Antes era apenas o silêncio.
Silêncio necessário para poder apreciar urubus e fragatas que sempre navegam em
frente a minha sacada. Vivo em um grande apartamento num vigésimo oitavo andar
e me encanto diariamente com a companhia destas grandes aves que tantas e
tantas vezes interrompem sua jornada
para poder descansar um pouco nas platibandas. Elas não hesitam em fazer isto,
mesmo quando estou pelas cercanias. Mas como já disse, antes havia silêncio.
Agora já não. Faz uma semana que observei o ruído de tacos vindo do andar de
cima.
Quando digo "tacos", estou me referindo ao som que é gerado quando se caminha com sapatos, logicamente sapatos de salto. Antes não havia isto, como já falei. Agora há. O som é bem definido. É madeira e não parece provir de um salto fino. Talvez seja um tamanco, mas ainda não tenho certeza.
Há 20 anos, eu poderia ouvir o som de tacos vindo do outro lado da rua, e apenas pelo timbre, saberia se valia a pena ou não girar a cabeça para jogar o olhar sobre quem por ali estivesse passando. Com o tempo, perdi muito desta capacidade. Então agora, me sinto quase cego por já não mais conseguir adivinhar com clareza as características de quem está caminhando tão perto de mim. Calculo que a distância chegue, muitas vezes, a irrisórios 2 metros.
Fiquei bastante impressionado com o fato de que esta pessoa se negasse a calçar chinelos ou tênis, mesmo em horários tão adiantados. É como se pressentisse estar sendo lida e quisesse que suas mensagens fossem, de uma vez por todas, decifradas.
Nos primeiros dias notei que as passadas indicavam caminhadas curtas no quarto acima do meu. É como se ela andasse da cômoda até o armário, ou da cama até a cômoda. Fazia isto 3 ou 4 vezes seguidas e este pequeno movimento não possuía regularidade. Às vezes, durante algum trajeto, o caminhar se tornava espaçado, como se ela se pusesse momentaneamente a refletir. Intuí que a visão de sua imagem no espelho talvez a estivesse fazendo desacelerar. Pensei em tantas possibilidades nestas últimas noites, mas as incertezas acabaram me deixando extenuado, inseguro e perdido.
Havia outro fato que me desnorteava por não me parecer lógico. Logo depois destes movimentos contidos, sempre acontecia uma fuga rápida e decidida em direção à sala e o som ia se perder lá pelos afastados arrabaldes da cozinha. Da minha cama escutava a tudo com estranheza. Não vá pensar que eu também caminhava pela casa para segui-la. Nada disso. Permanecia deitado...atento, sentindo-lhe o gosto. Então ela voltava de forma mais cadenciada, como se estivesse lendo uma bula de remédio. O caminhar quase cessava quando ela retornava da cozinha.
Estou utilizando o pronome "ela" porque desde logo adivinhei que este andar só poderia ser feminino e apenas disto tive certeza. A partir daí, também comecei a descobrir que se tratava de uma mulher pequena, com 1,55, no máximo 1,60 de altura. O som do taco era seguro, firme, mas pude perceber sua profunda leveza. Na quarta feira servi um cálice de Blue só para senti-la. Cerrei os olhos, e com o licor passeando pela boca, a vislumbrei por um breve instante. Tão delgada e triste... tão só.
No dia seguinte resolvi perguntar aos porteiros se houvera mudança no prédio, mas parece ser uma regra que as respostas destes homens sejam sempre tão vagas, como se não entendessem jamais as perguntas, e tampouco ficou claro se viram, ou não, alguém estranho pelo edifício.
Este apartamento de onde vem o som dos tacos está fechado faz cerca de 2 anos, desde que o proprietário, um japonês quase centenário foi encontrado morto pela sobrinha, que as más línguas dos vizinhos afirmavam ser sua amante, apesar da formidável diferença de idade. Conta-se que ela o encontrou serenamente sentado à mesa do café. Talvez admirasse fragatas enquanto o chá esfriava, e nem notou que a vida lhe escapava como uma criança levada, ansiosa por libertar-se daquele corpo antigo para quem sabe se misturar a alguma nuvem da Pedra Bonita e finalmente brincar. Depois que o cadáver foi encaminhado para perícia, a menina nunca mais foi vista e nenhum parente apareceu para reclamar nem o morto, nem o imóvel.
