sábado, 4 de setembro de 2021

VICIOUS

É 84 e estou em um restaurante furreca de Madrid. Já havia conferido os preços baixos na entrada e tive certeza de que a comida ali servida era bem ruim. Estou vivendo em um hostal e todas as refeições são feitas na rua. Então preciso economizar. Olho rapidamente o cardápio, faço o pedido ao garçom e vejo que ele deposita um pão à minha frente. Um cassetinho, como se diria aqui no sul. A ideia me parece boa. Vai ajudar no lastro que necessito pra não ficar de lanchinhos no meio da tarde, e assim não gasto. Com o passar dos dias vou descobrindo que as refeições na Espanha são sempre acompanhadas de pão. E saladas. Jamais falta uma salada. Salada e pão. Então lembro que meu pai possuía este hábito. Almoçar com pão. Embarquei na onda e só fui me livrar deste vício três anos depois quando voltei ao Brasil. O pão dágua na Espanha era fantástico. Muito bem feito. Só tinha um porém. Três horas depois de comprado, estava duro. Duro que nem uma pedra.

É 2011 e estou em Tiradentes fazendo o Villa Lobos in Jazz. Nos levam pra jantar, nos levam pra almoçar e depois de muitos convites, acabo aceitando provar a cachaça da área. Não sou de cachaça, mas bebo pra não ser indelicado. Provo aqui, provo ali e no dia seguinte repito os brindes, e dois meses depois voltamos a fazer concertos naquela região tão linda e alguém presenteia os músicos com garrafas de cachaça que levo para o Rio de Janeiro e passo não só a tomar cachaça todas as noites na frente do computador, como também resolvo comprar no supermercado. De repente tenho duas ou três garrafas de aguardente em casa e certo dia, ao observar que havia secado todas, me pego me lambendo por uma cachaça na frente do PC. Me ressenti da falta da pinga. Parei a função naquela noite mesmo. Viciado em canha não dá, né?

É 2014, Rio de Janeiro, talvez abril, são onze da manhã e desço até a rua do Catete pra comprar cigarro avulso na banca. Havia decidido não comprar mais maços e tampouco fumar dentro de casa. Acendo o cigarro e na primeira tragada sinto um formigamento no peito que vai descendo lentamente pelos braços. Fico fumando ali na esquina da Correa Dutra com Rua do Catete, no meio daquele tráfego de gente e carro e ônibus, a fúria dos gritos e buzinas me acompanhando naquela sensação de morte, o corpo me gritando, clamando que eu deixe de jogar veneno pra dentro, que eu pare logo de uma vez por todas, que o corpo não aguenta. Naquele domingo seguinte, toca o telefone e é minha mãe.

- Escuta, Fernando. Se tu parares de fumar te dou mil reais por mês.

Estava fumando na área de serviço e ao ouvir isto, desliguei no cinzeiro o meu derradeiro cigarro. Era uma boa grana e ao mesmo tempo fiquei realmente assombrado com a proposta que parecia ter brotado de alguma premonição. Por estes dias estávamos relembrando este fato durante a janta, e pensando nesta minha peladura pandêmica, resolvo fazer uma pequena consulta com mami.

- Escuta! Não gostarias que eu também parasse de beber?

É 2021, em Porto Alegre e tiro o pote de açaí do congelador. Sirvo uma boa porção numa cumbuca e jogo um pouco de mamão por cima. Depois um pouco de manga. E mamão de novo. Daí fica desequilibrado e tenho de meter mais açaí. Encho a cumbuca. A fruta se acaba e sirvo mais açaí. Cumbucão. Mando tudo. Levanto da mesa, chego ao balcão, e decidido a não servir mais, dou umas colheradas direto do pote. Então fico ali raspando, sabe como é? Pra ficar cremozinho. Resolvo guardar o pote, não sem antes dar uma última colheradona. Saio da cozinha. Tomo o rumo dos quartos, mas no corredor, no sétimo passo, resolvo retornar, abro novamente a geladeira, volto a retirar o pote, coloco sobre o balcão, destampo e fico olhando praquilo com olhos injetados. Algo tem de ser feito. Talvez com a chegada do frio. Quando junho assoviar, quem sabe fica mais fácil deixar disso. Ou agosto. Ou nas chuvas de setembro. Quem sabe setembro. Quem sabe.

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