quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

o eixo da terra

O eixo da terra nestes últimos anos tem sofrido suas mais bruscas mudanças.

Este fenómeno tem afetado sobremaneira a ordem natural do planeta.

Já há relatos de camelos que se tornaram tão peidorreiros que seus donos tiveram de abandona-los nos desertos mais recônditos do Saara.

Conta-se que no interior do Uruguai uma onda de gafanhotos comeu um trator inteiro. Não sobraram nem os pneus.

Aqui em casa também é notória a mudança de atitude das lagartixas. Sempre tão ágeis, sempre com aquele olhar atento de gerente de almoxarifado e agora parecem caricaturas do que eram. Desatentas que andam, parecem dopadas ou então estão sofrendo algum tipo de depressão.

Quem se regozija com tal condição são as baratas, que passeiam calmamente pela casa com suas bolsas à tiracolo e se pode dizer que nunca estiveram tão gordas as baratas daqui, pois quando ocorre a chinelada certeira, percebe-se com clareza o quão crocantes estão as queridas.

Fiz este relato à guisa de informação apenas e não me passa pela cabeça de forma alguma espalhar o pânico entre os nobres condôminos, mas devo dizer que já não se encontra em profusão pela casa as metades de barata como em anos anteriores.

Já se sabe que a lagartixa janta apenas a metade da barata e foi deste hábito que surgiu a conhecida expressão:

LAGARTIXA QUE SE PREZA NÃO COME BUNDA DE BARATA.

Bueno.
Sem mais...
Desde já agradeço a prestimosa atenção.
Bjus e abraçus.

POTES

          Já lavei toda louça, limpei o fogão e deixei para o fim a tarefa mais delicada. Retirar a comida da panela e depositá-la no pote. Mas não vá pensar que é a lavagem da panela que me assusta. Nada disso. O que me assombra de verdade é o fenômeno comida ao pote. Já cumpri o primeiro estágio. Encontrei um pote adequado. Neste momento, o pote está à minha frente com a comida dentro. Fiz o transporte de forma correta e quase não sujei o entorno. Isto já é algo de se agradecer com mediano fervor. Então agora estou sentado à mesa, calibrando o espírito, terminando meu café, enquanto tomo fôlego para encetar a finalização da tarefa que é voltar ao sinistro armário e encontrar a tampa exata. Só assim o pote poderá chegar a seu destino nos confins da geladeira e só assim poderei deixar a cozinha na ponta dos pés e caminhar pela casa com a alma levinha, prêmio que só recebe aquele que executa tal tarefa com sucesso e precisão. 


          Tomo o café sem pressa. Se fumasse, certamente estaria com um cigarro na boca, aplicando-lhe tragadas medonhas, pois me chega a lembrança da noite da última segunda feira em que, desajeitado, resvalei a mão numa das tampas que escorregou sobre outra tampa e sobre outra que desequilibrou uma pilha de potes, potinhos, potões, potíssimos, de vários tamanhos e matizes e a avalanche tomou proporções de catástrofe com a derramada brutal destes utensílios asquerosos, que tem pote que quanto mais você lava, mais parece engraxado e você se exaure sobre ele com esponjas atopetadas de detergente ou com esfregões de aço temperados com sabão de coco e tudo parece inócuo, e dia destes minha mãe me olhou com olhos desconfiados pois eu usava o secador de cabelos num destes potes com detestável tampa azul, imaginando ser um lança chamas, e no fim da atividade, com cuidadosos passos de procissão, carreguei-o até o armário de modo que a vertigem me desse alguma trégua, mas volto ao assunto e sigo contando daquela noite de segunda que vos falava antes, noite em que os potes esparramaram-se pela casa, ganhando pátio e muro e por fim invadindo a sala do vizinho que assistia ao seu noticioso, Seu Heraldo, que embraveceu de tal forma que gritou mais alto do que nunca, gritou que aquilo não podia acontecer, potes de variados tipos adentrando assim desse jeito pelo tapete de sua sala, importunando-lhe justo no momento em que as manchetes tão excitantes sobre crimes e acidentes horripilantes eram locutadas pelo homem da TV tão distinto com seu topete exato e tom de voz metálico de um cinza chumbo, chumbo de balas perdidas que cruzam incessantes a cidade dos ninguéns e Seu Heraldo, possuído pelo ódio que provem de diversas fontes não hesitou em chutar potes e repotes para todas as direções a tal ponto de deixar nestes as marcas de seus sapatos perversos e novamente eu de esponja na mão e bombril e o resto é o resto que já se sabe e já se sabe um bom tanto.

          Então estou aqui, terminando meu café, regulando a respiração para tomar o rumo do armário e sei que ao me aproximar vou sentir novamente a vibração surda que vem de seu interior, um coração que bate sem pressa, com escárnio, e sei também que em cada pulsação há um aviso para que eu tenha imenso cuidado com o castelo de cartas que engenhosamente ali está edificado, um aviso para que minha mão não vacile e não trema, um claro recado para que eu não esqueça daquele antigo jogo de varetas onde o mais leve movimento em falso sempre podia ser fatal.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

FLORES E FORMIGAS

 Minha mãe preocupada com flores que deveriam aparecer só em outubro e estão desabrochando agora.

Queixa-se também a mami que as formigas andam mais loucas do que nunca.
Diz que quando está pra chuva, aumenta muito o apetite delas. Me mostra a roseira pelada.
- Olha só. Esta roseira, hoje de manhã, estava cheia de folhas. Comeram tudo, as desgraçadas.
Diz também que as formigas se dividem em três bandos.
Tem as que sobem na planta e cortam as folhas.
Tem as que pegam as folhas caídas e recortam.
E tem as que carregam os recortes pra toca.
Minha mãe tem uma luta eterna com as formigas.
São as formigas que levam os vírus pra dentro do computador. Em cima de cada formiga vai de quatro a cinco vírus. Não vai mais que isso. Esta atividade deixa as formigas bem cansadas.
Ainda sobre formigas.
Lembro de que quando tinha uns quinze, lançaram uma revista pra gurizada. Se chamava Pop. Nunca esqueço da carta de um leitor se queixando que havia sido chutado pela namorada por ter a mania de cuspir em formigas. Nesse tempo eu era craque na cuspida, mas pensei que tinha guri bem mais idiota do que eu.
Agora também lembrei que li por aí que quem visita a China fica impressionado com a cidade toda cuspida. Diz que é mania chinesa meter a cusparada. Será que cospem nas formigas?
E ainda.
Era uma teia de aranha perfeita, brilhando contra o sol. Por ser idiota, juntei uma formiga do chão e atirei na teia. A aranhinha veio correndo e em meio segundo imobilizou com seu veneno a formiga que se contorcia. Depois de observar que aquilo não era rango decente, a aranha levou a formiga até à beira da teia e jogou-a no vazio. Repeti a operação. Depois de despachar o terceiro cadáver, a aranhinha colocou as seis patas na cintura e me fulminou com olhar colérico. Saí dali mais assustado do que aborrecido.
Depositei um pequeno punhado de açúcar no balcão da cozinha. Depois de alguns segundos apareceram duas formigas. Elas pararam ali, confabularam algo e comeram um pouco. Logo em seguida se retiraram pra certamente avisar azamigas. Então peguei um pano e limpei o açúcar dali, pras formigas passarem por mentirosas. Devem estar brigando até agora.
É o que tem.
É o que tem,
É o que tem,
É o que tem,
É o que tem, meu bem.

O CAFÉ

 Lembro de uma cafeteria da Rua da Praia que meu pai frequentava. A Bruxa. Fui com ele umas duas vezes, quando pequeno.

Você pagava no caixa e ganhava uma ficha azul, destas de jogatina, e apresentava no balcão. Era um balcão grande e na minha memória só havia homens de terno por ali. E claro, tinha fumaça. Bastante fumaça.
Acho que não havia capuccinos e demais variações.
Era café e só café.
Café preto, como se diz aqui no sul. E vinha numa xícara branca fervendo que dava bastante trabalho segurar. Queimava boca e dedos.
Mas gostei do convite. Me senti homizinho, acho. Aquele café saboroso ficou na memória. Aquele ambiente. A pressa no ar. O alvoroço dos homens que tinham tarefas pela frente e faziam uma pausa ali na Bruxa pra quem sabe reorganizar um pouco a mente e o espirito.
Escrevo isso tomando um café na cozinha.
Café se toma. Não se bebe.
O café que tomo é bastante honesto. Feito nestas cafeteiras italianas. Apesar de haver gente que condena, afirmando que a água fervente queima o café, não encontro em lugar algum um café melhor que este feito em casa e desta forma.
Andei comprando no super uns cafés metidos a besta, mas sabe que não encontro grande diferença?
Daí vem alguém e te oferece um café lá do Peru que é premiado e tal e você se prepara pra entrar no paraíso, mas nada.
Nada demais. Parecido com o cafezinho do boteco da semana passada.
Daí vem outro alguém que te leva pra tomar o café aquele do cabrito que come o grão e caga o grão e os caras moem aquele café cocozado e vendem por uma fortuna e você toma aquilo, louco de medo da desinteria, e o que?
Nada também. Parece o Mellita.
Acho que o café é mais um sonho. O cheiro do café é sempre melhor que o gosto.
Também acho que o sabor do café melhora de acordo com a qualidade dos pensamentos que passeiam na tua cachola. Mas o café é um sonho.
O churrasco também é um sonho. 99 por cento das vezes o cheiro é melhor do que o gosto.
O café e o churrasco são sonhos imaginativos que você experimenta através do cheiro e quando você realiza fica uma pontinha de desapontamento.
O sexo também?
Pois é.
O sexo acho que não. Certamente não. Ou não.

AS MEIAS



Hora de dormir.

