Apesar de ser agosto, a noite era de clima seco. Fazia uma lua gigante e um frio fininho cortava Porto Alegre. Domênico, através da janelinha da guarita, viu ao longe os soldados cruzando o parque. Agora tinha isto. Soldados pela cidade inteira. Era a tal da revolução que todo mundo andava comentando. Domênico se espreguiçou e cruzou a portinhola da cabine apertada para poder esticar um pouco as pernas e dar uma olhada nos bichos. Pelo speaker o vigia ouviu o locutor da Guaíba anunciar que eram exatas duas da manhã e que na rua Caldas Júnior o termômetro batia nos 10 graus. Havia tanta lua que a Redenção parecia uma festa. Nem precisava lanterna. Domênico caminhou por entre a vegetação até o viveiro dos jacarés, que sempre lhe causavam assombro e talvez por isto fossem seus prediletos. Ficou ali por alguns instantes espreitando para ver se algum deles se movia, mas nada aconteceu, ainda mais com todo aquele frio. Os animais estavam uns por cima dos outros, petrificados, completamente imóveis. A imagem estática era apenas cortada pelo tênue filete de vapor que saia das ventas dos animais. Isto inspirou Domênico a tirar do bolso da japona um maço de Continental sem filtro. Enquanto batia o cigarro na palma da mão, pensou que os jacarés não deviam se importar muito com o frio, afinal eram animais gelados, mas talvez as araras estivessem sofrendo. É claro que em julho tinha sido bem pior, fez perto de zero e bateu chuva quase duas semanas seguidas, mas 10 graus ainda era uma temperatura bastante baixa, mesmo com tempo seco. No momento em que colocou o cigarro na boca, o vigia viu que um vulto se aproximava. A essa hora só podia ser Pedro. Era Pedro mesmo. O sorriso na boca não desmanchava nunca. Se aproximou e apertaram as mãos.
- Buenas, guarda Belo.
- Buenas que me espalho, pescador.
- Como estamos?
- Tudo na paz do Senhor. Vai uma carpa no capricho?
- Vai sim, Domênico. Vim buscar meu peixe.
Pedro se abaixou e de cócoras, olhando ao redor por sob a copa das árvores, perguntou.
- E a guarnição? Já passou?
- Passou mais cedo, mas tem dois soldados fazendo a ronda. Faz uns cinco minutos que vi eles trotando pros lados da Bonifácio, mas até darem a volta toda, vai levar mais uns vinte. Dá tempo de sobra.
Os dois homens tomaram a direção da guarita. Pedro sabia que o vigia tinha um café quente para lhe oferecer e Pedro precisava muito deste café. Estava exausto. Andava trabalhando doze horas diárias na obra e às duas da matina já deveria estar dormindo, pois acordava às 6, mas não tinha outro jeito.
Enquanto Domênico foi até a casinha, Pedro sentou num banco ao lado do laguinho e de dentro de uma sacola tirou um saco de aniagem. Seguido a isto, voltou a enfiar a mão na bolsa, desta vez com cuidado, como se dentro houvesse um animal venenoso, e trouxe do fundo um carretel de linha.
Domênico já estava sentando a seu lado com a térmica e os copos.
- Vai café, pescador?
- Só tô pensando nisso, mestre.
O vigia serviu um copo e o alcançou a Pedro.
- E teu guri, Pedro? Melhorou?
- Seu chefia... acho que vai se salvar. Anteontem levamos ele no Pronto Socorro e o médico do plantão disse que o pulmão tava tomado. Deu uma receita de remédio que tive que comprar naquela noite mesmo, se não ele ia ser levado pela febre. Acabei gastando tudo o que tinha, mas hoje, no fim da tarde já vi ele com um brilho mais vivo no olho. Zezé é forte, vai aguentar. Não vou deixar nenhum dos meus se irem, Domênico. É um batalhão, eu sei, mas vou aguentar o tranco. Os pais da Sandra tão lá em casa também, e como tu já sabe, só eu trabalhando. Às vezes quase me desespero, mas passa. Vai passar sim. E meu guri vai ficar bom. Com remédio certo e carne de peixe.
