Quando eu era pequeno não havia sabiás. Tinha bentevi e uma profusão de pardais.
Bentevi quase não se vê mais e os pardais desapareceram completamente. Mas sabiá tem. E como tem! Começam com a cantoria no meio da madrugada e soltam o berro o dia inteiro.
Dá uma felicidadezinha ouvir um sabiá cantando num fim de tarde de verão, principalmente se for no fim de semana, quando as pessoas se vão e deixam a cidade deserta. Algum sábio disse que a melancolia é a felicidade de estar triste. Talvez seja mais ou menos isso. É bom saber que tem alguém que descriminaliza um pouco a tristeza.
Por falar em melancolia, outro canto que sempre me assombrou é o canto da Alma de Gato.
A Alma de Gato é um pássaro predador, de uns cinquenta centímetros de altura que pia durante o voo. Voa lá em cima, bem alto. Emite um piado único, faz um intervalo breve, pia de novo e assim, no momento em que ela vai se afastando, as leis da física fazem com que os piado subsequente soe mais grave que o anterior, criando uma sequência lenta de piados que vão decrescendo em direção às frequências mais baixas. Puta dificuldade de explicar, mas o piado do Alma de Gato é tão melancólico quanto o barulhinho do formão que algum homem bate, lá numa obra distante, no meio de uma ensolarada manhã de abril com aquela nevoazinha que vai se aproximando querendo aquarelar nossa existência.
Pois tempo desses, antes da pandemia, fomos na churrascaria Barranco, aqui perto de casa. Sentamos do lado de fora, e no arvoredo acima de nossa mesa, reparei que havia movimento. Tinha ali um casal de Alma de Gato, com suas caras invocadas. Ficamos observando a função daqueles pássaros bonitos até que alguém comentou.
- Eles ficam aí esperando restos de carne que as pessoas dão.
Não acreditei muito, mas não é que o bicho desce da árvore e abocanha um pedaço de picanha?
Caraca!
Picanha salgadona. Já deve ter pressão alta e tudo, e com aquela cara de mau humor, pode muito bem empalmar acometida por fulminante infarto.
Mas diz que mandam picanha, maminha e até salsichão. O Valdemar, o garçom mais antigo, jura que viu um bicho daqueles dando umas bicadas num chope que tinha sido esquecido na mesa.
Mas voltando ao sabiá, eles tão bem loco com a aproximação da primavera. Sabiás e sabiôas querem namorar muito. Por isso piam sem parar.
Pensei então que talvez tenha sido o sabiá que inspirou Cole Porter a compor aquela fantástica canção chamada “Let´s do it”, sobre a qual Carlos Rennó fez uma versão à altura, incluindo algumas referências brasileiras muito divertidas.
“Os rouxinóis, nos saraus, fazem
Picantes pica-paus fazem
Façamos, vamos amar
Uirapurus, no Pará, fazem
Tico-ticos no fubá, fazem
Façamos, vamos amar.”
Picantes pica-paus fazem
Façamos, vamos amar
Uirapurus, no Pará, fazem
Tico-ticos no fubá, fazem
Façamos, vamos amar.”
Dia destes prestei atenção a esta canção na voz de Elza e Chico, e emocionado, a ouvi várias vezes, no carro. Um baita antídoto pra este veneno que vamos inoculando diariamente. Aqui vai mais uma estrofe, chegando na sessão dos peixes.
“Dourados, no Solimões, fazem
Camarões, em Camarões, fazem
Façamos, vamos amar
Piranhas só por fazer, fazem
Namorados por prazer, fazem
Façamos, vamos amar”
Camarões, em Camarões, fazem
Façamos, vamos amar
Piranhas só por fazer, fazem
Namorados por prazer, fazem
Façamos, vamos amar”
No final, diz:
“Leões ao léu, sob o céu, fazem
Ursos lambuzando-se no mel fazem
Façamos, vamos amar
Façamos, vamos amar.”
Ursos lambuzando-se no mel fazem
Façamos, vamos amar
Façamos, vamos amar.”
No momento em que a Elza entra rasgando nos “Leões ao léu” é como se de repente rolasse uma ventania pra sacudir com tudo. E logo:
“Sob o céu”. Aí, é como se a justiça estivesse sendo definitivamente feita e:
“Ursos lambuzando-se no mel fazem” é pra gente terminar gargalhando. A relação entre as sílabas escolhidas pelo Rennó é magnífica e dá um prazer imenso de cantar mesmo quando a gente não canta nada.
É isso. O recado do sabiá é muito claro. É claro e vai ficar por aí todo o tempo até o fim do verão, que é pra gente não esquecer:
Façamos.
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