Natal é bom quando a gente é pequeno e tudo parece estar completo, pois nossos principais estão todos por perto nesta noite de celebração.
Então o tempo vai passando, alguns dos principais se vão de uma forma ou de outra, a família se divide apesar de crescer, e aí já não achamos tão bom o Natal.
O tempo vai passando mais ainda, e a família que já estava dividida se subdivide e é aí que sentimos que não tem mais volta, que nossos pedaços estão definitivamente espalhados pelo mundo afora.
Acho que é a vida que vai ficando mais dura perto do topo.(A frase é do Nietzsche - nunca consigo escrever certo o nome desse cara) e é uma frase que vou entendendo bem, e me sinto privilegiado por poder entende-la, assim como sou privilegiado por estar agora escrevendo neste computador, assim como tive muita sorte de ter uma família sem maiores mazelas e com condições até de botar na mesa um Chester, uma torta fria e um par de garrafas de Champagne. Nada demais, mas também nadíssima de menos.
Desde criança pergunto o que significa o Natal. Por alguma razão, sempre acabo esquecendo.
Agora já não importa muito.
O Natal, ando descobrindo, é apenas um dia a mais no qual podemos simplesmente agradecer as sortes.
Deveríamos fazer isto mais.
Deveríamos fazer isto todos os dias.
dezembro 14 e 15
segunda-feira, 28 de dezembro de 2015
domingo, 27 de dezembro de 2015
O QUE CHICO FEZ PELO POVO?
Vejo que muitas pessoas revoltadas, e certamente distraídas, insistem na pergunta, e isso geralmente acontece em caixa alta:
O QUE CHICO BUARQUE FEZ PELO POVO?
Eu tenho uma vaga ideia e vou tentar escreve-la.
Acho que o Chico, desde sempre, criou uma música nova e fantástica. Tive a sorte de ter tido contato com esta música desde criança e sendo assim, acredito que Chico faz parte de minha educação.
Penso que a música do Chico pode apurar a percepção das pessoas e desta forma elas podem se interessar por ouvir mais música com esta qualidade, como também podem se interessar por literatura, por bom cinema, por ecologia.
Acho que cultura e educação aumentam horizontes e o leque de escolhas. Escolher significa eleger.
Penso que quanto maior for nossa quantidade de opções, maior será nossa possibilidade também de ter uma visão política um pouco menos frágil. Maior será nossa capacidade de avaliar e não aceitar o que está sendo dito pelos meios de comunicação, a voz leviana da mídia. Tanto politicamente quanto culturalmente.
A Globo dissemina a ideia desta música mercantil sertaneja aos 4 cantos do Brasil e exime-se de entregar cultura às pessoas. É um ataque massivo.
Não acredito que quem consome este tipo de música possa ter uma ideia política consistente. Também não acredito que sejam pessoas que se interessem por qualquer outro tipo de arte. Não acredito que sejam pessoas que se interessem em geral. Foram formatados como meros consumidores de lixo. E os meios de comunicação se esforçam diariamente para aumentar mais e mais este contingente de consumidores cegos.
Buda disse que o conflito não está entre o bem e o mal, e sim entre o conhecimento e a ignorância. A ignorância resulta num congresso, a cada dia que passa, mais careta e mais bandido. Esta ignorância, que é alimentada diariamente pela TV que só quer encher os bolsos de dinheiro, tem um preço social muito alto.
Não sei se me faço entender, mas o resumo da resposta para esta pergunta que vi tantas vezes repetida é mais ou menos este:
O que Chico fez pelo povo foi aumentar sua capacidade de percepção. Aprimorar a estética, em princípio, tem também como resultado o aprimoramento da ética e isto nada mais é do que melhorar a visão política no melhor sentido que esta palavra possa ter. É um movimento de um valor imenso e por causa disto, acho que Chico pode e deve tomar champagne em Paris ou em qualquer outro lugar do mundo. É um gigante. Um dos maiores criadores do planeta.
Tive muita sorte de ter tido pais que me puseram em contato com ele.