Resolvo descalçar as meias antes de me deitar, pois as tenho tirado no meio da noite e no dia seguinte, mesmo levantando todas as cobertas e colchão e a caralha toda, um dos pés não consigo encontrar. Coisa de um puto anjo safado que se diverte muito, deitado em alguma nuvem observando o movimento dos patetas aqui de baixo.Então tenho o par de meias na mão e resolvo enrolá-las, e no final, dou aquela enroscada pra criar o tradicional formato de bolinha. Isso me faz lembrar o tempo de guri, quando fazia isso com as largas meias de futebol e ficava uma bola pesadinha, boa pra fazer balãozinho.

Balãozinho é o que se chama de embaixada no resto do país. Quanto mais balãozinho se fazia, mais admiração se tinha no grupo.

- Ô meu! Quantos balãozinho tu faz?

Mas como dizia, hora de dormir pra acordar cedo e ir no Super.

Desperto.

É dia claro. Chove. Me sinto bem. Não tenho sono. Isto me faz acreditar que não ouvi o despertador e perdi a hora.

Confiro e vejo que ainda faltam vinte minutos para as oito. Como me sinto bem, penso que seria bom levantar logo de uma vez, mas penso também que é um pecado jogar fora vinte minutos de sono.

Durmo.

Desperto aterrorizado com o alarme do relógio e tenho a sensação de que algo ruim aconteceu. Assustado, sento na cama. Me sinto destroçado. Deveria ter levantado naquela hora. Faz frio e minha primeira vontade é a de calçar as meias.

Então, na minha frente, na mesinha, vejo a bolinha meial. Pro tipo de pessoa que sou, enxergo isso como um fenômeno. Um tipo de encanto. Uhuuuuu!!!

É aí que começo a desconfiar que as pessoas organizadas devem ser muito felizes.





47Laura Corona, Vika Barcellos e outras 45 pessoas
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DOCE DE LEITE

Foi a Nice, mãe do Cid Sousa, mais popularmente conhecido por Cidinho, que me ensinou a fazer um correlato da ambrosia.

Uma fórmula mais simples.
Você coloca dois litros de leite de verdade numa panela e taca fogo. Pode botar o açúcar junto. Umas duas ou três xícaras.
Enquanto ferve o troço, abre seis ou sete ovos e dá uma batidinha pra misturar a gosma amarela com a outra gosma.
No momento que o leite ferve, joga ozovo dentro e ora um pouco.
Hoje a
Laura Corona
pediu que eu fizesse pra ela.
Então, à tarde, coloquei o leite pra ferver, mas o fogão da mami é a labareda do diabo e não passou mais de sete minutos e a caralha ferveu duma maneira que foi parar leite no muro do vizinho.
Depois de putear e reputear o fogão e dar uma geral na meleca, reiniciei a atividade.
No momento em que ferveu de novo, joguei os ovos e, novamente orando com fervor, mexi de forma entusiasmada a mistura tendo às vezes de desligar aquele fogo tão rebelde, até o momento em que o processo deu uma assentada e fiquei ali por perto só dando uma bispada.
De vez em quando uma mexidinha.
Repentinamente o troço fumega diferente e sinto com a colher que se cria kriptonita incandescente no chão da panela e, sofregamente, raspo com a colher e dai vão subindo os queimadinhos assustadores e como se não bastasse, a caralha começa a borbulhar, a espocar, e fragmentos de lava são lançados em minha direção e não tenho dúvidas de que o doce está me atacando e acabo fugindo da cozinha, correndo, gritando pela casa chamando a mãe pra ela dar um jeito naquele doce que ficou completamente fora de controle.
Até que ficou bom. Um leve gosto de queimado.
É um tipo de doce de leite. Quando acerta o ponto, fica uma delícia. Mas pra isso a chama tem de ser parceira.

AS CERVEJAS EM VINTEVINTE

Lembro da noite em que estava na cozinha e estranhei a espuma que fez a Serramalte no momento em que caiu no copo.

Borbulhas grandes, sabe? Quanto maior a bolha, mais cagada é a ceva. Cerveja boa você não enxerga a borbulha e quando a ceva é fodona mesmo, a espuma é um creme, e este creme resta no fundo do copo no momento em que você derruba. A Serrinha não tinha aquelas bolhas grandes.
Já havia achado esquisita a nova embalagem, mas não pensei que a Ambev iria perpetrar o crime de estropear a melhor Pilsen do Brasil. O plano da Ambev, como já sabemos, é comprar todas as cervejas do planeta e transformá-las em água suja. Disso tenho certeza. A Ambev é bolsominion em sua alma.
Botei na boca e não deu outra. Bem parecida com a Skol. Com o espírito danificado, joguei o resto na pia, taquei a garrafinha no lixo e abri uma Eisenbhan, que por sorte havia.
A Eisenbhan é uma cervejaria de Blumenau que produz uma ceva com uma boa variedade de sabores e tipos de fermentação. Pra mim, todas são boas, com exceção da pilsen, que tem rótulo amarelo e dizem que foi comprada pela Heineken. Essa amarela parece meio falcatrua.
Mas foi nas noites tão frias deste inverno de pandemia que pude desfrutar das latas e garrafinhas da Eisenbhan. Elas tão no super por um preço bem acessível e compro sempre a verdinha e a roxinha.
A verdinha é uma PALE ALE e fui até pesquisar o significado. ALE significa alta fermentação e PALE significa pálido, mas li que tem muitas PALE ALE que de pálidas não tem nada. A Eisenbhan verdinha tem a cor de um dourado escuro.
A roxinha é uma AMERICAN IPA e daí não entendi nada porque já sabia que IPA era da Índia e APA era da América.
Eu sempre bebi e bebia em qualquer copo, mas de um tempo pra cá fiquei meio bobo e tenho então preferido beber num copo bonito. Então pego uma taça grande e sirvo sempre a verdinha primeiro.
Cara. É muito bonito de ver aquela cor. A espuma perfeita. Bebo aquilo e sinto que os olhos ficam injetados de satisfação. O sabor é pura perdição. Termino com a garrafinha e é chegada a hora da roxinha. Penso então que vai ser um tanto decepcionante beber a roxa depois da verde.
Sirvo.
A cor é outra, mas não menos bela.
Quando entra em contato com a boca, a viagem é distinta, mas a velocidade é exatamente a mesma. Como pode? O sabor é bem diferente e igualmente fantástico.
E assim me fui por algumas noites de frio e solidão deste ano 20, que está sendo, certamente, o ano mais difícil de minha vida.
Me fui avançando pelas madrugadas, intercalando verdinhas e roxinhas, pensando na imensa sorte que tenho de até possuir um dinheirinho pra poder ter acesso a alguns bálsamos cotidianos que ajudam a manter a alma maomeno regulada no meio desta borrasca que tanto nos aflige e esta última frase vai saindo meio que amontoada, eu sei, mas acho que dá pra entender, acho também que o assunto não é muito rico, mas é o que temos para o momento e prometemos melhorar num futuro nem tão remoto.

O GAMBITO DA RAINHA



MMA?

Chato para caralho.

Fórmula 1?

Pior ainda. Massante.

Preciso de mais adrenalina.

Eu gosto é de xadrez.

Faz muitos anos que jogo xadrez, mas não melhoro nadinha minha performance. Xadrez é o jogo dos atentos e eu flutuo todo tempo. 

Além do mais, a memória é vital e a minha é volátil.

Mas acho lindo.

Já viram a série?

"O gambito da rainha."

No meio enxadrístico a tradução do título causou irritação, pois esta peça, a mais poderosa da esquadra, leva o nome de Dama e não rainha.

Só aqueles que jogam Damas é que, equivocadamente, chamam a 

Dama de Rainha no jogo de xadrez.

Outro termo que causa urticária nos chessplayers é o "comer".

No xadrez ninguém come ninguém. O termo apropriado é "tomar".

Então, a forma mais correta para batizar o enredo em nossa língua seria " O gambito da dama". Os promotores, certamente, esquecendo este tipo de preciosismo, resolveram optar por um título, quem sabe, mais comercial.

O gambito da dama é uma das aberturas mais tradicionais do jogo de xadrez. É uma posição fechada, onde geralmente os dois contendores dispõe suas peças de forma tranquila sem maiores agressões. É assim, assim, um troço meio que retranca.

Mas a série é bem boazinha. Tem umas coisinhas fake mas não chega a comprometer. E é curta. Sete episódios.

A atriz é feinha, bonitinha, charmozinha. Fez um trabalho sutil. Bem bacana.

O xadrez é um jogo mágico e sua história é composta de inúmeras lendas e personagens expressivos e curiosos. Ali no filme está retratado um pouco disso e inclusive algumas partidas jogadas pelos protagonistas sao partidas famosas que foram jogadas por Grandes Mestres do passado.

Diz que a partida da cena final foi elaborada por Gary Kasparov, que assessorou os diretores da película.

Eu sugiro. Achei bonito.

Bonito como o xadrez.

BANHEIROS

Estou no banheiro. O banheiro azul.

Nas paredes há azulejos que tem mais de cinquenta anos e são de um azul claro que sempre me lembram aquário. As louças são amarelas, também claras. Quase um creme. Estou sentado no vaso e carrego uma xícara de café e talvez você esteja curioso para saber a cor.

É vermelha.

Mas este vermelho é vivo. Eu gosto de vermelho.

Estou tomando café numa xícara vermelha depois do almoço, sentado no vaso amarelo de um banheiro azul. Foi exatamente nesta posição que descobri meu primeiro orgasmo. Fiquei assombrado com a imensidão de tal  divertimento

- Esse guri não sai da patente.

Era o que minha mãe dizia naqueles tempos.

