domingo, 26 de abril de 2015

SOLICITAÇÃO DE AMIZADE DE LOURDES BALLET

Olavo entrou em seu apartamento e parou no meio da pequena sala para respirar profundamente, já que tinha por hábito não usar o elevador. Estava ofegante por ter subido dois lances de escada e também respirava fundo porque ao entrar sentira que das janelas escancaradas vinham uns ares de outono já com cara de inverno e isto para ele era sempre um cerrar de olhos, um transportar-se para tantos e tantos portos de sua larga vida que agora completava setenta anos anos.

Chegara aos setenta, esta marca que tanto o amedrontava, e pensou que sempre tivera setenta, já que quase nada havia mudado, com exceção do joelho emperrado e dos cabelos que se foram, mas pensou também que seria melhor não brincar muito com isto e fechar logo as janelas, pois junho em Porto Alegre é sempre travesso e uma gripe aos setenta não é a mesma coisa que uma gripe aos quinze.

Esfregando o frio das mãos, depois de estancar o vento, Olavo observou o silêncio daquele apartamento vazio, vazio de Emma que já se fora - e tinha tantas razões para isto – fazia mais de quatro anos e ele desde então decidira não mais ligar-se a ninguém, pois foram tantos casamentos e separações, alegrias e dores, que agora seria um bom momento de ficar só para, quem sabe, descobrir alguns novos sentidos ou encontrar algumas peças importantes que ficaram para trás e estariam faltando ao quebra cabeças de sua existência, estes setenta que passaram estupidamente com a rapidez de um isqueiro que acende um cigarro, uma fagulha tola e mal aproveitada, uma luz que não se agarra ou um pássaro que se afasta em direção ao horizonte.

Imóvel, Olavo viu que já era tarde no relógio que ficava em cima do piano e sentiu que o álcool ainda corria frescamente por suas veias pois havia derrubado várias cervejas junto a seus filhos e alguns amigos e aquele espumante com o qual brindaram no final foi o bastante para lhe dar coragem de dizer algumas poucas palavras e quando voltaram a sentar viu que havia gente secando lágrimas bêbadas e beliscando os restos das pizzas ou tentando chamar a atenção dos garçons como se isto pudesse esconder ou afastar aquela névoa de melancolia que ficara no ar pois Olavo discorrera um pouco sobre o relógio que teima em não parar jamais, este mesmo relógio que desde cima do velho e empoeirado piano agora lhe fita e lhe diz que já é tarde, mas tarde para o que mesmo?

Se tivesse dez anos menos, Olavo levaria sua embriaguez para passear pela Cidade Baixa, mas a vida vai chegando num ponto que é assim mesmo, uma série de pequenas renúncias e despedidas de hábitos e quereres. De qualquer forma não encontraria mesmo ninguém conhecido em meio às camadas e camadas de tantas outras gerações que se sobrepõem sem rosto e que parecem até falar outro idioma, então melhor é baixar o facho e resignar-se em não sair, e uma boa dose de conhaque na frente do computador não estaria de todo mal, quem sabe entrar na rede, ver o quê que há por aí, talvez Beluzzi esteja ainda acordado e navegando em busca de clássicos como faz sempre e poderiam trocar algumas palavras e isto seria bom para encerrar a noite porque Beluzzi sempre tem algo nobre para dizer ou contar.


O programa estava aberto e Olavo notou, com decepção, que havia apenas uma notificação e depois de um grande gole de conhaque, clicou, e ali estava uma solicitação de amizade no nome de Lourdes Ballet e isto lhe jogou um gosto de oliva na boca e fez de sua alma um redemoinho que voltou no tempo 40 anos e pousou numa noite quente de agosto, em Madrid, quando depois de tocar Fotografia de Jobim, Olavo deixou o piano e no balcão viu o garçom aproximar-se e falar-lhe discretamente que “hay dos chicas que quieren invitarte a una copa” e então, um tanto curioso, foi sentar-se com as meninas, que se apresentaram como duas irmãs que viviam na Cataluña e estavam de férias em Madrid e disseram ter achado a música sublime e que Olavo pedisse o drink que quisesse, pois era merecedor, por ter tão grande sensibilidade ao tocar o piano e Olavo não conseguiu tirar os olhos de uma delas que em silêncio ouvia a irmã tomar a iniciativa da conversa e apenas respondia, como que hipnotizada, ao olhar do pianista, que para romper um pouco aquela cadeia de eletricidade lhes perguntou os nomes e sem prestar atenção à resposta, chamou o garçom para pedir “una caña, por favor”, pois esta era a bebida que elas tomavam, e ele pode então suspirar, relaxar e ouvir de sua preferida que elas haviam estado ali na noite anterior, e tinham gostado tanto que resolveram voltar e ele sorveu aquele espanhol com acento catalão que dava a sensação de que as palavras da menina saltavam de sua boca e flutuavam pelo ar como bolhas cristalinas e a voz era suave e segura, e a ele veio a lembrança de um minueto de Bach cheio de ornamentos, e então a irmã tirou da bolsa uma Polaroid e “vamos sacar fotos”? e fez questão de bater a primeira e Olavo se postou ao lado da menina, o flash espocou e verificaram que a foto havia ficado boa, apesar de não estarem fixos na câmera e sim ainda cruzando olhares e logo a irmã chamou o garçom para lhe pedir que batesse uma dos três, e quando a lâmina saltou da máquina também recebeu a aprovação de todos.