Esta é apenas uma ideia que tenho a respeito do que Chico, assim como todos os artistas criativos, fizeram e fazem por um povo. Você pode até discordar, mas para isto, antes vai ter de entender. E se discordar não precisa gritar.
Teremos de achar o fio de comunicação. Mais dia ou menos dia.
O QUE CHICO BUARQUE FEZ PELO POVO?
Eu tenho uma vaga ideia e vou tentar escreve-la.
Acho que o Chico, desde sempre, criou uma música nova e fantástica. Tive a sorte de ter tido contato com esta música desde criança e sendo assim, acredito que Chico faz parte de minha educação.
Penso que a música do Chico pode apurar a percepção das pessoas e desta forma elas podem se interessar por ouvir mais música com esta qualidade, como também podem se interessar por literatura, por bom cinema, por ecologia.
Acho que cultura e educação aumentam horizontes e o leque de escolhas. Escolher significa eleger.
Penso que quanto maior for nossa quantidade de opções, maior será nossa possibilidade também de ter uma visão política um pouco menos frágil. Maior será nossa capacidade de avaliar e não aceitar o que está sendo dito pelos meios de comunicação, a voz leviana da mídia. Tanto politicamente quanto culturalmente.
A Globo dissemina a ideia desta música mercantil sertaneja aos 4 cantos do Brasil e exime-se de entregar cultura às pessoas. É um ataque massivo.
Não acredito que quem consome este tipo de música possa ter uma ideia política consistente. Também não acredito que sejam pessoas que se interessem por qualquer outro tipo de arte. Não acredito que sejam pessoas que se interessem em geral. Foram formatados como meros consumidores de lixo. E os meios de comunicação se esforçam diariamente para aumentar mais e mais este contingente de consumidores cegos.
Buda disse que o conflito não está entre o bem e o mal, e sim entre o conhecimento e a ignorância. A ignorância resulta num congresso, a cada dia que passa, mais careta e mais bandido. Esta ignorância, que é alimentada diariamente pela TV que só quer encher os bolsos de dinheiro, tem um preço social muito alto.
Não sei se me faço entender, mas o resumo da resposta para esta pergunta que vi tantas vezes repetida é mais ou menos este:
O que Chico fez pelo povo foi aumentar sua capacidade de percepção. Aprimorar a estética, em princípio, tem também como resultado o aprimoramento da ética e isto nada mais é do que melhorar a visão política no melhor sentido que esta palavra possa ter. É um movimento de um valor imenso e por causa disto, acho que Chico pode e deve tomar champagne em Paris ou em qualquer outro lugar do mundo. É um gigante. Um dos maiores criadores do planeta.
Tive muita sorte de ter tido pais que me puseram em contato com ele.
Esta é apenas uma ideia que tenho a respeito do que Chico, assim como todos os artistas criativos, fizeram e fazem por um povo. Você pode até discordar, mas para isto, antes vai ter de entender. E se discordar não precisa gritar.
Teremos de achar o fio de comunicação. Mais dia ou menos dia.
27 - dezembro - 15
segunda-feira, 30 de novembro de 2015
CACHORRADA
Meus filhos eram pequenos e ganharam o Alvin. Alvin era um Bichon Frisé. Um cachorro branco, peludo e fofinho. Já nos primeiros dias notamos que ele era bastante mijão e não parecia haver maneira de ensina-lo a não ser assim. Além disso, vomitava toda a casa e isso certamente acontecia devido à rica dieta que lhe administrávamos, à base de Negresco e Traquinas.
Logo depois fomos morar um tempo com minha mãe. Minha mãe também tinha cachorros e este fato fez o Alvin se tornar 5 vezes mais mijão. Queria marcar todo o território possível. Uma tarde foi pego em cima da mesa da cozinha mijando no açucareiro. Minha mãe ficava furiosa e o Alvin, pra se vingar, mijava no meio da cama dela.
Cena boa de se ver era dar um pão de queijo pra ele. Ele adorava brincar com pão de queijo.
