terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A LOUCA NOITE

Não sei como, nem onde, na noite, na louca noite, conheci uma moça que acabou gentilmente me levando a seu apartamento. Quando entramos, um simpático cão felpudinho veio nos saudar e fazer festa. Neste momento tomávamos espumante no bico, bebida que me custou uma pequena fortuna, mas estava picado pelo mosquito do crime, e quando isso acontece, deixo pra lá meu pãodurismo e abro a mão, tudo em nome do desvario que causa este pecado chamado luxúria, e agora a mulher me beija com fervor e sugere com voz murmurante que eu espere na sala, que ela vai me fazer uma pequena surpresa e dito isso,  vira as costas e some pelo corredor, me deixando na companhia de Tobi, que parece ter simpatizado demais com minha perna e, de forma impertinente, começa a coxá-la. Observo com curiosidade que seus olhos saltam pra fora com o frenesi da volúpia, não fazendo nenhum caso de que quase o chuto na tentativa de afastá-lo, e assim toda hora volta com insistência e entusiasmo à atividade inicial, e como estou completamente gambá, lhe dirijo impropérios pastosos enquanto caminho pela sala com ele pendurado em minha perna e, já me conformando com o fato, mamo o champagne já quente, enquanto fico a imaginar que tipo de coisa que esta madame estará preparando?, acho que esqueci o nome dela e quando tento lembrar sua fisionomia, esta também não me vem. Então chego a pensar que talvez seja tudo um sonho ou um delírio, quando de repente tomo um susto que me faz dar um grito ridículo e meu coração vai saindo pela boca com o gigantesco volume com o qual irrompe uma música alucinada, algo turco, árabe ou assemelhado e para meu estupor, a mulher aterrissa na sala com um salto desajeitado junto a um grito de “eiiiiaaaa” que inclusive faz Tobi esquecer o sexo que estava fazendo com minha canela para arregalar os olhos em direção à dona que começa a dançar com fúria e descubro que a surpresa que ela havia preparado era esta, a dança do ventre, e que ventre, que ilustríssimo ventre, meus senhores, uma pança do tamanho da minha, uma barriga de gelatina que joga de um lado para outro como se tivesse vida própria e tal fenômeno me faz dar um golaço na bebida para espantar o enjoo repentino, a performance me impele a afundar-me no sofá tomado que agora estou pela melancolia e desespero, vaticinando que se resolvêssemos transar com tais barrigas, teríamos de inventar uma nova posição, talvez um de costas para o outro e reparo que Tobi voltou ao ataque, putz, este cachorro é mais tarado do que eu, então extasiado, acompanho as evoluções da moça que parece gritar para que o cão cesse com a pouca vergonha, o volume da música torna as ordens inaudíveis, mas consigo ler os lábios desta mulher que realmente não reconheço, não sei se está usando mais ou menos pintura desde o momento do encontro na danceteria, não consigo saber, e Tobi, por sua vez, me deixa atônito, pois à primeira vista parece também estar dançando, mas logo caio em mim de que o bicho, na verdade, está mesmo é tendo as convulsões de um orgasmo, pois seguido a isto sofre um pequeno colapso, mas que cachorrinho mais asqueroso esse, e retorno meu olhar fascinado à bailarina, que vigorosamente vai de um canto da sala a outro, ensandecida, evolui para um lado, evolui para outro, vai pra baixo, vai pra cima, e numa destas piruetas, patina no tapete e o escorregão resulta fatal, lá se vai a mulé, coitada, desaparecendo por trás de um imenso vaso de antúrios e samambaias, e só consigo ver a cena que sobrou do desastre que são as solas dos pés da menina entre a folhagem, que dó que deu, e é aí que noto que estou por demais embriagado, pois me custa muito levantar do assento, mas a acudo como posso, na companhia de Tobi que despertou do transe e late em volta com preocupação e então, com extrema dificuldade, junto a moça do solo, e quando ela, já de pé, tentando se recompor,  sorri constrangida, dizendo que está tudo bem, que não se machucou, que eu fique tranquilo, me assombro, pois com aquele sorriso de gamela, não a reconheço mesmo, e depois de sua rápida fuga para os quartos, sentindo com irritação que Tobi volta a atacar minha panturrilha, jogo atenção às sobras da catástrofe. Há terra, folhas e cacos espalhados pelo chão, e mais. Ali, junto ao vaso despedaçado, depois de fixar o foco de meus olhos bêbados, vislumbro incrédulo um objeto que não pode ser, por favor não pode, não pode ser mas é, é uma dentadura, e com esta fatídica descoberta, saio cambaleante pelo ap, o espírito em alvoroço, as tripas em ebulição, e me revoltando definitivamente com este apêndice que me impede de caminhar pelo planeta, tomado pela ira, sujeito o cão de nome Tobi pelo cangote até bem em cima e falo com ele como se fosse gente, cara a cara, olho no olho “para com isso seu merda, antes que eu te morda com a dentadura da tua patroa" e é aí que me vem uma golfada repentina e vomito todo o taradinho que me encara com alegria, surpreso com a grande novidade, parece até ter gostado, parece querer mais, e com profundo desânimo  solto o pervertido animal para me dirigir à janela e calcular a altura deste primeiro andar, não chega a ter três metros, certamente não, é possível sim, é executável e me assomo, me jogo, me despenco no vazio e rolo feito um comando na grama que por sorte é fofa, assustando jornaleiro e porteiro, e depois de ter o cuidado de constatar que não havia sofrido fratura alguma e de que o cachorro não estava mais grudado. busco a avenida, invado um táxi e mando tocar pra casa que a noite foi por demais movida, nada mais a fazer por aí, e abro a janela pra beber o vento e sorvo com ruído o resto do espumante, sem poder acreditar que fiz tudo aquilo sem me desfazer nem por um instante da maldita e valiosa garrafa.

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