Mas foi ontem pela manhã, no instante em que entrei no elevador, que talvez este mistério tenha começado a se desfazer. Ali estava ela. Delgada e pequena, como pensei. Cumprimentou-me com um vacilante aceno de cabeça. Levava um pano vermelho cobrindo a boca, talvez se preparando exageradamente para os 15 graus que este julho tem apresentado e isto, somado às roupas acinzentadas lhe emprestava ares mouros. Pude notar que seus olhos eram amendoados, quase orientais, mas foi só quando entraram outros moradores no elevador que tive a devida audácia para buscar seus pés e não eram sapatos nem tamancos que ela calçava e sim negras e impecáveis botas e quando meus olhos estavam se acostumando ao assombro da nova descoberta, ela subitamente levantou um pé e fez com que um dos saltos batesse no outro por 3 vezes, talvez intencionalmente para me despertar do transe e quando ergui o rosto me deparei com o sorriso que vinha de seus olhos e foi apenas isto e nada mais, pois a porta se abriu e ela se foi, lépida, sem dar bom dia a ninguém, me deixando como um tolo, a bordo de uma imaginária asa delta flutuando por brisas de xampu e Issey Miyake.
Hoje à noite a esperei no quarto, como tem sido costume, mas reparei que ela estava na sala. O som era por demais cristalino. A moça parecia alegre. Dançava. Me permiti pensar que estava animada por ter me encontrado. E por que não? A música que me chegava era quase imperceptível e tinha ares de hipnose. O ritmo dos tacos parecia exato. Jamais me interessaria por alguém que não conseguisse entender com rigor o compasso musical. Então resolvi buscar a garrafa de licor e desliguei as luzes para melhor adivinhar suas evoluções. Talvez ela também esteja bebendo. Será que gosta de Blue?
Confiro o celular para ver se chegou a mensagem que tanto espero. Tenho uma certa vergonha de confessar que, no fim da tarde, como um adolescente, contei 26 degraus até o andar de cima e vi que em sua porta havia uma pequena placa com alguns poucos caracteres nipônicos. Decidi fotografa-la e logo enviei a foto a um amigo que está vivendo em Tokio. Quero saber do que se trata. Até este momento não houve resposta.
Lá fora, agora vejo a chuva batendo forte em São Conrado e no parapeito da sacada acaba de pousar um urubu, talvez o maior que já tenha aparecido por estas bandas. Todo e qualquer ser deste planeta, vez por outra, precisa de amparo num momento mais difícil, e me tranquiliza ver que meu visitante parece sereno, aproveitando a proteção que minha casa lhe oferece. Ao fundo, a profusão de raios me possibilita reparar que seu perfil é altivo, mesmo com toda a intempérie.
Repentinamente noto que o ruído dos tacos cessa e logo em seguida a música também. Será que se sentiu incomodada, ou ofendida, por eu ter prestado atenção por alguns segundos em qualquer outra coisa que não fosse ela? Não posso acreditar que este súbito silêncio que agora ela me impõe seja birra. Seria ridículo. Então deixo de lado este devaneio para jogar minha atenção no nada... no vazio. O silêncio vai se expandindo como um big bang, apenas acompanhado pelo vento que assovia um pouco pelas frestas. Sinto um repentino pavor de pensar que o som destes passos jamais retornarão, ou muito pior do que isto, que nunca tenham existido e que tudo isto seja apenas fruto de minha imaginação, afinal de contas é sabido que a longa solidão pode causar alucinações. A vontade brutal de ir buscar uma vassoura para cutucar o teto não parece nada razoável. E agora, o que fazer com este silêncio? O que fazer com ele? Antes não havia. Agora há.
Levanto da poltrona, para tentar captar qualquer ínfimo ruído que venha dela e é neste exato momento que, limpidamente, escuto o sinal. Taco contra taco. Madeira contra madeira 3 vezes. Imitando o gesto do elevador, mas num ritmo um pouco mais lento, como se quisesse demonstrar já uma pequena ponta de irritação, ela me chama.
Um movimento brusco na sacada me atrai a atenção e vejo que meu majestoso amigo decide lançar-se no vazio da tempestade, e entendendo isto como mais uma indicação, lanço-me também vertiginosamente pelos 26 degraus rumo a outros céus e encontrando a porta semi aberta, invado a sala vazia de móveis e tomada pela penumbra. Há uma luz acolhedora me chamando no fundo do corredor que cruzo lentamente, na ponta dos pés, pois detesto fazer barulho quando caminho, e de olhos fechados entro na habitação que me envolve com um aroma de rosas.
Na manhã seguinte, enquanto descansávamos da interminável noite, na casa de banhos ela me revelou que a plaquinha que estava afixada na porta era um haikai que significaria algo parecido com "não tenha pressa, mas não perca tempo". Jurou que isso era magia destinada a mim e só a mim. Disse também que se chamava Keiko e que já me conhecia havia largo tempo. Quando lhe perguntei de onde vinha, apontou sorridente para as janelas. Havia, no fantástico azul daquele novo dia, o maior bando de fragatas que eu já tinha visto nestes meus quase 100 anos de existência.
FC - JUNHO - 15 – pOa