Atirava pra cima. Quando caia, deitava em cima, se esfregava. Ficava nessa farra um tempão. Até que chegava um momento em que estancava e olhava fixo pro pão de queijo. Então levantava a perna, dava uma mijadinha em cima e comia. Bota tempero aí!
Minha mãe tinha um puddle, o Luizinho, que regulava de tamanho com ele. Brincavam horas. Ficavam em êxtase quando um mijava na cara do outro. Era o ponto alto da brincadeira.
Tinha também o Bastião, um buldogue branco gordo e irascível. Pulava na gente. Brabo. Um dia perdi a paciência e sentei uma fita de vídeo na cabeça dele. A força com que fiz aquilo foi brutal. Bati pra matar. Quando vi, ele ficou com uma cara faceira, como que pedindo mais. Gostou do barbarismo. Minha irmã, que assistiu à cena lamentável, chorava.
E tinha o Trapizomba. Um Pastor Alemão gente finíssima. Dócil e amigo. Pagava uns boquetões inacreditáveis pro Luizinho com uma língua de 20 cm. Slurb, slurb, slurb. O Luizinho ficava de olhos arregalados. Estático. Não acreditava que pudesse existir tamanho prazer.
Uma noite ouvimos um grito na área e quando abrimos a porta o Alvin tava com um olho pra fora. O Trapizomba deve ter mastigado a cabeça dele e a pressão fez o olho saltar. Não deu pra salvar o olho. O veterinário operou e descobriu que ele tinha catarata no outro. A partir deste dia, além de mijar sem parar, ele começou a latir também. Latia 24 horas.
Isto aconteceu já faz bastante tempo, Agora todos devem estar ao lado do Senhor, com exceção do Bastião que deve ser cupincha do Demo. O Alvin certamente está mijando todo o céu. Putz. Pensando nisso reparei que aqui no sul não para de chover. Será que tem a ver?
POA - novembro - 15
Logo depois fomos morar um tempo com minha mãe. Minha mãe também tinha cachorros e este fato fez o Alvin se tornar 5 vezes mais mijão. Queria marcar todo o território possível. Uma tarde foi pego em cima da mesa da cozinha mijando no açucareiro. Minha mãe ficava furiosa e o Alvin, pra se vingar, mijava no meio da cama dela.
Cena boa de se ver era dar um pão de queijo pra ele. Ele adorava brincar com pão de queijo.
Atirava pra cima. Quando caia, deitava em cima, se esfregava. Ficava nessa farra um tempão. Até que chegava um momento em que estancava e olhava fixo pro pão de queijo. Então levantava a perna, dava uma mijadinha em cima e comia. Bota tempero aí!
Minha mãe tinha um puddle, o Luizinho, que regulava de tamanho com ele. Brincavam horas. Ficavam em êxtase quando um mijava na cara do outro. Era o ponto alto da brincadeira.
Tinha também o Bastião, um buldogue branco gordo e irascível. Pulava na gente. Brabo. Um dia perdi a paciência e sentei uma fita de vídeo na cabeça dele. A força com que fiz aquilo foi brutal. Bati pra matar. Quando vi, ele ficou com uma cara faceira, como que pedindo mais. Gostou do barbarismo. Minha irmã, que assistiu à cena lamentável, chorava.
E tinha o Trapizomba. Um Pastor Alemão gente finíssima. Dócil e amigo. Pagava uns boquetões inacreditáveis pro Luizinho com uma língua de 20 cm. Slurb, slurb, slurb. O Luizinho ficava de olhos arregalados. Estático. Não acreditava que pudesse existir tamanho prazer.
Uma noite ouvimos um grito na área e quando abrimos a porta o Alvin tava com um olho pra fora. O Trapizomba deve ter mastigado a cabeça dele e a pressão fez o olho saltar. Não deu pra salvar o olho. O veterinário operou e descobriu que ele tinha catarata no outro. A partir deste dia, além de mijar sem parar, ele começou a latir também. Latia 24 horas.