As lembranças seguintes, no entanto, se tornaram turvas devido ao álcool e Olavo tem na memória que depois disto se despediram na Puerta del Sol e a menina lamentou terem de voltar a Barcelona na manhã seguinte e não poderem se conhecer melhor e ele seguiu no taxi, pensando que não prestara atenção ao nome dela e também que aquele olhar era uma faca cravada no peito mas nada podia fazer pois estava num bom momento com Cora que estava grávida e dentro de duas semanas voltariam ao Brasil e sua vida seria uma outra paisagem e um novo texto.

Alguns dias depois, no telefone era Marquito, com seu sotaque porteño.
- Loco! Hay uma carta para ti en el Club.
- Carta? Que carta, Marquito?
- Yo que sé! A lo mejor de aquella mina que me hablaste.

A carta tinha letras redondas, algo assim como as palavras dela, e era da mais pura delicadeza. Agradecia a ele pelos momentos bonitos e musicais que haviam passado juntos e terminava dizendo que esperava que se encontrassem um dia.
Assinado; Lourdes Ballet

Olavo a leu 3 vezes antes de coloca-la covardemente numa lixeira. Melhor esquecer. Esquecer e seguir.

E agora, ali estava ela, 40 anos depois, lhe mandando um convite para amizade na rede. Havia muitas fotos em seu perfil e Olavo foi vendo uma por uma. Claro que o tempo tinha feito suas marcas, mas aquele olhar terno e acastanhado permanecia intacto. Fotos com filhos, com netos, com irmãos, muitas fotos de viagens, Lourdes com 50 ao lado do marido talvez, Lourdes com 40, que mulher linda!, Lourdes na praia, fotos antigas, Lourdes em Madrid com a irmã e assombrosamente Lourdes com Olavo no Club, cruzando miradas, e então não há como segurar as lágrimas que começam a brotar sabe-se lá de onde, coisa ridícula chorar deste jeito estas lágrimas de todo tipo e cor, lágrimas da mais profunda dor, do êxtase da alegria , lágrimas do que foi feito e do que foi relegado, lágrimas que inundam o conhaque e o salgam, lágrimas de saudades já esquecidas, lembranças perdidas que agora se transformam em fogos de artifício, rios pelos que se foram e já não voltam mais e assim foi o resto da noite do homem que toca piano que bebeu até a garrafa secar, que chorou até a ultimíssima gota e que antes de levantar da cadeira digitou na caixa de diálogos quase sem poder enxergar:

- Muchas veces me acordé de ti.

Num esforço supremo, aquele Olavo vazio e borracho conseguiu chegar tropegamente até o sofá e deitar-se de barriga para cima. Agora ria e calculava o quanto poderia pegar por seu velho Fritz Dobbert. Então, sua voz saiu alta e pastosa, com ares de praça de touros:

- Me voy a Barcelona! Yuhuuuu.

Pelas janelas pode ver que já havia um filete de manhã, e uma chuva fina avisava que seria um lindo dia feio. Se acomodou melhor, fechou os olhos e pensou: quero ter aquele olhar perto de mim neste pouco que talvez me reste. Antes de cair no sono profundo ainda murmurou:

- No tengo setenta. Tengo quince.

Fernando Corona - 14 - RJ



terça-feira, 21 de abril de 2015

GÊNIOS BRAZUCAS



Lendo uma biografia sobre o fantástico e quase desconhecido músico brasileiro Moacir Santos, achei esta pérola da flautista Andrea Ernst Dias, autora do livro;

DORIVAL CAYMII MOSTROU PONTARIA CERTEIRA AO USAR O MÍNIMO MATERIAL EM FAVOR DE UMA GRANDE MÚSICA.