Eu gosto muito de banheiros, mas não por este motivo de libidinagens adolescentes que nunca se curam.

Meu apreço pelos banheiros provém da paz que há neles.

Lembro de certa feita, no início da carreira, em que estávamos ensaiando num clube alemão daqui de Porto Alegre. Talvez tenha sido ali a primeira vez em que fiquei impressionado com um banheiro. Era um banheiro antigo, de uma construção antiga, que parecia não haver sofrido qualquer tipo de reforma. O chão tinha lajotas irregulares cor de telha e as paredes eram toscas, mas perfeitamente pintadas. A atmosfera era algo assim de fazer inveja a qualquer UTI do melhor hospital da mais próspera cidade. O extremo cheiro de limpeza se somava ao silêncio que ali reinava e só não havia mais silêncio porque os filetes de água dos mictórios eram perceptíveis como o ruído que a gente ouve à beira de um rio ou um regato. As naftalinas nas cubas eram o detalhe final na assepsia daquele ambiente solene. Havia muita paz naquele banheiro e daquela tarde nunca esqueci. Não lembro do repertório que ensaiamos, mas o banheiro nunca me saiu da memória.

Agora estou tomando café numa xícara vermelha, sentado num vaso amarelo claro de um banheiro azul celeste pensando que é um imensa fortuna ter um bom banheiro quando a gente precisa, assim como é uma sorte grande ter uma boa cama pra deitar quando a gente não se sente muito bem ou uma comida que a gente bota na boca, sente prazer, e comenta isso com quem está ao lado.

Acho que as pessoas acreditam em Deus também para terem mais facilidade nestes momentos em que se sentem afortunadas.

Eu não acredito direito.

Então fico assim, meio que sem saber o que dizer nessa hora em que é preciso dar o tope final.

DIA DO MÚSICO

Eu trabalhei no xerox.

Fui tesoureiro.

Depois estive no município onde fui perseguido. Me demitiram pelo simples fato de tirar férias sem avisar. Tu acredita??!! Quem sempre adorou esta história é o Bruno Teixeira.

Fui almoxarife promissor e um excelente xeroqueiro, mas resolvi me tornar músico e ontem foi o dia do músico e muitas pessoas me parabenizaram, não vê que o prazer maior destas pessoas é dar
felicitações? e, dia desses, uma amiga me desejou um " feliz dia do idoso" e mandei tomar um pouco no cu, não é? só porque digo a ela que sempre fui véio, e então ela acha que pode fazer comigo tal brincadeira sacana? e isso tudo me lembra uma frase de Picasso que diz algo parecido com.

LEVA MUITO TEMPO ATÉ TORNARMO-NOS JOVENS.

Não é também?

Eu sou véio, mas posso afirmar que já fui muito mais véio.

E lembro também do Fellini, que ao cumprir setenta, foi questionado por um jornalista.

- Como o senhor se sente fazendo setenta anos?
- Eu sempre tive setenta anos.

O assunto era música e foi parar na idade, mas acaba sendo tudo a mesma coisa. Música flutua pelo tempo e tempo significa também existência.

Música tem começo, meio e fim. Igualzim à vida. Música tem intro, geralmente, que seria a gestação. Tem auge no meio e vai morrendo devagarinho que deve ser pra gente não ficar tão chateado. Eu gostava muito de fade outs antigamente. Agora prefiro grã finales.

Nossa profissão é avacalhada por uns e glamurizada por outros, mas se trata de uma atividade como outra qualquer.

Ou quase.

Tem gente que faz merda em cima de merda e tem uma puta clientela. Algo semelhante à política. Né?

Bueno. Era isso.

Queria agradecer aos felicitadores, profissionais ou não, pelas palavras de carinho neste momento tão cagado de nossa trajetória.

Acho que hoje faço uma live.