Isto aconteceu já faz bastante tempo, Agora todos devem estar ao lado do Senhor, com exceção do Bastião que deve ser cupincha do Demo. O Alvin certamente está mijando todo o céu. Putz. Pensando nisso reparei que aqui no sul não para de chover. Será que tem a ver?
POA - novembro - 15
sábado, 21 de novembro de 2015
ALMA DE ESPELUNCA
...daí vc vai num japonês em q já foi diversas vezes porque os caras são bons e vc gosta e então pede uma cerveja já de cara, porque vc tá muito afim desta cerveja, mas a cerveja demora e vc pede de novo e demora mais ainda e então só é trazida por uma terceira pessoa, e uma porção da comida que faz parte do combinado não vem pra mesa e vc tem de perguntar se está mesmo incluída e tem de pedir mais de uma vez pra que venha e o sabor das coisas resulta surpreendentemente duvidoso, chegando ao ponto de lembrar arroz de leite, pode isso? mas vc come igual, afinal o restaura é legal, vc conhece bem e por isto deve estar apreciando, e no final, meio q contrafeito, pede a conta pra um garçom que não traz e pede pra outro q também não traz e vc, que já começa a se acostumar com esta nova prática, acaba levantando e vai no caixa, mas no caixa tem um casal q não cede espaço, devem estar pedindo comida pra levar, mas não, apenas estão batendo papo com a mulher q trabalha ali e ela não repara na sua presença e tampouco cessa com a conversa e então é melhor se afastar um pouco pra ficar observando entre dentes aquela falta de senso e de repente alguém que está com vc, q é mais observador que vc, revela a novíssima novidade – Olha só! O restaurante mudou de nome!, então vc metaboliza esta informação fresca e junta com todos os outros pontos conflitantes e a realidade cai como uma marquise melancólica sobre sua cabeça, a cena se desnuda claríssima, seu pateta, vc acaba de jantar num restaurante q é apenas a casca do q era antes e q certamente vai rachar e ruir logo em seguida, vc comeu e bebeu distraidamente, sem notar a alma de espelunca que passeava pelo ar, seu viajandão, vc só foi descobrir tudo isto quando já era tarde, tardíssimo demais...
sábado, 14 de novembro de 2015
O CIGARRO SEM FUMAÇA
Muitas vezes, quando estou lendo, me vem a sensação de que a literatura é muito maior do que a música. Ainda não sei explicar isto, mas hora destas consigo desenhar com os detalhes necessários. Dia destes consigo pegar o sentido exato e traduzir em palavras.
Nestes momentos, também sempre me vem à cabeça que já ouvi pintores, escritores e outros artistas famosos dizerem acreditar que a música, sem sombra de dúvida, é a mais fantástica entre todas as artes.
Ontem estava pensando que isto talvez aconteça pela agilidade que a música tem. Pela miniatura que pode ser, pela fluidez, por ser fragmento que pode ser interrompido e continuado logo a seguir. Pode durar 30 minutos mas também pode durar 3. Podemos escutar a mesma música 3 vezes seguidas e no dia seguinte podemos repetir a dose. Em casa, na rua, no elevador. Não faríamos o mesmo com um conto, muito menos com um filme. A arte do humor também não permite muita repetição. A piada logo se torna velha.
Só na música existe o bis imediato. No final de uma peça quando todos se levantam, fico com o maior medo de que peçam bis e que se repita a peça toda de novo.
Agora mudando de assunto, mas continuando no mesmo. Teve uma época em que só se aplaudia de pé aquilo que era muito fantástico. Hoje as pessoas aplaudem qualquer coisa de pé, mas acho que, na real, ficam de pé porque não suportam a ansiedade. “Beleza, tava muito bom, tava ótimo, mas quero sair daqui logo de uma vez”.
Antes era mais pelo cigarro, mas agora as pessoas querem sair pra teclar. Muitas delas nem aguentam esperar o fim. Teclam no meio do filme, do concerto, da peça. Acho que existe gente que entra numa sala de cinema só pra poder teclar sem ser incomodada.