Algo que penso: Chico, Caetano, Milton, Jobim são fabulosos arquitetos e engenheiros que trabalham soberbamente com uma vasta gama de materiais.

Mas Caymmi, pra mim, é gênio pela simplicidade. É aquele pintor que com três ou quatro pinceladas já cria um universo.

Acho que a canção “Só Louco” tem a menor letra da MPB. A gente nem nota.

"Só louco amou como eu amei
Só louco quis o bem que eu quis

Óh, insensato coração
Porque me fizeste sofrer
Porquê de amor para entender
É preciso amar, porque...

Só louco".

O outro gênio?

Jorge Benjor.

Depois de cantar JACAREZINHO qual é a palavra exata que a gente grita logo a seguir?

AVIÃO!!!

Não é óbvio e genial?

As letras de Jorge Benjor são tão malucas quanto as do folclore brasileiro.

Escravos de jó
Jogavam cachangá
Tira, bota,
Deixa o Zé Pereira ficar

Guerreiros com guerreiros
Fazem zig-zig-za
Guerreiros com guerreiros
Fazem zig-zig-za

A letra de Escravos de Jó não é a cara do Benjor?

Caymii e Benjor.

Pra mim, os grandes gênios brazucas.
FC - 15 -pOa


domingo, 19 de abril de 2015

CAUBI

Já faz tempo, mas muito tempo mesmo, estava eu, bem louco,  zapeando numa noite de carnaval e de saco cheio das imagens da avenida, resolvi assistir ao carnaval de clubes do Rio de Janeiro, afinal ali também tinha mulher pelada e de quebra, algumas baixarias.

Rolavam algumas entrevistas com famosos e de repente o repórter encontra Caubi Peixoto e faz com ele uma pequena entrevista. Isso estava acontecendo sem imagens. Enquanto as câmeras certamente procuravam as mulheres mais gostosas, Caubi ia tecendo comentários e o repórter, em um dado momento, anunciou que a banda estava chamando o artista pra subir ao palco e dar uma canja.

Durante a cobertura do bailareco, se podia ouvir muito bem o conjunto ao fundo, que era bastante competente na execução das marchinhas. Caubi subiu, cumprimentou os músicos e testou o microfone enquanto se  ouvia a introdução de uma marcha rancho.

No instante em que Caubi entoou as primeiras notas de Bandeira Branca, meu queixo caiu. A qualidade daquilo que ele estava fazendo era imensa. A afinação, o acabamento e a expressão se diferenciavam muito de tudo que tinha se ouvido naquele baile. Aquela execução impecável podia ser extraída dali e ser levada para um estúdio de gravação, para receber acompanhamento até de uma  sinfônica. Irretocável.

Com o passar do tempo, a gente vai descobrindo o que que realmente é  importante na vida,  e naquela noite, ficou claríssimo para mim que Caubi era um gigante. E isto ficou muito bem marcado na minha memória.

Ontem, mais de 20 anos depois, passei pela TV e estava passando um especial com Agnaldo Timóteo. Parei um pouco pra assistir. É um cara que também canta muito e sua performance artística me desperta imensa atração, e eis que de repente ele chama o Caubi pra fazer um dueto. Foi o máximo.

Aquelas duas figuras originalíssimas e brasileiríssimas, carregadas de personalidade, fantásticos artistas, ali sentados (por causa da idade avançada de Caubi, creio eu), rebentaram. Timóteo conduzindo. Num determinado momento faz-se o silêncio e Caubi entra arrasando. Perfeito. O público veio abaixo. É muita coisa.

Além do imenso  talento que este  cantor possui, é sabido o respeito que ele tem pelos instrumentistas e isso só faz aumentar a admiração que muitos de nós sentimos por ele.

Nestes programas que agora tentam criar e lançar novos ídolos não se vê ninguém que seja Caubi. Não se vê ninguém que queira ter uma característica própria. Além do mais, muitos deles utilizam uma inflexão yankee quando cantam. Eu acho  chato pra caramba.

Certa feita, numa outra entrevista, Caubi cantou à capela a frase “CONCEIÇÃO, EU ME LEMBRO MUITO BEM” e logo em seguida explicou sorrindo; “é a beleza da nota, meu irmão”. 


É isso aí. Caubi, até hoje,  busca a beleza da nota. Simples assim. Caubi é único. E é brasileiro.