Beijus e abraçus a todos.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

SÓ RESPIRAR JÁ É BOM

Faz frio. É junho que vai se aproximando. Estou sentado numa poltrona de uma sala de uma casa que não tem janelas. Mas não vá pensar que é uma casa triste. É uma casa alegre e colorida, cheia de quadros e esculturas. Não tem janelas, simplesmente, por ter sido projetada por um arquiteto modernista que não gostava de janelas.
Meu pai.
Meu pai não está mais aqui entre nós e isto já faz bastante tempo. Mas minha mãe, sim. Depois de muitas jornadas, voltei a morar com ela justo no ano em que a casa completou cinquenta anos.
Isto veio muito bem a calhar, pois agora, com a chegada da epidemia, nós nos acompanhamos. Minha mãe e eu gostamos da casa. Gostamos muito desta casa que não tem janelas e talvez por isto faça este frio fino que gela os ossos da gente, mas me falta a devida coragem de levantar desta poltrona cômoda para procurar alguma bebida quente. Vejo que minha mãe aponta no fundo do corredor com seu passo lento. Talvez tenha se livrado da mesma preguiça que me abraça e vai tomando o rumo da cozinha para esquentar água para o café.
Faz frio e escurece rapidamente. Não é necessário haver janelas nesta casa para saber que lá fora há um bocado de dor e desespero de toda sorte. Lá fora há uma cidade que se dissolve dia após dia. Lá fora também há um país que já não se reconhece, desde que a redes começaram a aproximar os parecidos e os parecidos formaram grupos. A sensação de pertencer a um grupo, como a história e a biologia ensinam, sempre dá coragem aos animais. E há um tipo destes animais que, em bandos, vai vociferando suas infâmias e bravatas sem qualquer pudor. Estes animais já não têm medo de gritar o ódio que estava guardado, sufocado. As redes aproximaram estes parecidos e despertaram um movimento de pessoas ressentidas no mundo inteiro. São seres de alma triste e um sorriso eterno que não passa de um escárnio. É um movimento despido de ética que torna a verdade um conceito ultrapassado, e é em nosso país que este movimento se agiganta e torna a mentira uma regra. Lá, fora desta casa que não tem janelas, há um país que passava uma imagem de cordialidade ao resto do mundo e que agora só causa náuseas. Lá fora há um país que nos faz sentir muita vergonha.
Não bastando este flagelo, já faz mais de sessenta dias que nos escondemos de um inimigo invisível que veio do outro lado do planeta e pensávamos que jamais nos visitaria. Vamos descobrindo, entre outras coisas, que este inimigo não é um animal. O vírus que nos assombra nem ser vivo é. Então fico me perguntando o porquê desta tão imensa sede de multiplicar-se. Fala-se por aí que este fenômeno nada mais é do que anticorpos que o planeta criou para eliminar uma parcela da raça humana que devasta tanto a natureza. O vírus é uma defesa do planeta. É o que se fala por aí. Fala-se muita coisa. Fala-se à exaustão da pandemia. E da política também.
O Brasil, neste momento, é um caldeirão de ódio, medo e mentiras nas redes. Estes adoradores da mentira, cultuadores do ódio, são seres vivos que desdenham do vírus e seguem fazendo aglomerações nas manifestações a favor de que os homens de farda imponham seus fuzis à nação. Estes homens e mulheres, que opinam sempre sem saber, elegeram a besta para representá-los, mas isto não basta. A besta, ao contrário de todo o resto do planeta, clama para que o povo desrespeite a quarentena e vá às ruas levar sua vida com normalidade. É o fascismo assassino, impiedoso, que busca eliminar velhos, pobres e pretos. A peste caiu como uma luva para esta gente. Os que discordam não podem sair e não querem sair de suas casas. Não podemos ir às ruas para protestar, pois o Corona está por aí, à espreita, e tememos por nós e pelos outros. Estava relutando em citar este maldito nome, então aproveito o momento para me apresentar.
Talvez você vá pensar que se trata de alguma brincadeira, ou de um jogo qualquer, mas afirmo-lhe que não. Meu primeiro nome é Fernando e não há nada demais nisto, mas meu sobrenome é Corona. Isto mesmo. Corona, de uma família de espanhóis da Cantábria. Não parece uma sina? Nas redes, cansado das brincadeiras incessantes de meus amigos e colegas, atualmente uso um pseudônimo e penso que isto não tem muita importância, afinal de contas, a vida, por enquanto, só existe nas redes. Talvez até siga usando este pseudônimo depois de passar a pandemia, se houver um depois. Meu codinome não me soa nada mal. Um amigo de Barcelona me mandou mensagem dizendo que achou bonito, pois, em catalão, a mudança significa “fazer coração.” Se não for assim, quem sabe possa até inventar outro nome qualquer, que seja do meu agrado. A ideia de escolher o próprio nome me parece interessante. Mas confesso a você que é bastante duro ver meu nome associado à doença, à dor, ao medo e à morte. Meu nome escrito por todo lado, falado na TV a todo momento, gritado na propaganda diariamente, não sei se você me entende, é assustador. Mas deixemos este assunto um pouco de lado para que eu possa contar que além destas duas pestes, ainda estamos vivendo um outro grave problema por estas paragens. A seca.
Faz muito tempo que por aqui não chove. Quando vou ao jardim, pela manhã, em busca do jornal sempre há um céu azul que contradiz ironicamente as tragédias que nos rodeiam. Nunca vi um céu tão límpido como nestes dias e isto deve estar acontecendo devido à grande maioria dos carros estar nas garagens. Isto é algo que também se fala por aí.
A temperatura estava amena até ontem, mas hoje já pode-se sentir as correntes geladas chegando do sul. É certo que isto vai adicionar mais um tanto de melancolia à nossa tristeza, mas a notícia boa é a de que talvez chova forte nessa madrugada. Foi o que disse o homem da rádio que sempre se engana, mas se chover a metade do tanto que ele prometeu, isto certamente servirá de alívio aos agricultores e homens do campo que temos visto chorando feito criança nos jornais da televisão, pois são meses e meses de aridez assolando nossa região e pelo que se anuncia, a safra está quase perdida. Como você pode ver, não são poucos os nossos problemas. Então respiro.
Respiro fundo. Só respirar já é bom. Está mais do que bom. E penso que este frio que me desconforta não é nada demais e me envergonho por estar quase me lamentando, afinal tenho um bom casaco e meias grossas e estou sentado em uma poltrona macia.
Não posso e não devo queixar-me, mas esta é uma época de se sentir muita vergonha, como já disse. Vergonha e culpa. Tanta vergonha e tanta culpa que muitas vezes não sobra lugar nem para o medo. E temos fortes razões para sentir medo, pois fazemos parte do chamado grupo de risco.
Minha mãe cumprirá oitenta e sete em julho e sempre que escuto os meios de comunicação citarem o grupo de risco, minha primeira reação é a de que tenho sorte por não fazer parte, mas logo em seguida caio em mim e reparo que sim, que estou dentro, meus sessenta e dois se aproximam e é inacreditável que eu possa ter me tornado um idoso sem ter me dado conta. Quando estas conclusões me invadem, engulo um destes comprimidos da moda, ou derrubo algumas latas de cerveja, ou os dois juntos, e isto me ajuda a fingir um pouco que nada do que está acontecendo aflige minha alma. Minha mãe também. Esconde tudo. Disfarça muito bem. E assim, quando sentamos à mesa para comer, até damos boas risadas do noticiário da TV que fala sobre nossos representantes que se esmeram em ser ordinários e perversos e já nem mais preocupam-se em ocultar isto, mas quando começam as notícias sobre a pandemia, calamos. O sofrimento, a falta de leitos nos hospitais, as mortes que se somam, fazem com que mergulhemos no silêncio e na incerteza. Mas como eu dizia, começa a fazer frio nesta sala cheia de quadros.
A penumbra que vai se instalando aos poucos me traz lembrança das noites em que a luz faltava e minha mãe espalhava velas pela casa. Eu achava tão tristes aquelas velas e as sombras disformes e trêmulas que se projetavam nas paredes e arestas perfeitas de nossa casa moderna. Nesta mesma sala em que agora estou, ficávamos reunidos, esperando com ansiedade a luz voltar para que pudéssemos seguir com nossas vidas. Meu pai, para passar o tempo, assoviava melodias de sua época e era um assovio macio que não machucava nadinha. Era mais vento do que nota. Preciso e afinado. Era o que se tinha naquelas priscas eras. O divertimento das pessoas podia ser simplesmente assoviar, mas devo dizer que este tipo de recordação sempre me traz desassossego, e agora, para tentar livrar-me da irritante sensação, respiro. Respiro fundo.
Já faz um bom tempo que sei que respirar é um grande luxo. Ah, e como sei! Trinta anos de tabaco me trouxeram inesperadas crises de bronquite e foi aí que descobri que ter a ventura de respirar livremente pode ser até uma forma de rezar. Ou pelo menos, de agradecer. Então, como numa meditação, respiro profundamente várias vezes e penso nas pessoas da TV que disseram que a doença dá uma sensação de que se está afogando no seco. Cada vez mais vamos sabendo detalhes sobre os tipos de aparatos de oxigenação e as matérias de jornais não cansam de mostrar todo o universo de equipamento e pessoal que são necessários para entubar um paciente que já não pode respirar por conta própria. Sobre a anestesia que mata os reflexos corporais de forma que a pessoa não tente respirar junto com o aparelho também já sabemos. Do tempo grande de internação, das sequelas, dos médicos e enfermeiros que adoecem a toda hora devido à inexplicável falta de simples máscaras de proteção, dos pobres que têm pouca chance, dos miseráveis que morrem em casa e nas ruas, sabemos também. E sentimos muito medo por nós e muita culpa por termos sido tão relapsos em nossa vida de cotidiano egoísmo. Sabemos coisas demais sobre esta doença. O massacre midiático está aí vinte e quatro horas e vamos prestando atenção a tudo. Não perdemos nada. Hoje pela manhã ouvi um infectologista na rádio dizendo que talvez isto seja coisa de dois anos e possivelmente a máscara faça parte de nossa indumentária sabe-se lá até quando. Sabemos de tudo e estamos cansados. Respiro e penso que repirar é ouro. Já estive em UTI, em frente de gente entubada. A máquina dá o ritmo. Joga o ar para dentro do corpo inerte que recebe o ar como um golpe e logo em seguida puxa o ar com igual vigor. Os batimentos cardíacos são mantidos em velocidade alta. A máquina dá as cartas para que a vida tenha chance. É fantástico. Mas também é brutal. Penso nisto e sinto uma bola no estômago. Lembro que sou um ex-fumante que o cigarro deixou marcas no pulmão e também volto a recordar que faço parte de uma faixa etária em que os percentuais de agravamento são maiores. Um gelo percorre meu corpo e o terror me faz respirar várias vezes seguidas. O fluxo contínuo do ar acaba por me deixar um tanto mareado e me vem uma espécie de vertigem que me obriga a fechar os olhos. Tem acontecido que, nestes tempos de isolamento, sempre quando fecho os olhos, enxergo o mar.
Já não me assombro com isto, embora este mar, que de olhos fechados agora vejo, seja o mar que mais reconheço entre os tantos outros mares que tenho visto. Este oceano, com certeza, é o meu oceano mais familiar. Acho importante contar que meu oceano trata-se de uma paisagem formidável, de três horizontes infinitos, que conheço de toda a vida e qualquer forasteiro que pisar nesta praia ficará deveras surpreso com a imensidão deste espaço. Talvez você não consiga entender e até mesmo pode acreditar que seja exagero da minha parte, mas afirmo que a praia do meu lugar é do tamanho do mundo. Pelo menos era isso que eu sentia quando acompanhava meu pai à procura dos grandes mariscos que ele colocava cuidadosamente nos anzóis dourados e depois fazia um lançamento que jogava a chumbada pra lá da rebentação e eu vibrava com tamanha proeza e mais ainda quando o caniço vergava, sinalizando que na ponta da linha havia algo, quem sabe um bagre bonito, ou um papa terra prateado e lutador.
Não há dúvida. Este mar que agora vejo é meu mar.
