A manhã avançava sem pressa e a Música serpenteava pela casa deslizando pelas paredes, esgueirando-se com agilidade por entre os móveis e fluindo até a janela de onde podia ver um sol que a tudo dourava e um povo moreno e amarrotado que jorrava iluminado das esquinas. A Música gostava de ver toda esta gente passando, gente que bebia da música de infinitos tipos e formas. Então a Música cintilou brevemente no spray deste sol e flutuando rente ao chão, tomou a direção do quarto do Homem que ainda dormia pois na noite anterior havia recebido a Mulher e os dois derrubaram uma garrafa de vodka entre tantos abraços e palavras murmuradas e mãos que buscavam incessantemente as grandes descobertas e a Música assistiu a tudo isto com alegria pois gostava de ver o Homem tomado por esta paixão que lhe deixava à flor da pele e quando tocava este homem que agora amava um pouco esta Mulher, as notas soavam mais densas e coloridas e dava gosto ver aquela Mulher bonita tão atenta, entre um cigarro e outro, escutando a Música tocar suavemente o Homem madrugada adentro até o momento em que a Música decidiu parar e foi brincar nos desvãos do telhado pois já era hora de deixar os dois recomeçarem as carícias que os levariam até o ponto em que suas vontades se dissipassem por completo num gran finale sem maestro e por isto o Homem dormia até mais tarde e também porque a Mulher se havia ido antes de chegar o dia, já que pertencia a outro homem que por sua vez era tocado por outra música.
Nesta manhã a Música não tinha pressa e ficou zanzando lentamente pelo quarto até o momento em que viu que os olhos do Homem se abriram e ela sabia que ele era preguiçoso e iria levar ainda algum tempo reorganizando pensamentos, lembrando-se dos flashes daquela Mulher tão nua e tão sinuosa, imaginando que já seria quase meio-dia e tinha de estudar piano, além de outras pequenas obrigações tão maçantes como ir ao supermercado e ficar entre as prateleiras devaneando sobre música, a Mulher que era quase sua e a eterna dúvida sobre o que comprar. A Música então deixou o quarto do Homem e se aproximou novamente da janela por onde saiu e foi tremular pelas varandas dos prédios para quem sabe ouvir a música da vizinhança, dos carros de som, a música que vinha das crianças pequenas e outras tantas músicas que assim como ela, eram tocadoras de homens e mulheres e esvoaçou pelas paredes de velhos tijolos à vista e bisbilhotou quartos e outras janelas sabendo que era preciso deixar o Homem vazio de música nestes primeiros momentos que seguiam ao despertar e então dançou um largo tempo entre ensolarados galhos de árvores até que se cansou disto quando lhe voltou a vontade de tocar o Homem e retornou à sala ao mesmo tempo em que ele saia da cozinha ainda mastigando, trazendo sua vermelha xícara de café e quando sentou ao piano a Música pode toca-lo apenas a mão direita, a mão que sobrava, fazendo soar pelo apartamento algumas poucas notas entrecortadas por acordes vacilantes pois o Homem destinava ainda alguma atenção ao café que permanecia quente e poderia lhe queimar e com o olhar perdido no vazio não desconfiava do que a Música já sabia que logo seriam interrompidos pelo telefone e do outro lado da linha uma voz convidaria o Homem para tocar música para muitas pessoas e a Música ficou feliz de ver o Homem ao telefone sorrindo assim tão lindo pois iria tocar para uma plateia que aplaudiria muito, uma plateia que nem por um instante poderia imaginar que não era o Homem que tocava a Música e sim exatamente o contrário.
Fernando Corona – RJ – 2013
https://www.facebook.com/pages/Cor%C3%B4nicas/1408993059364173?ref=hl
Nenhum comentário:
Postar um comentário