FC – ABRIL – 15 - pOa



sábado, 18 de abril de 2015

E ASSIM NÃO ENTENDI NEVELS

Comentei com vocês que minha burrice e eu estávamos tentando ler E ASSIM FALOU ZARATUSTRA do gauchíssimo Nietzsche? Comentei, né?

Devo ter comentado que há um prólogo, que revela sobre qual assunto o livro versará. Não fosse isto, confesso com amargor, estaríamos ainda mais perdidos.

E devo ter contado também que acabei mandando apaputa.

Ta lá o livro, jogado no banheiro. De vez em quando olho pra ele, mas não me atrevo.

A obra tem capítulos pequenos, de uma página e meia ou duas e sempre termina com a frase “E assim falou Zaratustra”. Sempre que leio isso, marco a página, fecho o livro, coloco a mão no queixo e penso. “E assim nada entendeu Corona”.

Um amigo disse pra eu não esquentar. Diz que posso pegar qualquer capítulo e ler. A ordem não importa. Muito tranquilizador saber disto. Pensei então que dá pra ler de cima pra baixo e do fim pro meio. Tanto faz. Dá na mesma.

E isto me fez lembrar que, faz muito tempo, minha ignorância, que era muito jovem, e eu fomos assistir à Cidade das Mulheres, de Fellini. Já tinha visto Amarcord e não tinha entendido bulhufas. Com Cidade das Mulheres não foi muito diferente.

O filme estava passando no ABC, um cinema de arte aqui de Porto Alegre. Na época, deu no jornal que no dia da estréia, os rolos 2 e 3 foram trocados inadvertidamente pelo operador, o que me fez rir bastante, porque a meu ver, não faria a mínima diferença.

Bueno. Era isso, por hora.
Seguimo peleando.

PS - Nietzsche morreu louco e não comeu ninguém. Bem feito.

FC - abril - 15 - pOa



terça-feira, 14 de abril de 2015

A CARONA E A PROPINA


São dois assuntos distintos, mas fizeram parte de um mesmo dia.

No fim do ensaio um colega me ofereceu carona. Eu morava no Catete e estávamos em São Conrado.

Quem conhece o Rio de Janeiro sabe que uma carona destas vale ouro, principalmente neste caso, em que eu estava portando um amplificador pesadinho e por isso não tinha como pegar o ônibus.

Quando já estávamos no carro, entrando na avenida, o telefone de meu amigo tocou e terminada a ligação, me informou que iríamos até a Barra da Tijuca buscar sua mulher, mas que eu ficasse tranqüilo, depois me levaria em casa.

No momento que ouvi aquilo, me atirei pra fora do carro, com caixa e tudo. Não vê que já conheço estas caronas milagrosas? A Barra fica no sentido contrário e o trânsito estava caótico nas duas bandas.

Quando chegássemos lá, uma hora depois, seguramente a mulher dele iria sugerir que buscássemos uns tijolos na casa do primo Valdemar. Valdemar, por certo não estaria e teríamos de tomar café com biscoitos moles com a avó do cara, esperando por ele que não atenderia o celular nem por uma caralha, talvez estivesse na oficina, e eu seria obrigado então a ver a vózinha trazer as colchas que tinha bordado pra mostrar pra mulher de meu amigo que pediria pra aprender ali mesmo o ponto tão bonito e delicado, enquanto isso, meu colega tiraria o instrumento do estojo pra me mostrar um tema que teria composto na noite anterior, sem nem imaginar que meu olhar fixo na cozinha adivinhava o tamanho da faca com a qual eu assassinaria os 3 e depois enrolaria seus corpos nas colchas da velhinha antes que ela me oferecesse aquela coca quente e sem gás que me traria sem perguntar se eu tinha sede.

Nada disso aconteceu, pois como falei, o pânico fez com que me jogasse no asfalto. Meu amigo ficou surpreso por eu não ter aceitado o sinistro favor, e me viu cruzando a via, alvoroçado, por entre os carros, carregando com esforço o amplí, acenando pra ele, deveras aliviado que fiquei por ter tido a ágil decisão de me livrar da perigosíssima carona.

Eu sei muito bem como este tipo de coisa termina. A gente chega em casa 3 dias depois, todo escalavrado. O que parece um milagre se transforma numa tragédia. Desconfie sempre de caronas milagrosas.

Com a alegria de quem foge de uma prisão de alta segurança, entrei no táxi e nem me importei com os 50 pilas que iria gastar na corrida. Toca pro Catete que a vida é boa!

Larga distância, engarrafamento. Fui conversando com o motorista que se demonstrou esperto e articulado.