Domênico serviu café para si e ofereceu um cigarro a Pedro que não aceitou.
- Gracias, velho. Quem não tem dinheiro não tem vício. Só o café já tá mais do que bom.
Os dois tinham se conhecido nos canteiros de obra, e apesar da diferença de idade, começaram uma amizade que já durava bem uns dez anos. Talvez tenha sido um grenal, no qual se encontraram ocasionalmente, que os tenha aproximado em definitivo, quando acabaram tentando curar suas cabeças inchadas com duas garrafas de cachaça da pior espécie. O Inter tinha tomado 4 do rival e aquela goleada doeu fundo. Tempos depois, Domênico teve de largar o canteiro por conta de um problema na vértebra. Carregou um bilhão de tijolos até o dia em que as costas estalaram. Passou um mês paralisado na cama e por fim conseguiu uma aposentadoria por invalidez. Teve sorte também, pois o patrão da mulher trabalhava no município e logo conseguiu coloca-lo no parque como vigia à noite e assim seu ganho ficava um pouco melhor. Andava pelos 50. Era um mulato delgado e alto que sempre era obrigado a satisfazer a curiosidade dos colegas quanto a este nome esquisito que levava. Dizia que sua mãe havia lido numa revista e tinha achado bonito. Isto não era verdade. A mãe de Domênico era camareira do Plaza e acabou se deixando levar pelos encantos de um nobre Veneziano que havia descido no porto. Assim como veio, o italiano se foi sem deixar vestígio, deixando a moça apaixonada e grávida. A mulher foi vista muitas vezes pelo cais do porto, depois do expediente, perguntando se alguém sabia se havia embarcado um Duque ou Conde chamado Domênico, mas não havia nem sinal. A expressão "ficou a ver navios" se revela triste, quando entendemos que certamente provém dos tantos corações machucados, corações partidos por viajantes que se foram.
Já Pedro tem todas as mesclas. Se trata de um pelo duro legítimo, baixo e atarracado, amulatado de olhos verdes, descendente dos primeiros portugueses que aportaram por estas terras e que foram se misturando com índios, negros e espanhóis. Nasceu no litoral, filho de pescadores de Tramandaí. Seu pai tinha barco e tudo, mas o rapaz com 20 anos resolveu ir para a capital em busca de outras oportunidades. Acabou se enrabichando com uma guria do Partenon e logo vieram os filhos e assim, a vida foi rapidamente se tornando difícil e com tantas bocas para alimentar, o remédio foi aprender o ofício de pedreiro.
- Domênico, por que é que de uns dias pra cá tem esta soldadama por toda a cidade?
- Revolução, pescador. Não ouviu falar?
- Na firma eles andam comentando, mas nem presto atenção. É um tipo de guerra que nos metemos?
- Dizem que é uma guerra contra os comunistas.
- E quem são os comunistas?
- Não sei. Nunca vi um. Mas boa coisa é que não é. Cadê o pão?
- Taqui.
Pedro levantou, tirou do bolso um pequeno toco de pão e voltou a sentar. Manuseou o carretel de linha até liberar o anzol. Mostrou a Domênico.
- Olha só. Troquei por outro um pouco maior. Estes peixes andam muito graúdos.
O vigia viu o reflexo da lua cintilando no anzol dourado. Falou em tom grave.
- Vai logo, antes que eles voltem.
Pedro arrancou um pequeno pedaço do miolo do pão, amassou-o até tornar-se uma esfera quase perfeita e colocou-o no anzol. Num gesto hábil jogou a linha na água, ali pertinho, coisa de dois metros, e nem 5 segundos se passaram, já sentiu o puxão brutal. Estava fisgado.
- Olha só, guarda Belo, como ela puxa. Ela é valente. É uma carpa grandona.
Domênico, às vezes pedia para segurar a linha e sentir o peixe lutando, gostava da sensação, mas esta noite tinha muita luz no parque e podiam ser vistos de longe. Queria que Pedro terminasse logo com aquilo. Se fossem pegos, perderia o emprego na certa.