Então experimento dar alguns passos por esta imensidão de tão fina areia e sinto a água fria das marolas tocando meus pés e é aí que descubro com assombro que não estou só, pois em minha mão esquerda vejo que Sophie, a altiva, se agarra e me acompanha e em minha mão direita, está Catarina, a corajosa. As duas vão tão sorridentes, trôpegas na areia, ensaiando suas primeiras carreiras pela praia, distribuindo gritinhos, vão douradas pelo sol de um fim de tarde glorioso que é um afago preparado especialmente para elas. Sophie e Catarina equilibram-se como podem no momento em que solto suas mãozinhas e as deixo ir em total liberdade para que corram como queiram, as duas encantadas vão saltitando em direção a um grupo de pessoas que reconheço, pois são os meus e estão todos ali, não falta nenhum dos meus, estão todinhos, de braços estendidos disputando a posse das pequerruchas que se acercam para aterrissar no meio daquela euforia toda e reconheço também este céu que é puro fevereiro, uns azuis de um verão que, generosamente, vai se despedindo para ceder seu lugar ao outono, que apesar de tímido e discreto em suas cores, é matreiro da alma, com sua sabedoria de nos envolver em teias de saudades tolas e vagas e meu olhar busca então o sul, pois era para o sul que eu caminhava incansavelmente para encontrar Cláudia em noites estreladas, noites em que os beijos de Cláudia valiam bem mais do que os banhos de mar, ou até mesmo jogar futebol com camisetas reluzentes e juiz com apito e tudo. O perfume de Cláudia que nunca esquecerei, a pele de Cláudia colada à minha e o imenso tesão dos quinze que nos fazia beijar tanto e tanto e falar um quase nada e íamos assim, beijando sem assunto até o raiar do dia com intermináveis despedidas, para depois tirar os sapatos e caminhar com ares de rei pela beira deste marzão e ainda acenar um par de vezes para a menina, sem parar jamais de assoviar You are the sunshine of my life do Stevie, no exato ritmo de meus passos, os pelos arrepiados da melodia linda e do contato com o sol nascente, um turbilhão na mente e na alma, a certeza no peito de que tocar um instrumento seria quase tão bom quanto beijar a boca de Cláudia, talvez piano, quem sabe tocar piano elétrico como tocava aquela cantora do hotel Atlântida que estava por lá todas as noites com seu conjunto.
Sim, este mar é meu mar mais exato. É o mar de minhas descobertas, mar de infindas alegrias e também de profunda dor, como naquela manhã mormacenta de janeiro em que estranhei um casal de amigos de minha mãe entrando alvoroçados na praia e me chamando, dizendo que teríamos de ir a Porto Alegre, pois meu pai havia passado mal.
Não tiveram coragem de me contar o que realmente havia acontecido, que meu pai não despertara naquela manhã e não despertaria nunca mais, e agora, que abro os olhos e volto à fria e já escura sala de nossa casa sem janelas, me chega também a lembrança de que li não sei onde, que não é sadio morrer dormindo. Li que é importante que a pessoa esteja consciente na hora da morte e sempre penso nesta bobagem quando recordo o momento em que entrei naquele quarto e lá estava meu velho, dormindo. Dormindo morto. Tão sereno que estava bronzeado do sol daquele verão que ficou triste. Sempre penso que quando se morre dormindo, a gente fica sonhando pra toda eternidade e talvez assim a nossa morte não seja tão dolorida. É um pensamento tolo, eu sei, mas me traz um pouco de conforto quando penso nele e quando penso na morte. Daquele dia, quase todo o resto se apagou de minha memória, a não ser o momento em que meu avô, que era escultor, pediu a um dos coveiros que lhe entregasse a pequena pá e a tábua de cimento, e com rara habilidade, cimentou a sepultura do próprio filho. Tinha eu dezenove anos, já tocava um pouco de piano e sonhava em ser uma espécie de Bil Evans.
Desde lá, mais de quarenta anos se passaram e andei chacoalhando bem por este mundo. Toquei jazz sim, mas também toquei de tudo um pouco e agora, nos últimos tempos, tenho me interessado por canções. Estava participando de um projeto com um colega, o Mago Levitan, autor de canções fantásticas e até gravamos um disco que seria lançado no meio deste ano de 2020, mas o vírus chegou e nos jogou bem longe dos palcos, os planos todos adiados, pois aglomerações estão proibidas e talvez sejam proibitivas por um tempo indeterminado e como faremos, se somos músicos e necessitamos muito e sempre de que haja aglomerações? Como faremos?
Esta pergunta não dá trégua e aqui nesta sala sem janelas que agora está completamente tomada pela escuridão, cantarolo a canção que compusemos numa tarde deste último verão, depois de conversarmos um bom tempo sobre o rumo sombrio que nosso país estava tomando, o fascismo avançando pouco a pouco, a República se desfazendo como açúcar na frente de nossos olhos, o manicômio que este país estava se transformando e nossa total apatia frente a isso tudo. Apesar das agudas preocupações, aquelas tardes foram tardes de criação e ensaios que tenho certeza jamais esqueceremos, pois a maturidade nos faz dar valor dobrado a este tipo de encontro e esta peste que agora está aí nos assustando, nos leva a sentir saudades de qualquer coisa, por mais insignificante que seja.
Foi numa destas tantas tardes de criação artística, no início de janeiro, que confessei envergonhado a Levitan que na noite anterior, possuído pela tristeza, a embriaguez e a fome, havia tomado o rumo do McDonalds e contei também que, no momento em que tinha a boca cheia de duvidosas batatas, escutei a meu lado uma menina de uns quinze anos, falando animadamente ao telefone, contando a outra pessoa que "a Paula estava na fila do caixa agora mesmo e pegou alguém, tu acredita? A Paula beijou a boca de um cara desconhecido na fila do Mac" e então perguntei a Levitan se ele não achava que aquilo seria o máximo, se ele não concordava comigo que aquilo sim é que seria um verdadeiro bálsamo para um espírito machucado e bêbado. Que estupenda fortuna não seria encontrar em uma fila qualquer, alguma das milhares de almas gêmeas que cada um de nós possui? E se ela se iluminasse com sua presença, reconhecesse seu olhar e se decidisse a dar-lhe a honra de dividir um beijo, este beijo poderia se chamar de beijo band aid, não poderia? Ou quem sabe beijo aspirina? Este providencial beijo poderia ser também batizado de beijo compressa, que viria tão bem para aliviar esta febre que já dura um tanto e sabe-se lá até quando vai, sabe-se lá até quando vai esta febre, e Levitan, que a tudo ouvia com olhos em transe, passou a rabiscar palavras no papel, e sentei ao piano e em meia hora tínhamos pronta a Canção Band aid.
CANÇÃO BAND AID
Minha canção vacina
Minha canção aspirina
É como mão de mãe que afaga
Ou voz de pai que vem dos corredores
Minha canção aguardente
Que distrai as dores
Que alivia e embala
Minha canção cabala
Minha canção morfina
Minha canção analgesina
Que anestesia a queixa
Minha canção não deixa
Minha canção não quer deixar
Que na angústia me falte o ar
Só a canção me acalma
Só a canção não deixa
Que eu morra de amores por ti.
Minha canção Band aid
Que protege a alma.
Estou sentado numa poltrona de uma sala que está completamente às escuras, cantarolando um pouco para me reconciliar com a vida e me assusto com o sinal de mensagem do celular. Nestes dias loucos, toda mensagem que chega me apavora. É meu filho Fernando, querendo saber se estamos bem e enviando fotos de Sophie, que hoje completa um mês de vida. Sophie na cama. Sophie no carrinho. Sophie no banho. Em Luxemburgo, ao contrário daqui, o verão está chegando, os dias são ensolarados e longos e isto é um alento para todos nós. Quando estourou a pandemia, ficamos tomados pela aflição, pois as futuras avós já haviam comprado passagem para estar lá na data do nascimento e acharam melhor cancelar tudo. Com isto, o jovem casal está, forçosamente, aprendendo sozinho como se cria um bebê, mas tenho a impressão de que vão se saindo muito bem. Nos tranquiliza também o fato de Luxemburgo ser um país rico e sério, que soube controlar rapidamente a pandemia. Sophie parece tão serena nas fotos! Serena e linda. Possui uma altivez no olhar que nos impressiona a todos. Os pais são tranquilos e a filhota não poderia deixar de ser. É minha primeira neta e as fotos que chegam diariamente servem para afastar meus maus pensamentos e trazer um pouco mais de esperança e coragem.
Aproveito então para fazer a ronda quase que diária e mando mensagens para Laura e Júlia pois quero saber como andam as coisas. Estou sempre de prontidão no caso de Laura precisar de alguma carona para o supermercado ou para o médico, pois Laura espera Catarina que chega em outubro e sei que são necessários vários exames e consultas. Dia destes ouvi os batimentos de uma ecografia e não tive dúvida de que Catarina, minha segunda neta, será corajosa e alegre como a mãe. Aquele coração é uma verdadeira escola de samba.
Com Júlia, que é a minha pequena e está com dezessete, troco vídeos de bichinhos que encontro nas redes. São vídeos singelos e engraçados que contrastam muito com o restante das postagens onde o ódio escorre. Então mando um cachorrinho, ela devolve uma catatua. Envio um gato assustado, ela descobre, não sei onde, um esquilo que toma banho na pia. E assim, damos boas risadas e vamos nos comunicando através destes códigos e sinais que entendemos muito bem.
Feita a ronda, me resta encontrar ânimo para levantar daqui, acender as luzes e tomar o rumo da cozinha. Luzes acesas, vejo que minha mãe voltou ao quarto e penso que talvez eu tenha adormecido naquela poltrona ou então meus devaneios estão me levando tão longe que já não consigo perceber os movimentos da casa. O relógio da parede mostra que o jornal da noite se aproxima. É momento então de colocar os pratos e talheres na mesa e abrir a geladeira para ver o que tem e o que não tem e assim decidir se amanhã será dia de ir ao supermercado.
No início da quarentena chegamos a pensar em fazer as compras por tele entrega, mas os estabelecimentos, entupidos de pedidos, davam prazo de quinze dias até chegar a mercadoria. Então, a solução foi arriscar mesmo. Uma vez por semana, depois de dormir apenas duas ou três horas, pois sou notívago, desperto às seis da manhã, tomo café, pego o álcool gel e a máscara e dirijo sonolento por ruas desertas. O supermercado aqui do bairro reservou o horário das sete para a terceira idade e isto nos pareceu uma atitude bastante responsável.
Geralmente sou o primeiro a entrar na grande loja, mas logo em seguida a velharada começa a chegar aos magotes. Sente-se a tensão no ar. Estão todos apressados, doidos para encerrar as compras e desaparecer dali. Dia destes, na fila do caixa, tive vontade de espirrar, e me concentrei uma barbaridade para isto não acontecer, pois fiquei com medo de que os velhos saíssem todos correndo.
Quando a pandemia chegou por estas bandas, como em outras partes do mundo, as pessoas, tomadas pelo pânico, invadiram os mercados e compraram tudo que puderam para fazer estoque. O primeiro artigo a desaparecer completamente das prateleiras foi, surpreendentemente, o papel higiênico. Ninguém sabia responder a razão para aquilo acontecer, até que um amigo publicou no Facebook que tal fenômeno ocorria porque sempre que um tossia, trinta se borravam. Achei uma explicação bastante lógica.
No supermercado sempre há nervosismo por todo canto. Não se vê um sorriso nas pessoas. Falo do sorriso dos olhos, pois o sorriso da boca não existirá por um bom tempo. Usar máscara agora é lei. Isto dá uma certa segurança, mas você coloca a máscara e é instantâneo que começa a coceira no nariz, e coça a boca, e coça o olho e você tem de manter-se firme com as mãos distantes do rosto, e o tira e bota dos óculos que uso para poder ler a lista, esqueço. Deixo os óculos na cara todo o tempo e vou olhando por cima deles para não bater de cabeça em alguma prateleira.
Borrifadores de álcool estão espalhados por todo lado e os utilizamos com fúria até as mãos ficarem tão secas que descamam, e isto cria uma imensa dificuldade na hora de abrir os saquinhos plásticos para colocar dentro frutas e legumes. Os dedos, por demais secos, não conseguem descolar as faces dos saquinhos. Frente a esta dificuldade, o primeiro ímpeto é dar uma boa lambida nos dedos, mas isto seria suicídio na certa. Lamber o saquinho também seria perigoso, além de ridículo. Então, a questão se transforma num exercício meditativo. Com toda a calma, vou manuseando aquela secura toda, levando fé no milagroso descolamento daquela porcaria, vou assoprando devagarzinho, acreditando, vou assoprando, assoprando e até oro. Pronto. Saquinho aberto. Repito o procedimento com as cebolas, laranjas, limões, pimentões e mangas e a lida toda me toma bem mais do que meia hora.
Na última quinta-feira, na fila dos frios, irritei-me um pouco, pois havia um homem na minha frente que pediu queijo prato, gorgonzola, presunto, azeitonas, peito de peru e no momento em que o cara, de forma impertinente, resolveu que queria provar a ricota, senti que havia gente atrás de mim e esta pessoa desrespeitava a distância segura. Como sei que, inexplicavelmente, existe gente que tem mania de se grudar no próximo, sem olhar para trás para saber que espécime seria, tranquei a respiração e despenquei da fila assassina, rumando célere para a região dos ovos e iogurtes, onde a densidade demográfica eu tinha certeza ser mais baixa e só ali pude respirar com uma certa segurança.