Quando já estava perto de casa o papo enveredou para a corrupção. Antes de eu pagar a corrida ele me confessou.

- Vou contar pra você. Eu sou formado em direito. Trabalhava com isto, mas pode acreditar que pra fazer qualquer processo caminhar é preciso molhar a mão de alguém.

E continuou;

- Enchi o saco de viver num mundo que só vai pra frente com propina. Larguei a advocacia de vez e vim dirigir táxi. To bem melhor agora.

Hoje lembrei deste dia. Certamente, pelo fato da palavra “propina” ser a palavra da hora. Puxaram uma pedra e parece que o castelo vai ruir por inteiro. O castelo da propina. Seremos o país da propina? Será que ela está entranhada em absolutamente todas as camadas da sociedade brasileira?

Dia destes vi Leandro Karnal na TV dizendo que não tem jeito mesmo, pois por aqui, é normal a mãe oferecer um sorvete para que o filho se comporte bem, assim como parece muito natural o pai prometer o carro em troca de boas notas.

Por estas terras, acho que desde crianças já somos formatados corruptinhos.



FC – março – 2015 – Poá



domingo, 12 de abril de 2015

O ÚLTIMO DESEJO DE VILSON

Vilson estava estirado na cama com o olhar fixo no teto. Já tinha experiência de dois infartos e aquele caminhão parado em cima do seu peito não deixava dúvidas sobre o que estava acontecendo com ele naquele momento.

Lembrou que o celular estava descarregado em algum canto da casa e também de que os vizinhos estavam viajando no feriadão.

Concluiu com isto que suas chances eram diminutas e quando as cenas de sua infância começaram a girar à sua frente sentiu que o fim estava muito próximo e resolveu deixar-se levar.

Fechou então os olhos para apreciar melhor as imagens das partidas de futebol e as corridas de carrinhos de rolimã que iam passando. Pensou que logo em seguida viriam as lembranças de quando entrava no quarto de Sônia, uma empregadinha que tinha vindo de Marau, gordinha e prestativa. Ah... o cheiro do quarto de Sônia. Isto sim, quase lhe fazia esquecer esta dor no peito.

Mas eis que um poderoso facho de luz riscou as pálpebras de Vilson e quando abriu os olhos viu que o apartamento havia sido invadido. Um velhinho, sentado na cama com um sorriso na boca olhava calmamente para ele. Vilson, com o resto de voz que ainda tinha, perguntou.

- Quem é você?

- Não me reconheces porque nunca acreditaste em mim, filho.

- Deus?

- Sim, Vilson. Eu mesmo. Vim te buscar pois é chegada a tua hora.

- Mas assim? O Senhor em pessoa? Ou em espírito, sei lá? Porque não algum emissário? Que importância tão grande tenho eu?

- Resolvi vir por tu seres tão honrado. Foste bom filho, és bom pai, ... Já faz tempo que te observo, Vilson. És digno.

- Mas tem de ser agora? Logo agora que vou lançar meu livro de Gramática Avançada?

- Por isto também, filho. Por seres um professor talentoso e esforçado. Por teres trabalhado honestamente a vida toda em troca de merreca.

Vilson por um momento, pensou que aquilo podia ser um sonho. A voz era convincente, mas um Deus falando gíria? Então reparou melhor naquela figura que tinha a barba por fazer e estava usando uma camisa Polo. Fazia mais o estilo de um jogador de dominó.


- Li teus pensamentos, Vilson. Eu também me modernizo. Avanço com a humanidade. Além do mais, sou em quem cria estas gírias e as introduz no inconsciente coletivo. E moda, cada um escolhe a sua. Não seja careta, filho.

Vilson se contorcia enquanto pensava em algo pra ganhar tempo.

- Mas Senhor...tem de ser agora? Já, já?

- Demorô, Vilson.

- Sem direito a nada? Quem sabe um último pedido?

Deus coçou a barba rala e com um olhar astuto perguntou.

- Que pedido seria este, filho?

- Me envergonha tamanha luxúria Senhor, mas gostaria de ter a chance de fornicar com uma mulher perfeita, a mais gostosa de todo o planeta e de todas as épocas.

Deus, depois de estrepitosa gargalhada, falou.

- Queres dizer então que o que tiveste na vida não foi o bastante?

- Não mesmo, Senhor. Respondeu Vilson, arquejando.

- E a Paulinha em 92?

- Era linda, Deus, mas aquelas canelas finas me davam desgosto.

- E aquela prima do seu amigo Norton?

