sexta-feira, 19 de junho de 2015

INSÔNIA




Miro sentou na cama empapada de suor. Não conseguia pregar o olho. As imagens iam passando na sua frente com todos os seus lúgubres detalhes. Os rostos dos atropelados, dos infartados, os baleados, os agonizantes... O olhar vítreo dos que não foram atendidos a tempo ou nem isso. 


Já fazia algum tempo, quase um ano, que estava dirigindo aquela ambulância, mas nos últimos dias é que tinha surgido esta novidade idiota. Ficar sonhando acordado com as cenas dos salvamentos.

Miro foi tateando até encontrar os cigarros na mesinha e, acendendo o isqueiro, pôde ver que era quase meia noite. Tinha apenas 4 horas de sono pela frente. Merda. Na penumbra, soprou a fumaça da primeira tragada e viu que o calor era tão viscoso que impedia que ela se afastasse. A fumaça teimava em não se dissipar pela habitação pequena.

Que cidade filha da puta. Só mesmo no Rio de Janeiro, uma noite que já está quente, consegue ficar ainda mais quente. Era inexplicável esta massa de altas temperaturas que muitas vezes dava as caras às 11 da noite. Pela lógica, este calor todo só poderia vir do continente, mas o bafo vinha com a maresia junto. Então era o mar que mandava esta onda pra incendiar  a noite da Cidade Maravilhosa e esta onda também conspirava pra apertar um pouco mais o nó de Miro. O nó do aluguel do apartamento que subiu e ficou inviável. O nó da falta de grana pra comprar até uma porra de um ventilador. O nó das impossibilidades, que agora também não permitia fazer uma das coisas mais simples deste mundo: fechar os olhos e apagar.

Melhor então colocar bermuda e chinelo e sair pela rua do Catete, quem sabe beber algumas latas até a exaustão.

Miro desceu suando os 4 lances de escada, pois pensou não ser aconselhável correr o risco de ficar preso no elevador. Os apagões andavam frequentes. Na rua, que continuava movimentada, dava pra sentir a panela de pressão vibrando com o som grave e constante de tanto ar condicionado ligado.

Não precisou andar cinquenta metros pra chegar até a Kombi que estava repleta de gringos acalorados e nordestinos tristes. 


Foi no momento de abrir a lata de cerveja que Miro reparou numa mulher sentada num banquinho, com os pés sobre um caixote. Bonitinha. Tinha um ar cansado. Bebia e fumava com o olhar perdido no vazio. Isso fez Miro notar que tinha esquecido o tabaco em casa. Caralho. Estava irritado e precisava fumar. Não teve dúvidas de se aproximar pra filar um cigarrinho da moça que acedeu com um leve sorriso e então os dois iniciaram o que poderia ser apenas uma breve conversa, mas o rapaz foi descobrindo que ela se chamava Natália e por grande coincidência era enfermeira da Samu zona oeste e estava ali exatamente pelo mesmo motivo que ele. Insônia.

- As imagens ficam passando, não é?
- Como assim?
- Você não fica vendo a cena das pessoas dilaceradas na via?
- Ah, entendi. Não. Isto não. Já faz 10 anos que tô nessa e já vi cada coisa que nem te conto. Não há mais nada que me impressione. Se eu te disser que não durmo por causa da sirene, você acredita?
- Sério? Mas como assim?
- Sério. Hoje fomos a Campo Grande. Tudo entupido. Quarenta minutos de sirene, colega! Sem parar. É mole? Tá tudo aqui, gritando na minha cachola.
- Engraçado. Eu gosto da sirene. Acho bacana quando o trânsito todo se abre pra deixar a gente passar. Me sinto poderoso. Acho que tem gente por aí, que tá viva e caminhando, por causa da sirene.
- É mesmo, né? Até que é uma conclusão maneira esta sua. Um brinde à sirene então.

A mulher sorridente estendeu o braço e as latas se tocaram.

Uma hora depois estavam os dois na cama de Miro sem importar-se com o pântano que aquilo havia se transformado, e já encaminhavam-se a dividir o mesmo gozo, quando ouviram ao longe, lá dos lados da praia, o som de uma ambulância. Os dois se olharam fixamente e caíram num riso frouxo que logo se transformou numa gargalhada que os obrigou a separarem os corpos. Depois do riso dar trégua, ficaram em silêncio,olhando para o teto.

- Putz. Este teu lençol está nas últimas.

Quinze dias depois, Natália trouxe seus lençóis, seu ventilador e trouxe todo o resto também, e a partir daí, todas as noites, mas todas mesmo, os dois se amam até tornarem-se completamente cegos e surdos e então, de mãos dadas, podem cerrar os olhos e apreciar a deliciosa sensação do mundo ficando para trás, se afastando, se afastando...

FC - junho - 15 - pOa

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