O smart phone é o cigarro sem fumaça e é um cigarro que vai se revelando pouco a pouco. Vicia e vicia muito.
Não faz mal ao pulmão. Parecia inofensivo. SQN.
Nestes momentos, também sempre me vem à cabeça que já ouvi pintores, escritores e outros artistas famosos dizerem acreditar que a música, sem sombra de dúvida, é a mais fantástica entre todas as artes.
Ontem estava pensando que isto talvez aconteça pela agilidade que a música tem. Pela miniatura que pode ser, pela fluidez, por ser fragmento que pode ser interrompido e continuado logo a seguir. Pode durar 30 minutos mas também pode durar 3. Podemos escutar a mesma música 3 vezes seguidas e no dia seguinte podemos repetir a dose. Em casa, na rua, no elevador. Não faríamos o mesmo com um conto, muito menos com um filme. A arte do humor também não permite muita repetição. A piada logo se torna velha.
Só na música existe o bis imediato. No final de uma peça quando todos se levantam, fico com o maior medo de que peçam bis e que se repita a peça toda de novo.
Agora mudando de assunto, mas continuando no mesmo. Teve uma época em que só se aplaudia de pé aquilo que era muito fantástico. Hoje as pessoas aplaudem qualquer coisa de pé, mas acho que, na real, ficam de pé porque não suportam a ansiedade. “Beleza, tava muito bom, tava ótimo, mas quero sair daqui logo de uma vez”.
Antes era mais pelo cigarro, mas agora as pessoas querem sair pra teclar. Muitas delas nem aguentam esperar o fim. Teclam no meio do filme, do concerto, da peça. Acho que existe gente que entra numa sala de cinema só pra poder teclar sem ser incomodada.
O smart phone é o cigarro sem fumaça e é um cigarro que vai se revelando pouco a pouco. Vicia e vicia muito.
Não faz mal ao pulmão. Parecia inofensivo. SQN.
domingo, 8 de novembro de 2015
OS SAPATOS ESQUECIDOS
Nos últimos dias se tornou comum que maus pensamentos me visitem no momento em que abro a porta de casa para tomar o corriqueiro rumo da padaria. Desconfio que isto anda rolando com você também.
Isto certamente está acontecendo devido à notícia que já se espalhou por todas as querências de que na realidade não há e nunca houve efetivo policial à altura para frear a criminalidade que está por aí.
As autoridades fizeram este desfavor à comunidade riograndense. Informaram aos meliantes que eles podem ir pra galera sem medo.
Ontem, depois de vencer o aflitivo pensamento de que alguém pode me apontar uma arma, saí pelas ruas e um outro novo sentimento me tomou. A atmosfera anda muito esquisita. Estamos em novembro, mas as cores do céu, tenho certeza, são de maio. E estes ventos gelados só podem provir dos Alpes Suiços. É cosa de louco.
Estas constatações misturadas vão dando uma sensaçãozinha de final dos tempos. Não é?
Então estava caminhando e tentando digerir estas impressões, quando me deparei com algo que vez por outra acontece, e sempre me assombra.
Ali, no meio do passeio público, numa calçada que não tem muito movimento de passantes, havia um par de sapatos jogado, esquecido. Acho que eram sapatos femininos e estavam em muito bom estado. Eram sapatos quase novos. Como explicar sapatos deixados assim na via?
Então resolvi fotografar, não sem antes dar uma boa olhada ao redor pra me certificar que não havia ladrões malvados querendo confiscar meu precioso smart phone.
Fotografei porque a configuração deles era por demais curiosa e sugestiva e juro que não mexi na cena.
Era como uma pose de Fred Astaire. Como se a pessoa tivesse sido abduzida em algum momento qualquer em que a dança lhe estava proporcionando extrema alegria. Os sapatos deixados seriam uma espécie de assinatura dos extra terrestres.