- Tira esse bicho logo de uma vez, Pedro.
Pedro acatou o pedido do amigo e trouxe o peixe para a superfície. Era uma carpa amarelada e imensa. Ficou se debatendo e roncando na grama do canteiro.
- Que baita peixe, pescador! Este deve ser o maior que tu já pegou. Olha o tamanho dessa cabeça.
- É sim. É linda ela. Deve ter uns 6 ou 7 quilos. Foi bom eu ter trazido o saco grande, senão ia ficar o rabo de fora.
Sem perda de tempo Pedro colocou o animal e a linha dentro do saco e limpou as mãos apressadamente no capim gelado. Secou o resto nas calças mesmo.
- Bueno, Guarda Belo. Me vou antes que os soldados voltem.
- Acho bom. Tenho a impressão que ouvi trote pros lados da Osvaldo.
Os dois fizeram silêncio e Pedro inclinou a cabeça para quem sabe escutar o som dos cascos.
-É sim. Acho que eles já tão voltando. Domênico. Domingo destes vou te convidar pra comer um peixe lá em casa. É só o Zezé arribar. Combinado?
- Combinado, pescador. Agora vai. Não perde tempo.
Pedro se esgueirou por entre a copa das árvores e rapidamente chegou até a João Pessoa. Não queria caminhar de jeito nenhum pelo interior do parque, pois podia ser revistado, então na avenida se sentiu mais aliviado. Teria pela frente um bom bocado ainda. Pegar a Ipiranga, andar um bom trajeto até chegar no Menino Deus. Depois tinha de subir toda a Silveiro até o morro de Santa Tereza, mas não havia o que lamentar, pois tinha o seu peixe bem guardado e num passo acelerado levaria menos de uma hora para chegar em casa. Por sorte a noite apesar de fria estava seca e Pedro foi espiando as estrelas e assoviando baixinho uma do Teixeirinha pra ver se afastava um pouco os maus pensamentos. A caminhada seguia serena e tudo parecia tranquilo até à esquina da Venâncio, mas são coisas que acontecem nessa vida, o cenário, algumas vezes, muda bruscamente, a paisagem se torna irreconhecível e foi exatamente isto que Pedro sentiu quando ouviu o forte ruído do motor e ao voltar-se, se deparou com o camburão vindo em alta velocidade pela contramão e foi aí que sentiu o gelo percorrendo a espinha, pois teve a certeza de que era com ele a confusão, mas o veículo passou rente e 50 metros adiante abordou 3 homens que saíram sabe-se lá de onde e cruzavam a via. Pedro atravessou a avenida em direção à calçada oposta com o coração pulando nas têmporas. Não quis mudar de direção para não parecer suspeito mas também quis evitar passar tão perto dos oficiais que agora gritavam nervosamente para que os homens se deitassem no solo e Pedro, sem parar de caminhar, arriscou olhar praquilo e viu que eram rapazes franzinos que não teriam mais de 20 anos, certamente estes pirralhos não seriam os comunistas, e quando viu um dos soldados batendo com a coronha do fuzil na cabeça de um deles experimentou um sentimento raro de medo misturado com raiva latejando no peito e isso o fez acelerar a marcha em direção à Azenha mas só começou a correr quando ouviu aquele estampido tão forte, o ruído do aço contra o aço, tão feio, sem dúvida era tiro, mas será que atiraram neles? ou tentaram fugir quem sabe? mas por que atirar assim em alguém? são uns meninos, uns fedelhos, o que teriam feito de tão grave? e Pedro com seu valioso peixe que ainda se debatia debaixo do braço só parou de correr quando cruzou a Ipiranga e então, sem ar e sem forças, se apoiou na mureta da ponte pra botar as tripas pra fora nas águas do riacho, que desespero, que sensação horrorosa esta, ter a morte assim tão perto, que sentimento tão doído de desamparo, uma pena tão grande daqueles três, podia ter sido qualquer um, podia ter sido ele, e por que não? a não voltar mais para casa, a não ver nunca mais seus filhos, podia ter sido ele, por algum engano qualquer, agora podia estar deitado no frio do asfalto sobre um poça de sangue, podia ter sido...
