Sou pintor. Pintor de telas. Ou quadros, como se fala mais popularmente. Utilizo óleo e apenas óleo. As outras tintas jamais me interessaram. Minha pincelada é exatamente Toulouse ou Modigliani, e quando quero também sou Picasso. Saiba você que deixei de tentar criar qualquer coisa, e isto faz muito tempo. Não tenho vergonha nenhuma de revelar que num determinado momento de minha vida resolvi me dedicar por inteiro e até meu último dia à cópia. O resumo de minha passagem pelo planeta se tornou uma busca incessante pela cópia exata. A cópia absoluta, como gosto de dizer até hoje. Em frente ao cavalete podia ficar muitas horas copiando e recopiando incansavelmente Rembrandts, Cezanes e Monets. Isso tudo principiou no século passado, quando perambulei pelo velho mundo, quase morando nos museus e foi nos museus que estudei a técnica pictórica até as últimas consequências. Copistas espanhóis e franceses acompanhavam de perto, com curiosidade e estupor, a exatidão da cor e do traço de meu trabalho. Quando voltei ao Brasil, trouxe minhas melhores réplicas de muitas das mais famosas telas da história da humanidade e é em cima delas que ganho a vida. Tenho sorte de, apesar da idade avançada, não necessitar de óculos e ainda saber com justa precisão a quantidade de luz a ser empregada nas obras que sempre consigo vender por um bom preço. Mas não pense que esta foi uma jornada fácil e rápida. Levei 60 anos para assassinar meu ego de vez e me tornar o que sou agora sem sentir pontadas na alma. Sou um pintor copista. Simples assim. Eu copio. E também me custou 60 anos descobrir que este novo "eu" precisava viver só. E assim estava sendo. Cheguei a um ponto de harmonia tal, que sentia intenso prazer no simples ato de refletir. Quando me cansava desse pensar ou de tanto pintar, sempre acabava sendo levado até a areia da praia e foi em frente ao mar que fui descobrindo uma maneira de paralisar pensamentos. Acho importante lhe dizer que isto é de extrema valia. Numa destas caminhadas comecei a achar que Juarez Matos tem uma sonoridade por demais estranha a tal ponto de perder por completo seu sentido, e lembro que isso aconteceu no exato momento em que o sol desaparecia por trás dos Dois Irmãos. Sim. Você pode me chamar desta forma, se quiser: Juarez. Está escrito numa carteira de plástico que sou Juarez Matos e este nome está junto à fotografia de meu rosto. Dia destes pintei minha carteira de identidade detalhadamente, frente e verso, numa tela de mais de 3 metros de altura e a coloquei na sala de minha casa, na Gávea. Talvez tenha feito isto com medo de perder os fios de conexão. Quando não se tem com quem falar ou quando não se ouve o som da própria voz por largo tempo, pode haver o perigo de você perder contato com a torre. Então, toda manhã, quando desperto, tomo a direção da sala e paro em frente à tela. Ali está minha foto. Ali está meu nome. E assim não me sinto tão perdido. Sim, eu moro na Gávea. Moro muito bem, não duvide disto. Dia destes vendi um Gauguin por quase 10 mil doletas. Verdade. Os abastados cariocas pagam e ficam felizes. Então minha vida é tranquila, pode acreditar. Quero dizer...era tranquila até aquele dia de São Sebastião, como lhe conto a seguir. Naquele feriado que se iniciava, naquele fim de tarde de sexta feira, o Rio de Janeiro já estava melancolicamente vazio. Apesar da noite já estar se apresentando, o calor ainda batia nos 40. Tinha tomado meu terceiro banho naquele dia e estava no Jobi, bebendo, absolutamente sem brisa, sem vontade de nada e sem ninguém para trocar qualquer palavra, quando vi aquela mulher tropeçando pela calçada, vindo na direção de minha mesa. Estancou frente a mim com olhar fixo. Não a conhecia, ou não lembrava. Pensei que poderia ser até uma cliente, mas não. Tinha os olhos vermelhos e inchados. As lágrimas corriam. Teria 30 anos, no máximo. Pulseiras, correntes e anéis. Burguesia etílica. Conheço um pouco este estilo. Então a moça revelou sua bêbada e chorosa voz, num tom de sentença inapelável.