- Rosto de princesa, Senhor. Mas tinha celulite até na sola do pé.

- É Vilson. Talvez tu tenhas razão. Também tive pena de ti nesta ocasião. Isto é um pouco irregular, mas acho que posso te quebrar essa, já que sou eu quem manda mesmo.

Quando Deus terminou a frase, a dor no peito desapareceu milagrosamente e Vilson repentinamente se sentiu como quando tinha quinze anos.

- Vai até a sala, filho.

Vilson levantou agilmente da cama e perguntou vacilante.

- Pra que Senhor?

- Vai.

Então Vilson tomou a direção da porta enquanto ainda ouvia a voz resoluta de Deus que se acomodava melhor na cama e com o controle remoto na mão sentenciava, sem tirar os olhos da TV.

- Filho! Tens 30 minutos.

Quando Vilson entrou na sala quase teve um outro infarto em cima do que já estava tendo. Deitada no sofá estava alguém que se fosse chamada de deusa seria uma ofensa. Vilson se aproximou. A mulher estava nua. Cabelos cacheados e longos, um sorriso com dentes perfeitos, os peitos eram turbinas celestiais, as coxas daquelas de quem joga vôlei na areia desde o dia em que nasceu, com pelos loirinhos espalhados com divina perfeição e os pés, ah os pés, Vilson pensou que poderia dedicar uma semana inteirinha só praqueles pés. Sem saber ao certo como começar, falou com voz trêmula:

- Como você é linda menina. O que vai fazer por mim nestes meus últimos momentos?

Ela responde dengosa.

- O que eu vou fazer, Vilson? Vou fazer tudo. Tudinho que você quiseres.

- Como?

- Tudinho que você pedires.

- Péra, péra péra aí. A regência tá errada. Esta terceira pessoa não é assim.

Ela então começa a fazer rosquinhas com o dedo indicador na perna de Vilson e pergunta.

- Que foi,Vilsinho? Algum “poblema”?

- Eita, menina. Isso não vai dar certo. Espera aí um pouco.

Vilson foi até o quarto ter com o Senhor mas ali já não havia mais ninguém. Nem rastro Dele. Voltou aflito.

- Menina! Cadê Deus?

-Ué. Deve ter ido buscar algum outro homi que tá desencarnando.

- Mas e a onipresença?

- Oni o que?

- Nada, nada. Acho que vou tomar uma vodka tripla.

- Bobagem, amor.Não precisa bebida. Chega eu pra que tu teje satisfeito.

- Teje...? Nem com morfina eu aguento “teje”. Sabe o que, menina? Vou te dar um chinelo e um lençol, então você zarpa e eu vou ficar por aqui tendo o resto do meu infarto, certinho?

Pegou a deusa pelo braço, abriu a porta e sem dar a mínima pras queixas dela, ainda disse.

- Vai pela escada. Se você não se dissipar até o térreo pode dar minha meia hora pro zelador e que ele “seje” feliz!

Ela, na ansiedade da saída, deixou cair o lençol e Vilson ainda pode ver aquela bunda do outro mundo, o que quase o fez mudar de ideia, mas fechou a porta com firmeza e respirou fundo pro cérebro funcionar um pouco melhor. Uau, que domingo, pensou. Mas não ia dar. Ser PHD em língua portuguesa acaba sempre dando este defeito.

Então olhou o relógio e viu que ainda tinha 25 minutos. Pegou o telefone e ligou pra emergência.

– Instituto de cardiologia a seu dispor.

- Alô! Eu queria pedir uma ambulância.

- Qual os sintomas?

- Querida, não é qual. É quais. Mas deixa prá lá. É infarto agudo de miocárdio.

- Mas como o senhor sabe? É pro senhor?

- Não. É pro meu primo Gilcinei. Olha só. Tem de vir rápido. Ele já está com uma tonalidade azulada.

- Ok, senhor. Já temos o endereço e estaremos chegando em 15 minutos.

Vilson bateu o telefone pra não encher a telefonista de palavrões porque este gerúndio aplicado desta forma sempre o deixava irritado,e seguido a isto foi até o banheiro, abriu uma cartela de Isordil e colocou um comprimido debaixo da língua.

Voltou ao quarto, se esparramou na cama e desligou a TV que estava no canal que Deus havia escolhido, no qual estava passando um programa sobre as formidáveis cataratas do Niágara. Que ego que Ele tem, pensou. Já não chega ter criado tudo e ainda quer ver os vídeos?