Depois de passar pelo caixa, vem uma sessão interminável de paranoias, tal como passar álcool na maçaneta do carro, na palanca de marchas, na direção, nas chaves, onde colocar a máscara usada? E você nunca tem certeza se fez os procedimentos de forma correta e acaba coçando a infernal coceira do nariz com a manga do blusão e fica meio desconfiado desta atitude idiota e então taca álcool no nariz, e como se não bastasse, resolve meter álcool dentro das narinas, e a ardência insuportável acarreta um acesso de espirros terrível, que faz você se abaixar e agarrar-se à porta do veículo para não cair e esta cena faz com que as pessoas acelerem o passo e aumentem sobremaneira a distância que guardam de você.
Logo depois, no momento de chegar em casa, vem aquela epopeia de deixar as roupas na rua, tomar banho, lavar tudo, e vai álcool na carteira, vai álcool nos documentos, nas chaves, nas maçanetas, nos trincos, no celular e só o cartão de crédito não passa por este processo. Este fica dentro da carteira e é tratado como indivíduo contaminado, pois o álcool danifica o cartão e o cartão danificado seria tão ruim ou pior do que quebrar os óculos ou o celular.
- Tu vais jantar, Francisco?
É minha mãe que chega à cozinha para a janta. Ela sempre coloca meu nome no fim da frase. As pessoas gostam de ouvir seu nome na sentença. Eu sempre tive o hábito de trocar o nome das pessoas com as quais me relacionava por algum apelido. Acho que isto é uma espécie de covardia. Deixava de dizer o nome no momento em que escolhia o apelido. Com o tempo ia deixando de dizer até o apelido. Já minha mãe coloca o nome. Sempre. Acho bonito isso. Acho ético. Todas as coisas que minha mãe faz, ela faz da melhor forma possível. Estou entendendo isto somente agora que cheguei à maturidade. Não sei como pude viver tanto tempo sem estar atento a certas atitudes e posturas elementares. Sempre fui muito desleixado, pensando que a vida poderia ser como o jazz e ser vivida de forma improvisada e nunca atinei que o detalhe poderia fazer a grande diferença. Agora sei que tudo isto tem seu preço, mas resolvi que vou aprender com minha mãe a ser um pouco mais cuidadoso, porque algumas coisas eu sei, e entre elas, sei que sempre é tempo de se aprender. Então, com mais de sessenta anos, vou prestando bastante atenção a seus pequenos gestos e decisões. Minha mãe é uma fortaleza de espírito e de caráter e ao mesmo tempo possui um senso de humor invejável. É pequena, tem olhos azuis e um jeito de menina, pois são poucos os seus cabelos brancos e além disso, como toda menina, adora as flores que vai plantando, replantando e fazendo arranjos que dispõe pela casa com grande alegria.
Minha irmã herdou muitas destas virtudes e também acelera na vida com gana. É pintora e professora entusiasmada e nesta quarentena está fazendo uns pães em casa que são divinos e vez por outra me chama para buscá-los. Hoje foi um destes dias e a janta, uma tradição do sul do país, será café. Quando falamos café, significa café com pão, manteiga, queijo, geleia, salame e até quem sabe algum tomate com azeite.
Então sentamo-nos à mesa e o noticiário da TV abre gritando as dolorosas manchetes sobre a doença, as assustadoras manchetes sobre a política nacional e a revolta do povo americano que incendeia prédios depois de um homem negro ser barbaramente assassinado por um policial branco que aparece nos vídeos pressionando a cabeça deste homem até à morte. A mais dolorosa ironia? Está nas imagens esse homem agonizando, pedindo clemência, dizendo não poder respirar. Não era covid. Eram só racismo e perversidade.
Já por aqui, foi um dia bastante tenso no nosso manicômio Brasil. Os mandatários estão fazendo todo tipo de ameaça velada à nossa jovem democracia e vamos assistindo a tudo paralisados pela quarentena. Você não vai acreditar. O próprio presidente eleito flerta com um golpe militar. É um de seus assuntos preferidos.
Sobre o covid, o noticiário anuncia o número de mortes das últimas vinte e quatro horas que ultrapassou a terrível marca de dois mil e logo em seguida faz um apanhado dos estados que mais estão sofrendo com a epidemia. São Paulo e Rio de Janeiro são os mais afetados e as matérias jornalísticas vão moendo nossa alma com a quantidade de pessoas que não conseguem atendimento, pois os hospitais estão abarrotados. Então trocamos algumas frases curtas comentando nossa aflição e quando voltamos a jogar nossa atenção à tela, se vê uma jornalista, no saguão de um hospital de periferia, entrevistando uma menina, querendo saber o motivo da menina estar lá, uma menina de uns oito anos, e a resposta é a de que a mãe estava doente, com muita tosse, e haviam ido lá pro doutor examinar e foi então que veio uma moça de branco com uma cadeira com rodas pra mãe sentar, e ela sentou e se foram lá pra dentro mas desde ontem é que a mãe não saiu mais de lá, e a repórter quer saber há quanto tempo, e a menina repete que desde ontem de manhã e fica claro que a jornalista embarga a voz, faz uma pausa para recuperar o tino e pergunta se não há mais alguém, um pai, um responsável, e a menina responde que não, que são de outra cidade e neste momento evito olhar para minha mãe pois minha intuição diz que o edifício vai desabar e a isto não estou acostumado, isto não quero, não temos intimidade para chorar nossos medos ou nossas tristezas, não devemos assustar um ao outro, sempre foi assim e isto é algo que não deve mudar, mas não consigo evitar as lágrimas que deságuam e maltratam meus olhos que vão se fechando e então aqui estou, novamente, na cara deste mar que é meu pelo resto da vida e tenho um caniço nas mãos, não há nada de vento, está uma calmaria só.
Posso ver nuvens avermelhadas no horizonte que junto com este calor abafado, certamente, prenunciam chuva, mas não para hoje. É um fim de tarde precioso para a pescaria. O mar não está muito mexido, as ondas são pequenas, há pouco repuxo e uma boa área de valas, onde os peixes gostam de mariscar. Então me concentro nas sensações que a linha pode me trazer, já que às vezes a beliscada é sutil e é aí que conta o reflexo do pescador e vou pensando o quanto me impressiona esta sensação de quando o peixe é fisgado, o sentimento da possível posse, o mistério a respeito do tipo e do tamanho que ele possa ter, e a calma que necessito para trazê-lo até mim, sem arrebentar a linha, e fazendo isto me sinto bárbaro, desde o momento em que li em algum destes almanaques de frases que “se o peixe gritasse, você teria coragem de pescar?” e pensando nestas miudezas vou assoviando You are the sunshine naquele estilo macio do meu velho, com muito sopro e pouca nota, quando, repentinamente saio de minha hipnose ao escutar que a meu lado, vozinhas me acompanham e vejo Sophie, a altiva e Catarina, a corajosa, que estão molhando os pés na água, me acompanhando, com seus onze, doze anos de idade, umas mocinhas, lindas, tão graciosas e sorridentes, largos cabelos e pele queimada do sol.
- Vocês conhecem esta música?
- Claro, vô. Meu pai tem este som no carro.
É Sophie que me responde com um leve acento germânico.
- É do Stevie Wonder.
Catarina completa e me pergunta em seguida.
- Vô? Por que tu pesca, se nunca vem peixe? Qual é a graça?
Esta pergunta me foi feita tantas e tantas vezes e acho que nunca soube como responder. Tenho sonhos recorrentes com improváveis pescarias dentro de casa, onde há córregos junto às paredes, ou então em diminutos poços no meio do nada e até mesmo em piscinas onde se podem ver os peixes nadando no fundo. Nestes sonhos não pego peixe nenhum, mas nunca me frustro e acabo carregando pelo resto do dia a memória destas magias noturnas. Quero responder às meninas, e para ganhar tempo, seguro o caniço com firmeza para girar a carretilha e esticar a linha que estava frouxa e vejo a forma tão bonita que o nylon toma quando sai do caniço e penetra na água. Reparo em minhas mãos envelhecidas, as juntas inchadas, e como se não tivesse visto os mais de setenta anos que se passaram, giro o corpo para dar uma boa olhada nesta praia que sempre foi minha. Parece que há mais pessoas circulando, mas de resto, está tudo como era antes. Talvez uma construção a mais, aqui e ali, mas nada que modifique a harmonia do antigo perfil. E esta gente que caminha pela orla parece alegre. Não vejo pessoas com máscara no rosto e tampouco vejo homens fardados e isto já é uma paisagem que se pode agradecer, você não acha? Minha praia continua parecida com o que era, embora o mundo tenha mudado bastante depois da pandemia de 20. Se isto não tivesse acontecido, agora estaríamos no meio dos escombros, pois quase soçobramos.
Volto então a atenção à questão que me foi feita pelas meninas e penso que talvez eu esteja aqui à espera de algum contato. Não tenho certeza mas também não tenho pressa nenhuma. Não me causa dano esperar. Ou será que isto que faço aqui nesta beira mar se chama esperançar? Esperançar um encontro com algo insondável? Esperançar a descoberta de algum sinal? Esperançar o contato com meu pai?
- Sabe o que é, gurias? Quanto tô aqui pescando, a minha cabeça para totalmente de funcionar e descansa tanto, tanto, mas descansa tanto dos pensamentos, que quando recolho a linha e volto pra casa, sabe o que acontece? Me dá a impressão de que tenho a idade de vocês.
- Que legal,vô.
E as duas saem correndo em direção contrária e gritando.
- Júlia! Deixa que eu pego ele!
Coloco os óculos e reconheço a lindeza de Júlia que vem trazendo pela mão um gurizinho. Um pitoco que não tem mais do que dois anos. Como você pode ver, nossa família vai aumentando.
O caniço dá um tranco e tiro-o do suporte, pois não há dúvida que foi uma beliscada poderosa. Sinto a fisgada do bicho e puxo com cuidado. Ele está aí, mas logo a linha volta a afrouxar e os sinais desaparecem. Deve ter escapado. Não há de ser nada. Tem dias do peixe e dias do pescador. De qualquer forma, o devolveria à água, como tenho feito de um tempo pra cá e se poderia dizer então que este não é um peixe azarado. Apenas levou um susto.
Recoloco o caniço no cano e afundo meus pés na areia molhada. Fico admirando os movimentos de meus netos na beira d’água e sinto que renasço um pouco a cada gesto, a cada novo olhar que percebo, a cada pergunta feita por eles. Esta gurizada tem muita sorte. São muito amados como eu fui e seus pais também. Tão lindos de vida, brincam nas ondas como toda e qualquer criança deveria poder brincar. Fazem um belo quadro no mar da minha existência e só posso me sentir honrado e agradecido por poder apreciar. As meninas cantam Stevie Wonder para Fernandinho que dança na areia. Sempre achei que a música que se ouve é a mesma coisa que o ar que se respira. Alguma herança sei que vou deixar. Stevie, Tom, Chico e o interesse em geral pelo que é bonito e digno. Fernandinho agora dança e ensaia uns gritos no meio da cantoria das gurias. Olha eu aí de novo!
Vejo o céu avermelhando-se por inteiro neste fim de tarde em que o cheiro da maresia vai ficando mais pronunciado. Isto certamente está acontecendo devido aos cardumes de peixe rei que se aproximam da costa. Sempre achei um mistério a orla ficar tomada por este cheiro, e no momento em que encho os pulmões e novamente presto atenção à importância deste ato, me chega a lembrança daquela noite tão fria em que minha mãe e eu não resistimos àquela cena da menina desamparada em meio ao caos de um hospital de periferia, e choramos feito dois desgraçados. Começamos timidamente, procurando disfarçar, mas fomos levados por uma onda de pranto indomável e naquela noite choramos lágrimas de antigas dívidas, choramos lágrimas de agradecimento e alegria, choramos o nosso medo, nossa tristeza e nossa esperança. Choramos até nos abraçarmos e ficamos exaustos de tanto chorar. Depois, bebemos vinho entre soluços e dormimos o sono dos purificados.
A noite agora vem chegando, vem tomando conta de verdade. Então é hora de recolher. Hoje saio desta praia sapateiro. Você sabe o que significa sapateiro? É quando o pescador não pesca peixe nenhum. Sapateiro, viu? Mas não tem problema. Está tudo de bom tamanho. Acho que está tudo em seu lugar. Vou puxando a linha sem pressa, que não precisa pressa, pois hora destas vou ter de ir. Hora destas vou ter de sair desta brincadeira tão boa. E quer saber? Vou sentir muitas saudades. Saudades de tudo.
Recolho a linha, pego meus badulaques, chamo minha turma e vamos embora que tão nos esperando! Um último filete de sol desaparece atrás do morro. Então caminho. Caminho e respiro fundo. Só respirar já é bom.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