Este já é um sentimento bastante melhor. Antes, quando via sapatos bons esquecidos na rua, sempre me vinha a ideia de que o dono havia de certa forma desistido. Ou que havia chegado à conclusão de que sua vida tinha chegado num ponto tão ruim que seria melhor começar tudo de novo. Descalçar os sapatos e abandona-los seria a primeira atitude, mesmo que isso viesse a acontecer em praça pública.
Depois que o chapéu saiu de moda, o sapato se tornou a peça mais emblemática da indumentária. Conheço gente que acha que você pode vestir qualquer trapo, mas os sapatos tem de estar bala. Estas pessoas acham que se você calçar um bom sapato, já está bem vestido.
Se você leu estas imprecisas linhas e viu a foto, deve ter notado que há cocô de pássaro num dos pés.
Isto também me fez pensar que talvez esta mulher, a dona dos sapatos, estivesse indo à padaria, assim como eu, e assaltada por esta imensa gama de maus pensamentos, fez algum desesperado pedido aos céus que foi imediatamente atendido, e no momento em que viu que havia se livrado de vez de sua triste condição humana, bateu asas e se foi, não sem antes dar uma boa cagada no símbolo de sua jornada.
Eu já ia dando o "enter", quando ainda me veio o palpite final de que talvez um fantástico beijo a tenha tirado do solo, a tenha feito levitar para logo em seguida ser levada nos braços pelos fios da madrugada, um beijo que a deixou assim, assim, sem palavras, sem lembranças, sem enredo. Um beijo que a fez esquecer dos sapatos e de todo o resto... um beijo daqueles que ri de tudo, que ri até do medo.
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
CONSULTAS MÉDICAS E MULHERES BRABAS
Já faz tempo, andava me gripando muito e resolvi marcar uma consulta com um homeopata que diziam ser fera. Entrei no consultório, ele pediu pra eu tirar os sapatos e deitar numa maca. Então começou a me examinar e foi fazendo algumas perguntas. Num momento dado ele quis saber se eu sentia um calor esquisito nos pés. Respondi-lhe que não.
Ele seguiu com a consulta e logo repetiu a indagação ao que respondi.
- Não, Dr. Me sinto muito bem com meus pés.
Ele pareceu contrafeito, mas seguiu com o exame e fez 3 ou 4 perguntas seguidas e rápidas e logo veio com a carga novamente.
- E nos pés? Não sente um tipo de calor?
Tentando me pegar distraído, hein? Não consegui conter o riso e continuei negando. Negaria até a morte, afinal de contas nunca senti calor algum nos pés.
Depois de terminado o exame ele estava me prescrevendo as medicações e me explicando algumas coisas tipo:
- ... os resfriados constantes provém de um excesso de água, e isso é o que faz você sentir este calor nos pés que é o sintoma...
Caraca. Fiquei olhando pra ele. Comecei a sentir um calor nos pés, mas devia ser uma vontade de sapecar um chute na bunda do cara. Me receitou uma penca de remédios caros pra caramba, com umas dosagens complicadíssimas, e a metade não encontrei nas farmácias e acho que até mandei fazer e nunca busquei. Mas quer saber? Não tenho nem nunca tive calor nos pés.
Um tempo depois fui numa iridologista. Sabe o que é, né? Pela íris o médico descobre todas as perebas que a gente tem. Entrei no consultório, ela mandou sentar. Se aproximou e ficou assim, de pertinho, olho no olho. De repente falou.
- O senhor bebe?
- Bebo sim.
- Hmpf.
- Você sabe isso só olhando a íris?
- Não. É pelo bafo mesmo.
Coisa parecida com o anterior. Consulta barata pra alegrar a gente, no entanto os remédios homeopáticos uma fortuna. Ah. Outra coisa. Só manipulavam na farmácia que pertencia a ela. Não fiz, é claro.
No Rio de Janeiro fui num peruano, especialista energético. Deitei na maca e o cara começou a botar umas fichas de pedra em cima do meu corpo. Na testa, no pescoço, no peito. Nos chakras, certamente. Se retirou do recinto, que se não me engano tinha música Zen e incenso. Daqui a pouco voltou e começou a tirar as fichas. Sentenciou com um sotaque castija:
- Você está com a próstata inflamada.
