas de luxúria, pois a palavra “cunhada” é um botão que sempre faz com que se acendam luzes de todos os matizes e por todos os recantos.
- O sapo tem cunhada?
- Claro.
- Então o sapo é casado.
- Não neste caso. Ou melhor; não ainda como você vai ver na continuação. Saiba você que os sapos daqui do sul se casam também com as irmãs da sapa.
- Isso aí tu tá inventando.
- Nada. Assisti a uma longa e séria matéria no National Geographic.
- Bueno. Legal.
Depois de pedir mais dois chopes e um prato de linguiças carameladas, passei então a ler a segunda estrofe.
- A mulher do sapo,
deve estar lá dentro,
fazendo rendinha,
ó maninha,
pro seu casamento.
Esta estrofe me incomodou um pouco. Depois de agradecer ao garçom pela celeridade com que foi feita a entrega das linguiças, sem perda de tempo mergulhei a minha na farinha de guaco orgânico e inquiri.
- Esta estrofe não seria um tanto machista? Por que a mulher do sapo tem de trabalhar?
-Ahaha! Sabia que você ia perguntar isto. Pesquisei também. O casamento do sapo se realiza sempre no findar da tarde e esta é a única ocasião em que o bando tem de manter silêncio. É uma ordem da natureza. O sapo não pode cantar nos casamentos, de jeito nenhum.
Meu amigo então falou mais algumas palavras incompreensíveis, pois a linguiça queimava sua boca. Tratei então de ajuda-lo.
- Vamos ver se entendi. Como o sapo sempre sente frio ao entardecer e durante o casamento ele não pode cantar e é quando canta que se mantém quentinho, a solução para o problema tem de ser outra.
- Humhum.
Percebi que a linguiça fervente dava pequenos estalidos e se podiam ver fagulhas coloridas nas profundezas da boca sorridente e encaramelizada de meu parceiro. Observando que sua impossibilidade continuava, prossegui.
- Então a mulher do sapo tece agasalhos de rendinha pra suprir esta momentânea falha do metabolismo. Ela fabrica sueterzinhos pra ela, pro futuro marido e quiçá pra irmã, ou irmãs, sei lá. É isto?
- Perfeitamente.
No calor da emoção resolvemos brindar, mas quando as taças se tocaram, o chope incandesceu, e por mais presteza que tenhamos empregado na tentativa de levar os copos à boca, não conseguimos evitar que a espuma rósea se espalhasse em abundância por nossa mesa e atingisse inclusive a algumas mesas vizinhas. Enquanto dois garçons faziam a providencial limpeza do ambiente com grandes toalhas de linho, conjeturei que estávamos compondo um novo clássico da música popular brasileira, me senti orgulhoso de possuir um parceiro que seria um novo Benjor, criativo em suas letras carregadas de insanidade folclórica, o non sense inquestionável, as palavras escolhidas numa ordem irreversível, a continuidade exata e mais do que perfeita. Quando os garçons se retiraram, sem perda de tempo voltei à leitura dos versos, usando desta feita uma voz um tanto empostada, pois a bebida já ordenava seus brilhos de etilia por minhas veias impuras.
- A mulher do sapo,
não lambe o pé do sapo,
porque o sapo não lava o pé
e não lava o pé porque não quer.
Neste momento abocanhei o derradeiro pedaço de linguiça que ainda espocava e observei com atenção meu amigo cuspir uma nova sentença de sílabas acentuadamente separadas.
- Es tá com pro va do!
- O que?, lhe perguntei animado.
- O sapo, apesar de ser um animal exclusivamente hídrico, possui péssimos hábitos de higiene.
- Por isto a mulher do sapo se nega a lamber seu pé?
- Bingo!
- E a cunhada?
- A cunhada muito menos. Você sabe como as cunhadas são cheias de mimimi.
- Isto não é legal.
- É verdade. Mas todo o resto rola.
- Ah bom.
- Lê a última. Acho que fechei com chave de ouro.
Depois de conseguir eliminar os excessos de caramelo das gengivas iniciei a leitura da derradeira e mais extensa estrofe.
Aumentei bem o volume da voz, para que as pessoas das mesas adjacentes também pudessem usufruir daquilo que para mim, sem sombra de dúvida, se anunciava como notabilíssima obra maestra.
- Sapo Cururú,
vai na festa do céu,
ao contrário do jacaré,
que não pode entrar,
mas não pense que é pela boca grande,
o jacaré não entra no céu nem com capuz,
pois por ter o braço curto,
não consegue fazer o sinal da cruz.
Quando terminei o verso, observei que havia um respeitoso silêncio por todo o bar. As pessoas entenderam a importância de tudo aquilo. Meu parceiro estava com lágrimas nos olhos e tomados por uma sensação de extremo regozijo, esquecendo do anterior desastre, repetimos o brinde irresponsavelmente e entre gritos e impropérios, cada qual tentando se proteger da espuma indomável que a tudo invadia, nos abraçamos, e possuídos por um formidável espírito artístico, esquecidos do mundo que nos rodeava, entoamos a melodia a todos pulmões, tentando decifrar as palavras que ainda restavam naqueles papeis irremediavelmente encharcados de chope escarlate.
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