Foi Zezé mesmo quem usou os braços fortes e tatuados para tirar a grande mala do bagageiro do ônibus e depois de estancar por alguns segundos em frente a um ponto de táxi resolveu que faria o trajeto a pé mesmo. Foi então puxando cuidadosamente a mala vermelha pelas calçadas irregulares de Tramandaí, nas quais não pisava havia mais de 5 anos, 5 anos de ausência que pareciam 10, embarcado na sua maior parte do tempo, vivendo uma dura e diária tentativa de frustrar a caça das baleeiras nos gélidos mares japoneses, mas agora estava no seu chão, do outro lado do mundo onde fazia uma manhã luminosa de dezembro com pouco vento, apesar de ser ainda primavera, então Zezé foi respirando aqueles ares de nostalgia, tentando controlar a ansiedade de chegar logo de uma vez e ver sua gente. Não o estavam esperando, pois não havia dito que chegaria. Seria quase uma surpresa. Depois de cruzar a Flores da Cunha, Zezé entrou com o coração apertado na Riachuelo e já da esquina pode ver a casa, bonita que lhe pareceu, pintadinha e bem conservada e ali na varanda, sentado com chimarrão na mão, o velho Pedro, seu pai, parecia sorrir sem razão, como sempre, e esta visão fez Zezé voltar 40 anos até aquela madrugada em que a febre amainou e a fome lhe fez acordar e sair da cama e ao chegar na modesta cozinha viu seu pai ali de pé, na penumbra, com os olhos molhados de quem chora, que gozado, pai ri, pai nunca chora...
- Volta pra cama Zezé. Tá frio.
Nisso a atenção do menino foi atraída pelos estertores da carpa dentro da pia. Se aproximou com olhos arregalados.
- Bah pai, que peixão! Qual é a marca?
- Não é marca, Zezé. É raça que se diz.
- Qual é a raça?
- É carpa.
- Ela vai morrer?
- Vai.
- Quando?
- Vai dormir, Zezé.
- Ela precisa morrer?
- Vai pra cama.
- Pai, tô com fome.
- Vai pra cama filho. Vou te fazer um pão com manteiga. Te levo lá.
Zezé afastou estas tão claras lembranças para pular o portãozinho como fazia quando era adolescente e viu como marejavam os olhos do velho antes do abraço forte. Olharam-se em silêncio, para quem sabe descobrir as marcas que o tempo havia feito.
- Como estão as coisas, pescador?
- Na santa paz, Zezé. Que coisa esta. Faz muito que ninguém me chama pescador.
Pedro passou a mão no rosto barbado do filho. Acarinhando a saudade, brincou.
- Meu filho comunista se vai por este mundo afora e demora, demora tanto a voltar.
Zezé abriu um sorriso largo.
- Não é comunista, pai. É ativista. E a mãe?
- Foi na feira. Não demora a chegar. Mas, entra, vamos tomar uma purinha pra comemorar.
Zezé entrou na casa de cheiros tão familiares. Quase nada havia mudado com exceção da pintura nova. Sentou-se na cozinha, enquanto o velho abria armários e escolhia copos.
Pedro foi servindo os copos com a azulzinha de Santo Antônio e indagando.
- Mas Zezé, tu deve tá com fome. Queres comer alguma coisa?
Pela janela, o filho pode ver as andorinhas pousadas nos fios de luz. Isto era prenúncio de chuva. Não tinha erro. Zezé tinha aprendido isso com o velho, como tantas e tantas outras coisas importantes e este pensamento fez com que sentisse uma paz imensa acariciando o peito. Uma paz que, talvez até aquele dia, nunca tinha sentido. Sem tirar os olhos dos pássaros, aquele homem forte, tisnado pelo sol de tantos oceanos, respondeu ao velho quase num engasgo.
- Tô com fome sim, pai. Tem pão com manteiga?
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