- Não.
- Não?
- Acabei de fazer exames da próstata. Minha próstata tá a milhão.
O cara embrabeceu. Pode?
Estas consultas todas foram inventadas pelas mulheres. Sempre obedeci às mulheres. Então elas inventavam que eu devia ir e eu ia. Sempre fui ameba.
Aqui no prédio tenho um vizinho que tem uma mulher bonita que grita ensandecida com ele. Enche o magrão de desaforos. Fico com a maior inveja. Faz tempo que não tenho mulher que grita comigo.
Pra terminar, aqui vai mais uma experiência. Esta não aconteceu comigo. Acho.
O cara sentou na frente do gastro e começou a se queixar.
- Doutor, pela manhã náusea ao escovar os dentes. Uma dor aqui do lado direito sempre incomodando. E diarreia também. Dia sim, dia não.
O doutor ouviu aquilo tudo e perguntou.
- O senhor bebe?
O rosto do paciente se iluminou com um sorriso.
- Aceito.
Ele seguiu com a consulta e logo repetiu a indagação ao que respondi.
- Não, Dr. Me sinto muito bem com meus pés.
Ele pareceu contrafeito, mas seguiu com o exame e fez 3 ou 4 perguntas seguidas e rápidas e logo veio com a carga novamente.
- E nos pés? Não sente um tipo de calor?
Tentando me pegar distraído, hein? Não consegui conter o riso e continuei negando. Negaria até a morte, afinal de contas nunca senti calor algum nos pés.
Depois de terminado o exame ele estava me prescrevendo as medicações e me explicando algumas coisas tipo:
- ... os resfriados constantes provém de um excesso de água, e isso é o que faz você sentir este calor nos pés que é o sintoma...
Caraca. Fiquei olhando pra ele. Comecei a sentir um calor nos pés, mas devia ser uma vontade de sapecar um chute na bunda do cara. Me receitou uma penca de remédios caros pra caramba, com umas dosagens complicadíssimas, e a metade não encontrei nas farmácias e acho que até mandei fazer e nunca busquei. Mas quer saber? Não tenho nem nunca tive calor nos pés.
Um tempo depois fui numa iridologista. Sabe o que é, né? Pela íris o médico descobre todas as perebas que a gente tem. Entrei no consultório, ela mandou sentar. Se aproximou e ficou assim, de pertinho, olho no olho. De repente falou.
- O senhor bebe?
- Bebo sim.
- Hmpf.
- Você sabe isso só olhando a íris?
- Não. É pelo bafo mesmo.
Coisa parecida com o anterior. Consulta barata pra alegrar a gente, no entanto os remédios homeopáticos uma fortuna. Ah. Outra coisa. Só manipulavam na farmácia que pertencia a ela. Não fiz, é claro.
No Rio de Janeiro fui num peruano, especialista energético. Deitei na maca e o cara começou a botar umas fichas de pedra em cima do meu corpo. Na testa, no pescoço, no peito. Nos chakras, certamente. Se retirou do recinto, que se não me engano tinha música Zen e incenso. Daqui a pouco voltou e começou a tirar as fichas. Sentenciou com um sotaque castija:
- Você está com a próstata inflamada.
- Não.
- Não?
- Acabei de fazer exames da próstata. Minha próstata tá a milhão.
O cara embrabeceu. Pode?
Estas consultas todas foram inventadas pelas mulheres. Sempre obedeci às mulheres. Então elas inventavam que eu devia ir e eu ia. Sempre fui ameba.
Aqui no prédio tenho um vizinho que tem uma mulher bonita que grita ensandecida com ele. Enche o magrão de desaforos. Fico com a maior inveja. Faz tempo que não tenho mulher que grita comigo.
Pra terminar, aqui vai mais uma experiência. Esta não aconteceu comigo. Acho.
O cara sentou na frente do gastro e começou a se queixar.