REFREGA NO SUPER

Estava no super fazendo as compras e me dirigi ao corredor dos queijos e estas coisas.

Precisava pegar uma manteiga mas havia um cara que analisava as ditas.

Respeitei a distância correta e fiquei ali esperando o cara se decidir. O sujeito teria minha idade e não usava máscara e isto me irritou um pouco.

Segurava duas marcas de manteiga, com potes idênticos, e lia as bulas com atenção exagerada. Típica pessoa que fica remanchando pra voltar pra casa.

Reparou na minha presença e disse.

- Elas tem pesos diferentes, embora aqui diga ser o mesmo. Está muito claro isso. Experimenta.

Foi neste momento em que me estendeu os braços, para que eu também simulasse a aferição da diferença dos pesos da manteigas que tive a certeza.

Um bolsominion!

Me mantive imóvel e calado, fixando meus olhos, por sobre a máscara, naquele ser que manifestava séria intenção de me fazer segurar aqueles potes contaminados de coronga e também querendo que eu respirasse o mesmo ar que ele.

- Que que foi? Tá com medinho? Medinho de ser contaminado?

Um bolsominion rooths, pensei. Eu só queria pegar uma manteiga e taí esse bolsominion atravancando meu caminho. Parius! Então respirei pausadamente. Ele seguiu.

- Vocês são babaca mesmo. Ficam aí, acreditando nessa lenda de pandemia. Estão sendo enganados pela mídia que...

Deixo de escutar o que o cara diz, pois tenho ligação estreita com uma tribo africana, os Tarats Nômades do Zimbawe e através da respiração profunda, entro num transe zen e deixo de ouvir tudo o que não quero e então me tranquilizo, me acalmo, pois um minion jamais vai me tirar do sério, mas de repente chuto o carrinho e me atiro sobre o homem.

O primeiro soco acerto no cabelo. O segundo no pulôver. Em contrapartida o minion morde minha máscara, fato que achei bastante desaconselhável, pois eu já havia dado mais de sete espirros e naquela turbulência toda vamos de encontro à prateleira que, com o fabuloso choque, desaba sobre o outro corredor e no instante em que ouço os gritos das pessoas possivelmente esmagadas pela gigantesca estante, perco os sentidos, mas como todo Tarat Nômade do Zimbawe, mesmo desmaiado, continuo espancando com fúria, até voltar a mim quando reparo que estou sendo brutalmente sujeitado por mais de sete seguranças.

A raiva do combate havia feito meu tórax e barriga incharem, outra característica Tarat, e com isso meu cinto estourou, minhas calças caíram e ficaram expostas minhas vistosas ceroulas brancas que havia comprado em outra data naquele mesmo estabelecimento pela razoável quantia de 39,90.

Há de se contar também que seguido a isso sobreveio bravíssima ereção que, ora vejam só, também se trata de outra importante característica dos guerreiros Tarat, que experimentam formidável excitação depois de todo combate.

Por estas e por outras, fui conduzido dali com presteza por um séquito de mais de sete atendentes alvoroçados.

Dez minutos depois estou sentado em uma sala observando uma moça costurando meu cinto para que eu pudesse ir-me logo dali. Ela fala.

- O senhor sabe, que o outro moço que brigou com o senhor perdeu dois dentes?
- Foi mesmo?

Passo a língua por toda boca para ver se havia alguma perda mas acabo descobrindo um dente que eu não tinha. Faço menção de reclamar, mas me contenho, afinal de contas, não é qualquer um que termina uma briga com um dente a mais.

Olho o crachá da moça e falo com ela.
- Falta muito, Lourdes?
- Não é Lou. É Lu.
- Ah tá, Lurdes. Falta muito?
- E este “e” do fim também não tem muito. É Lurdis.
- Ah tá. Acento no u então.
- Não, moço. Sem acento.
- Ah tá.
- Moço. Posso lhe fazer uma pergunta?
- Venha.
- O senhor tem alguma ligação com a tribo dos Tarats do Zimbawe?

Neste momento fico surpreso com a qualidade acurada da especial cultura da menina, reparo na formosura e nobreza que ela possui no olhar e me apaixono perdidamente.

- Você pergunta isso por eu espancar mesmo desmaiado?
- Não.
- Pelo espetacular destroçamento do cinto, então.
- Também não. Eu vi do jeito que o senhor entrou aqui.
- Entendi, Lurdis.
- Queria que meu marido fosse um Tarat.
- Hum. Entendi mais.
- Tristeza, viu?
- Não dá no coro?
- Nem.
- Hum. Bueno. Podemos pensar num atendimento especial. Atendo Golden Cross. Atendo pelo SUS aqui no bairro mesmo.
- Sério?
- Séríssimo.

Já ia entregar meu cartão à moça mas não tive tempo.

Neste momento, inexplicavelmente, adentram no recinto mais de sete seguranças truculentos, pegam a mim e ao cinto com o conserto inacabado e me tocam para fora do complexo utilizando pontapés, ofensas e humilhações de toda espécie.

terça-feira, 28 de julho de 2020

MARILU, VLADIMIR, WATTS E joguinho

- Vai, Vla.
- Vai o que?
- Joga logo de uma vez!
- Não posso Marilu. Tenho coisa pra fazer.
- Tem coisa nada. Esse joguinho é o maior barato. Tô viciada. Vai. Joga.
- Não dá.
- Tá cansado de perder, tá?
- Que?
- Táz cansado de apanhar, né querido? Confessa.
- Que perder nada...e sei lá também.
- Sabe lá o que?
- Acho que tem truque.
- Que truque??
- Acho que tu tá dando o celular pro Pedrinho, pra ele jogar pra ti.
- Ahhhhh, Vladimirrrrrr!!! Que vergonha te ouvir falar uma coisa dessas. Coisa de machistinha cuzão.
- Hum.
- Tô te ganhando. Te dando olé. E sabe porquê?
- Por que?
- Porque tu é banana.
- Sou?
- É sim. Tu é um bananão.
- Tu vai ver só o bananão.
- ??
- Óh!!! Taí.
- Hum...ficou bem fora de foco...e tá meio se desmanchando a cosa. Tá mais pra bananinha isso aí.
- Não seja por isso. Pera que já te mando outra.
- Não amola, Vladimir. Vamos terminar esta partida.
- Ahhhh Marilu. Prefiro um virtual mil vezes.
- Mas tu não tá cheio de cosa p fazer?
- Eu dou um jeito.
- Ninanina! Vamu jogá.
- Parius.
- Vlazinho. Posso te propor um negócio.
- Hum.
- Jogamos três partidas. Se tu me ganhar uma, rola o virtual.
- Sério?
- Serissíssimo!
- Fechado.
- Vai lá então.
- Vou. Mas olha lá, hein? Sem roubo.
- Tá. Vai logo. Joga.
- Tá.
- Vai.
- Pera.
- Por quê que não joga?
- Não tô achando a caralha da página.
- Bah. Bananão!!!
- Vai à merda, Marilu!
- Joga de uma vez.
- Tá.