E o mais engraçado, ficou a pensar, é que Ele tem a maior cara de brasileiro. A camisa Polo tava até meio desbotada. Se for brasileiro mesmo, só volta no ano que vem , e se for baiano então, haha...esquece.

Vilson se sentia bem como nunca e agora era só esperar a Samu chegar. Certamente seria levado para fazer um cateterzinho básico e de tarde já estaria de volta para ver o jogo na TV, com certeza.

Mas que português horroroso o desta menina! Que lástima. Mas também, que coxas. Ah... e aquele olhar? Aquela cinturinha com aquele umbiguinho perfeito? E as panturrilhas? E aquele perfume de amêndoas que ficou no ar? E aquelas mãos com unhas tão bem feitas? Ai, ai, ai. Será que dá tempo? Bem, quando ouvir a sirene eu paro.



Fernando Corona







sexta-feira, 10 de abril de 2015

ÍNDIOS! ESTAMOS SENDO ATACADOS

“Índios! Estamos sendo atacados”. Era assim que eu começava minhas solitárias e imaginárias brincadeiras com o Forte Apache quando tinha aí pelos meus 6 anos.

Quem é muito jovem não pode acreditar que, em remotos tempos, este foi o brinquedo mais almejado pelos meninos.

O brinquedo Forte Apache consistia em uma fortificação de madeira em forma de quadrado, coloridos bonequinhos de plástico e mais apetrechos. Ferramentas, armas, carroças, diligências. Os bonequinhos eram soldados e índios. 

Soldados eram mocinhos e a indiarada era do mal. Índios tentavam invadir o Forte e os soldados defendiam-no. Eu brincava largo tempo com meu Forte Apache.

Meus pais me davam brinquedos, mas felizmente também me apresentaram aos livros muito cedo e foi quando li “O último dos Moicanos”, de James Fenimore Cooper, que comecei a descobrir que podiam existir índios do bem. Aliás, sempre que repassa na TV o filme estrelado por Daniel Day Lewis não perco. Pra mim é o melhor filme de aventura já feito, seguido de perto por “Dança com Lobos”.

Outro livro que li sobre o tema, foi Winnetou, de um escritor chamado Karl May.  May era alemão e, sem nunca ter vivido nos EUA, escreveu uma coleção que narrava fantásticas histórias sobre índios americanos. Se não me falha a memória, Winnetou era índio e era herói.



Passados 50 anos, desde o evento Forte Apache, a gente vê com amarga clareza o fim lamentável e indigno que as comunidades indígenas tiveram e estão tendo. Os poucos índios que sobraram e ainda não foram duramente civilizados estão sendo dizimados e expulsos de suas terras pelo poder econômico, pela feia ganância do homem branco. Não está na mídia brasileira, é claro. Sabemos disto pela internet.

Aqui no Brasil, nem mesmo este governo que se diz de esquerda, fez qualquer coisa pelos índios, ou se fez, é o pouco quase nada. Continuam sendo dizimados.

Mudando de assunto, mas continuando no mesmo, de vez em quando aterrissa aqui pelo Catete um trio de colombianos que se paramentam de índios americanos.

Usam grandes cocares e miçangas e tem um equipamento de som com grande qualidade. Tocam grandes flautas andinas em cima das bases pré-gravadas.

Ganham seu dinheiro desta forma nas praças e avenidas. Fazem muito bem o que se propõem a fazer e acho que vendem bastante CD. Dia destes parei para vê-los,e quando aqueles colombianos fantasiados de Apaches tocaram a música do Titanic, confesso que me deu um nó no cérebro.

Agora há pouco escutei ao longe o som de suas flautas reverberadíssimas e logo me veio à cabeça:

“Índios! Estamos sendo atacados”.



Fernando Corona


quinta-feira, 9 de abril de 2015

TRÂNSITO LOUCO, MEU!



Vivi no Rio de Janeiro por 12 anos e não precisei ter carro lá. E não andava de latão tampouco. Felizmente o metrô me bastava e pegava um pouco de taxi também, que é barato e abundante. A isto também se pode chamar liberdade, não é não?

Agora to dirigindo por Porto Alegre, porque necessito, e vou muito humilde de Corsa ou Gol, os cascudinhos, que são emprestados.

Paro no sinal atrás de um caminhonetão. A meu lado esquerdo para outro caminhonetão preto, maior ainda. Do lado direito outro.