- Vou dar pra você.
Fiquei sem ter o que dizer a ela que continuou.
- Meu marido tá com outra...descobri hoje. Filho da puta.
E desabou num choro convulsivo. Os garçons se aproximaram para quem sabe me livrar da doida, mas algo me fez querer que ela não se fosse e depois de um gesto vago em direção a eles para que não fizessem caso, convidei-a para sentar e lhe ofereci algo para beber.
- Descobri hoje de tarde. Como é que ele pôde? Com a Tânia?
Logo com ela, meu Deus? Mas não vai ficar assim. Acabei de dizer pra ele que iria trepar com o primeiro que encontrasse ... e você foi o primeiro. Então é você.
Continuei em silêncio, sem saber o que fazer. Ela exalava álcool e cigarro por todos os poros, estava num estado mental deplorável, mas eu podia notar que era uma mulher estupenda em suas formas e a cabeleira longa e densa foi o que mais me encantou, a forma daquele cabelo grosso, castanho, suave. Tive vontade de enfiar meus dedos naquelas fartas madeixas mas não havia bebido o suficiente para também ter coragem para selvagerias.
- Vai me comer ou não? Se não vai, fala logo. Vou embora.
Devo lhe dizer que nunca fui covarde. Nunca me aproximei das loucas, das insanas. Nunca me aproveitei das drogadas nem das chucas, mas talvez a porra da vida se aproximando da reta final tivesse me transformado num serzinho abjeto naquele exato momento de tamanha oferta e acho que pensei que não teria outra oportunidade de estar em uma cama com uma mulher de beleza tão generosa e foi quase um ato impensado que me fez responder num tom baixo e vil, para não ser ouvido pelas poucas pessoas que estavam ali por perto:
- Vou sim. Vou pedir a conta.
Naquele momento fiquei tenso, não lembro ao certo da sequência dos fatos, mas recordo de não ter esperado pelo troco pois os garçons já me irritavam com suas fisionomias de deboche e quando cruzamos com ansiedade a avenida, era como se eu estivesse atravessando uma fronteira e pudesse ser alvejado por uma bala a qualquer instante. Então entramos em silêncio no meu carro e em silêncio tomamos o rumo de minha casa e lhe conto que naquela noite não deixei pedra sobre pedra, lhe relato que naquela deslumbrante e incandescente noite comi e recomi aquela estranha tanto, mas tanto, que sua expressão de desespero foi pouco a pouco se transformando na mais doce serenidade e seu cheiro de cavernas defumadas foi dando lugar a um aroma de amêndoas e mel e algumas horas depois, quando ela exausta adormeceu profundamente não tive dúvidas de ir buscar meu material no estúdio e usei carvão e usei óleo e a fotografei e a esbocei e a pintei e lhe dei comida quando despertou, e nos banhamos, e voltamos a foder e mergulhei insanamente num transe que deformava tempo e espaço com esta mulher que me tirou a paz que eu ingenuamente pensava ter, esta mulher de carnes tão duras e fartas e de hálito de leite fresco e glacial, esta mulher que resolveu ir-se dois dias depois, tão diferente que ficou daquela criatura que conheci, esta mulher que se foi sorridente pelas ruas de uma Gávea ensolarada, se foi... deixando um buraco bem aqui, no meio do meu estômago.
Ela não largou do marido rico. Sente por ele um tipo de amor que ninguém pode condenar e além disso os dois tem um filho pequeno. Mas me encontra uma vez por semana "para se vingar mais um pouquinho", como ela gosta de dizer. Minha casa agora tem mais de 50 telas onde ela está retratada. Vou até fazer uma exposição no centro da cidade, você acredita? Em minha sala, por onde todas as quintas ela caminha de pés descalços, pendurei também sua carteira de identidade em tamanho gigante. Ao lado da minha. Assim ela também não se perde tanto, pois ali ela pode ver sua foto e ali também está seu nome. Anita Vieira de Castro. Tem nome de rua, você não acha? Muitas vezes tenho cantado este nome como um mantra, enquanto trabalho, e é nesse momento que penso que Anita é bem mais do que música. E é mais do que livro também, ou verso ou cinema... Anita é tela... Anita é pintura.
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