SOBRE AS LIVES - IMPORTANTE

Já faz tempo que tenho feito lives no Facebook, mas foi depois da pandemia que minhas lives se transformaram num assombro.

O numero de assistentes no Brasil não chega a ser tanto.

Varia de dez a doze, dependendo dos cochilos de minha mãe no quarto ao lado e também um tio que insiste em me cobrar uma muy antiga dívida de uma eletrola que já foi a usucapião e o cara é bastante desagradável de fazer isso em plena live onde estou brilhando.

Já tô craque em tocar com uma mão e bloqueá-lo ao mesmo tempo.

Mas se o público brasileiro é reduzido, não se pode dizer o mesmo da galera lá dos oriente.

É na Tailândia que tenho muita penetração.

Meu último disco vendeu sete milhões de cópias em território tailandês e soube de fontes seguras que o trabalho foi hackeado e fizeram mais sete milhões de cópias.

Isto perfaz quatorze milhões de discos em apenas um país e a entrada no Guiness está garantida pois se trata de um fenômeno estetoscópico.

PRESTATENÇÃO!!!

Na Tailândia tem mais disco meu do que tailandês!

Também é importante sublinhar que no Vietnã do Sul começo também a fazer relativo e relevante sucesso.

No Vietnã do Norte já é um tanto mais complicado pois ali, não sei por que razão, há uma predileção pela música dita gaudéria e minhas marcas, devo excluir a modéstia, são un ratito mas elaboradas.

Tailândia, Vietnã do Sul, do Norte e já ia esquecendo do Laos, têm comparecido em massa a minhas lives.

Só pra lembrar então.

Na segunda tem.

LIVE DE SEGUNDA DE PRIMEIRA 10Hs

Nas quintas.

LIVE DE QUINTA DE QUINTA 10Hs

Tenho certeza de que vocês vão gostarem.

Ah. Deixem à mão as bolacha. Às vezes é live rave.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

MARILU, VLADIMIR E O EU TE AMO

- Vla. Táz aí?
- Toz.
- Quero ver tua cara.
- Hum.
- Abre a cam.
- Tá.
- Olha só, Vla. Tô com muita saudade.
- Hum.
- Não aguento mais essa quarentena.
- Eu também não, Marilu.
- Não vejo a hora da gente se atirar num boteco, encher a cara, se abraçar bastante, dar muitos beijos e jogar toda essa nossa conversa fora.
- Humhum.
- Vla?
- Que?
- Te amo, viu?
- Hum.
- Te amo muito.
- Hum.
- Tu me ama também, Vla?
- Sim...
- Como, sim, Vladimir??!!
- Que?
- Diz que me ama, pô! Custa tanto?
- Dizer que te amo assim como dizem nos filmes e novelas?
- Isso, Vla. Assim como nos filmes e novelas.
- Assim na seca?
- É. Assim... na seca.
- Tá.
- Então diz.
- Eu te amn, Marilu.
- Como?
- Te anm.
- O som tá baixo. Será problema de conexão? Fala mais alto, pô!!
- Te ams, Marilu.
- Pô, Vladimir..que merda é essa?
- Que?
- Ta parecendo o Mussum. Não consegue dizer que ama alguém, Vladimir?
- Hum.
- Vladimir. Olha só! Tu é bunda mole.
- Sou?
- É sim. Sempre achei que tu era cuzão, mas agora tenho certeza.
- Calma, Marilu.
- Calma é o caralho! Tu é um baita pau no cu, Vanderlei!
- Opa, Opa, opa!!! Vanderlei?
- Que?...
- Tu não esquece o Vanderlei nunca, né Marilu?
- Hum.
- E ainda quer que eu diga que te amo com todas as letras?
- Ai, Vla. Desculpa!!! É muita sina ter dois namorados seguidos com o nome começando por V.
- Hum.
- Vla?
- Fala...
- Tô com muita saudade.
- Taz?
- Toz...mas agora fiquei com vergonha.
- Hum. Ficou?
- Fiquei sim. Vou até fazer um café. Dar uma olhada nas minhas coisas...
- Tá bom.
- Então tá, querido. Vou desligar aqui, tá? Te cuida.
- Marilu?
- Fala.
- Te amo, viu?
- Que?
- Te amo muito.
- Ai...Não fala assim, Vladimir...que eu choro.
- Pode chorar à vontade, querida.
- Posso?
- Pode sim. Tá todo mundo precisando chorar a sua cota diária. Eu hoje já chorei a minha.
- Não fala assim que choro mais ainda, Vlazinho.
- Chora, querida.
- Ai, Vladimir.
- Bom café pra ti.
- Tá...
- Tô aqui.
- Tá?
- Tô.
- Tá.
- Sempre.

MARILU, VLADIMIR E O VIRTUAL

- Marilu. Tá aí?
- Tô.
- Liga a cam?
- Pra?
- Liga?
- To trabalhando ainda. Mas tudo bem.
- Oi.
- Oi, Vla. Táz com a cara boa. Táz bonito.
- Toz?
- Táz. Mas diga.
- Vamos fazer?
- Fazer o que, Vladimir?
- Um virtual. Vamos?
- De novo, Vla!? Mas fizemos hoje de tarde!
- Ah...vamos? Tesão bárbaro.
- É?
- É sim. Tesão estratosférico.
- Tanto assim?
- Tesão estetoscópico
- Táz alucinando na pandemia.
- Vamos, Marilu?
- Escuta, Vla. O que é isso aí atrás?
- O que?
- Aí atrás de ti. Isso é uma montanha de papel higiênico?
- hum...é.
- Que nojo, Vladimir.
- Rinite bárbara, Marilu.
- Bronhite bárbara, Vladimir. Isto sim.
- Ah...vamos...tô muito afins.
- Não posso, Vla. Tenho trabalho pra fazer.
- Marilu?
- Que?
- Não tô nada bem.
- O quê que tu tens, Vladimir?
- Não sei.
- Como não sabe?
- Não sei ué.
- Vladimir. Quando a gente não tá bem, só pode ser duas coisas!
- É?
- É. Ou é gripe ou é caganeira.
- Hum.
- Táz com gripe?
- Não.
- Caganeira.
- Nem.
- Então taz ótimo.
- Talvez seja um mal da alma, Lulu.
- Não amola, Vladimir! Já conheço essa conversa. Tenho de trabalhar.
- Tá bom.
- Vla.
- Que?
- Quando souber o que tu tem, tu me chama?
- Chamo. Que remédio, né?
- Vla.
- Que?
- Te amo, viu?
- Idem.
- Vai à merda, Vladimir.
- Tá.

REMANCHANDO

São cinco da manhã e fico remanchando.

Não tenho vontade de ir pra cama.

Antes me assustava e deprimia um pouco ver a luz do dia se apresentando. Hoje em dia este desassossego já não me pega mais.

No Rio de Janeiro quando batia seis e tal eu descia e caminhava pela rua do Catete até à padaria.

As manhãs da Cidade Maravilhosa são muito vivas e ali na rua do Palácio bastante cedo já há um movimento formidável.

Era bom ver a cidade acordando, o movimento de gente de todo tipo iniciando a faina, os ônibus acelerando com fúria e homens com caniços tomando a direção da praia. Nunca imaginei que viveria num local onde precisasse caminhar apenas cinco minutos pra jogar uma linha na água.

Mas voltando à padaria, não sei se mudou, mas ali se fazia o pior pão do bairro. É sério. Quem mora ali, sabe. É um pão com um miolo cheio de ar, que no dia seguinte tem cheiro de chulé.

Além disso, o pessoal do atendimento era pra lá de antipático. Os donos, a mulher do caixa, os atendentes, todos absolutamente, caprichavam na forma desagradável de ser.

Mas valia a pena. Eu não precisava falar com ninguém e aquele pão na chapa com manteiga enganava muito bem. Mais um cafezinho e um suco de mamão com laranja e eu tava pronto pra ir pro berço.

Sinto um pouco de falta de uma cidade que nunca se apaga.

Bueno.

Agora bateu cinco e meia.

É Porto Alegre.

É sexta.

17 de julho de 20.

Houve dias muito frios por aqui. Ontem choveu bem e a meteorologia, surpreendentemente, promete trinta graus pra semana que vem.

A pandemia avança no sul.

O reitor da UFPEL, que é um guri fodão, diz ser vital fazer um lockdown de uns quinze dias pra que não colapse a caralha toda.

Por outro lado, o idiota mor, representante dos medíocres, nao consegue falar a palavra constituição. Quando tenta articular " hidroxicloroquina" quase desmaia.

Tá. Tá bom. Talvez surja alguém, é claro, dizendo que o Lula falava kipéx quando se referia ao apê do Guarujá. Mas o Lula podia. Lula, pelo menos, tinha uma ideia. Tinha uma pauta. Muito diferente deste zero à esquerda. Pária número um do planeta.

Bueno de novo.

Tem uma louça pra lavar e isso não é nada.

Daí me vou. Eu sei. Sigo remanchando.

Tá. fui.