- Toz sim, Nautilus. Tá pronta pra dar o bote.
- O bote em que, Félix?
- Na barata que está no degrau de baixo, Nautilus.
- Daqui não vejo, Félix. E você não quer pegar esta barata crocante?
- Toz fora, Nautilus. Tá muito calor pra isso.
- Que ridículo, Félix. Essa lagartixa pega muito mais baratas que você.
- Certamente que sim, Nautilus. A vida da lagartixa é caçar baratas o dia inteiro. Já viu a cara concentrada que ela tem? e o mau humor? Tão ridículo. As lagartixas não são como nós, os gatos, Nautilus que temos diversos afazeres importantes, como dormir na pança do homem, tomar o leite da tarde, perseguir novelos e estropear poltronas fofinhas.
- Você tem razão, Félix. As lagartixas são bastante ridículas com esta seriedade que querem passar. Agora...me diga uma coisa. Você já pegou uma lagartixa?
- Já peguei sim, Nautilus. E disso muito me arrependo.
- E por que, meu bom amigo Félix?
- Porque a textura é asquerosa, Nautilus. Ela pode parecer lisinha, mas é áspera.
- Áspera, Félix?
- Áspera e fria, Nautilus.
- Becs!! Mas que nojo, Félix?
- E gosmenta de uma gosma amarga e nojenta, Nautilus.
- Essa conversa tá me deixando enjoado, Félix.
- E o pior, Nautilus. Ficou um pedaço do rabo dela em minha boca.
- Que asco. Então você matou a lagartixa, Félix.
- Matei nada, Nautilus. Ela saiu correndo e o rabo ficou na minha boca se mexendo todo. Que ridículo.
- Credo, Félix. Toz coberto de náuseas. Você sabe que meu estômago é sensível.
- Vai ali no jardim e come um funcho, Nautilus.
- É isso mesmo que vou fazer, Félix. Que história nojenta. Vou comer funcho.
- Coma um funcho, Nautilus. Coma um funcho.
- Tá me dando vontade até de cagá um cocô de tanto asco, Félix.
- Cague um cocô, Nautilus. Cague um cocô. Mas trate de cobrir bem, que ontem você não cobriu e acabei pisando, e o resultado disso foi que meu dia ficou impossível.
- Foi, Félix?
- Foi, Nautilus. Cubra bem.
- Então foi por isso que te vi passando pelo pátio todo empertigado meio durão, Félix?§
- Foi por isso sim, Nautilus.
- Uma hora vi que você deu um pulo, Félix!§ Foi porque você pisou no meu cocô?§§
- Foi sim, Nautilus. E pare de rir.
- Um pulo você deu, Félix. E depois um pulo mais alto ainda. §§§ Foi? Muito ridículo.§§§
- Pare de rir, Nautilus!! Senão você vai sentir a fúria de minha unhas!!
- §§§ Você parecia que queria patear a lua, Félix. §§§ Tão ridículo!
- Você pediu, Nautilus. Toma isso.
E assim, Nautilus e Félix tiveram uma breve rusga de patadas e mordiscos, logo apartada pela mulher que chegou da cozinha com a temível vassoura.
A lagartixa teve um sobressalto com a gritaria e, possuída pela irritação, subiu o muro de forma acelerada. Ficou um bom tempo nas alturas, se recompondo do susto, respirando com impaciência e lamentando a perda da presa suculenta. A barata, por sua vez, sem imaginar que teve a vida salva devido a uma peleia de predadores de mais alta linhagem, acabou ficando por ali mesmo, alheia aos fatos, ciscando com pouco entusiasmo entre latas e botijões de gás enebriante.
NOTA DO AUTOR
Como os felinos riem com a alma e assim seu riso não tem propriamente nem som nem forma, resolveu-se estipular um signo para cada risada.
O signo é este: §
Quanto mais riso, mais §
§§§ significa que o gato está a um passo de gargalhar, o que seria possivelmente impossível.
Também, à guisa de informação, é significativo dizer que se trata de uma praxe felina o fato dos gatos colocarem o nome do interlocutor em toda frase.
Outro dado marcante.
Os nomes dos gatos são escolhidos por eles mesmos e é por isto que de nada serve você tentar dar nome a um gato. Ele jamais atenderá.
Tenho certeza também de que você se surpreendeu com a repetição sistemática do termo “ridículo” em meio à conversação.
Explico.
Para os felinos, quase tudo neste mundo é ridículo. Sempre que você enxergar um gato sentado com o olhar perdido no vazio não tenha dúvidas de que ele está pensando que o universo que está ali, revelando-se a sua frente é, no mínimo, ridículo.
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