Estou cercado. Os vidros são todos "fumês", termo que se usava na época em que eram proibidos. Não se vê quem está dentro. Também não enxergo o restante do universo. As caminhonetes são gigantes e cobrem minha visão do mundo em volta. Não vejo nada! Taquiuspariu! Já ouvi falar que o carrão tem a ver com pau pequeno. Parius do cu da bunda! Como deve ter pau pequeno nessa cidade! Como tem carrão por estas bandas!

Aliás, nas leis secas de outra cidade, o Rio de Janeiro, um fenômeno registrado foi o imenso número de carrões que não paga IPVA e muitos deles, se descobriu também, as revendedoras e a justiça andam atrás, devido à falta de quitação das parcelas. É mole?

Mas voltando à capital gaudéria,o trânsito está tenso e violento por aqui também. Antigamente era mais gentil e civilizado o procedimento dos motoristas de Porto.

As maiores agressões e barbaridades são feitas pelos carrões. Cada vez mais, ter dinheiro significa querer ser o dono do mundo e cagar para o resto. A ignorância, quando somada ao poder econômico, geralmente significa perda do coletivo. A terrível falta de senso crítico daqueles que poderiam tê-lo vai ajudando a destruir, dia a dia, o sentido de comunidade nas cidades do terceiro mundo.

Como falei, no Rio eu era pedestre. Acabei me acostumando a fugir dos carros. No Rio de Janeiro os carros tentam te atropelar. Te fazem correr mesmo. Verdade verdadeira.

Aqui em Porto Alegre é o contrário. Quase atropelo as pessoas, que levantam a mão pra avisar que estão atravessando a rua. Tenho de me adaptar a estas, para mim, novas maneiras de cruzar a via, senão vou acabar esmigalhando alguém.

Dia desses, quando estava iniciando a mudança pra cá, uma doida se atravessou de repente na minha frente, com o braço erguido. Ficou muito irritada por eu não ter freado antes. Fiquei olhando pra ela muito assustado. Achei que era louca. Não sabia do bracinho. Agora ando mais atento.

E os ciclistas então. Também tão bem loucos! No Rio era perigoso levar um bicicletaço nas guampas ao atravessar a rua. Os ciclistas andam na contramão em alta velocidade. Aqui no sul,o perigo está em cima da calçada e não sei se estou enganado, mas os ciclistas daqui me parecem tensos e irritados. Talvez seja só impressão. Talvez seja pelo trânsito sempre hostil a eles, não sei bem, mas dá pra ver que existe uma guerra urbana com diversas facetas, uma guerra alimentada por uma raiva que cresce e vai se apoderando de toda gente.

Pra espairecer, termino com uma historieta, relacionada a carro, que aconteceu na década de 40, na cidade de Lavras, ali, pertinho de Bagé.

Um fazendeiro conhecido da região tinha comprado um Chevrolet Rabo de Peixe. Era um carrão,que toda sexta feira ele estacionava na frente do bolicho do centro da cidadezinha pra fazer as compras da semana, ou o rancho, como ainda se fala por aqui.

Sempre juntava muita gente em volta do carro, que era uma raridade por aquelas paragens. O povaréu ficava bisbilhotando em volta do carro, enquanto o gauchão tava lá por dentro do mercado comprando víveres.

Um dia, o homem sai do Bolicho todo carregado e depois de colocar vários pacotes dentro do carro, se dirige até o capô da frente para dar manivela. Pra quem não sabe, houve um tempo em que ainda não haviam inventado a chave de ignição. Nessa época os carros pegavam à base de manivela.

Então o vivente, todo posudo, todo exibido,se abaixa e coloca a ferramenta no local indicado, que fica na altura do para choque frontal, e dá a partida.

Lamentavelmente, ele tinha esquecido de colocar a marcha em ponto morto, e o veículo, que estava engatado em primeira, repentinamente ganha vida e passa por cima dele sem mais, descendo em seguida uma rampa até parar numa arvorezinha com o motor fazendo uma barulheira danada e as rodas girando no capim.

Por sorte, o carrão é alto e não machuca muito o gauchito e ele então levanta imediatamente do chão, batendo a poeira das calças. Olha pra pequena multidão que está atônita à sua frente, recoloca o chapéu na cabeça e fazendo pose, em tom de queixa, grita bem alto pra todo mundo ouvir;

- Ela tá bem louca, hoje!

E pra terminar o assunto bem terminado mesmo, vai uma indagação sobre o tema “trânsito” do filósofo e pensador Ben Ismael Locks:


QUE DIREITO VOCÊ ACHA QUE TEM DE ACIONAR A BUZINA POR UM MOTIVO TÃO PEQUENO?




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