- Doutor, pela manhã náusea ao escovar os dentes. Uma dor aqui do lado direito sempre incomodando. E diarreia também. Dia sim, dia não.
O doutor ouviu aquilo tudo e perguntou.
- O senhor bebe?
O rosto do paciente se iluminou com um sorriso.
- Aceito.
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
RIO DE DEZEMBRO
Acho que cada um de nós tem uma trilha sonora que lhe acompanha, uma trilha que ambienta seus dias, sua jornada. Minha trilha foi esculpida em tardes de outono durante aulas gazeadas e inesquecíveis descobertas. Minha trilha sempre a trago cá comigo, como agora que a vou assoviando, enquanto caminho pelas ruas desta cidade formidável, e esta palavra, formidável , que já está tão fora de moda era muito utilizada por meu pai, então por isso não a esqueço e quando a coloco feito homenagem em meio a qualquer frase, sempre me vem à boca um gosto de super herói em tardes de abril, uma TV com chuvisco irrecuperável.
Acho que cada um de nós tem sua trilha sonora e esta trilha vai sempre se modificando. Com o passar do tempo, ela vai adquirindo outros nuances, outros matizes, novos arranjos, vai virando senhora, vai se tornando sábia. Neste momento, cantarolo a minha e a faço misturar-se aos sons que vêm dos carros, ao burburinho das pessoas. Do meu lado direito escuto o som do oceano majestoso que se aproxima de mansinho e com a intimidade que só ele sabe ter invade minha trilha e isto nada mais é do que o mais puro e profundo sexo. Aquele sexo que é mais do que consentido, que é desejado. O sexo das almas gêmeas, dos apaixonados ou simplesmente o sexo dos vorazes que também são generosos e tem talento. Minha trilha tem mar, tem brisa, tem avião e tem sereia. E mais do que tudo, minha trilha sonora tem beijo, ah isso como tem... e tem palavras que não se entendem, mas que se pode muito bem imaginar.
Mas este é só mais um domingo em que pensei que ia encontra-la. Ela novamente não apareceu. Por isto estou mudando de assunto, desconversando. Mas não pense que ela faltou a algum encontro marcado. Não...não é nada disso. Pra falar bem a verdade nem a conheço. Ou melhor, a conheço de um sonho que se repete tantas e tantas vezes que sei, que quando a encontrar, terei certeza de que é ela. Não posso descrever com palavras o jeito dos olhos que ela tem. Nem posso dar uma vaga ideia daquelas mãos que se movem como pássaros sagrados. Mas sei que ela deve estar por aí, em algum ponto da cidade formidável com uma sensação no peito que não a deixa.
Acho que todos nós temos uma trilha sonora que nos acompanha, que nos enleva, que nos deixa a pele arrepiada. A minha vou entoando no ritmo de meus passos enquanto o sol se perde atrás de mim e atrás dos morros. Mesmo estando aqui há tanto tempo, ainda me assombro com a beleza e a magnitude da arquitetura desta cidade. Então vou espionando janelas e salas. Adivinho viveres, escolho lugares onde vou morar. Sinto no ar a melancolia deste domingo que se vai e me abraça ternamente. E imagino. Imagino que ela possa estar em alguma varanda. Tomando café, fazendo as unhas, ouvindo música, lendo... ou olhando nos meus olhos... como ela está fazendo exatamente agora.
https://www.youtube.com/watch?v=U33gSGHkI3I
Acho que cada um de nós tem sua trilha sonora e esta trilha vai sempre se modificando. Com o passar do tempo, ela vai adquirindo outros nuances, outros matizes, novos arranjos, vai virando senhora, vai se tornando sábia. Neste momento, cantarolo a minha e a faço misturar-se aos sons que vêm dos carros, ao burburinho das pessoas. Do meu lado direito escuto o som do oceano majestoso que se aproxima de mansinho e com a intimidade que só ele sabe ter invade minha trilha e isto nada mais é do que o mais puro e profundo sexo. Aquele sexo que é mais do que consentido, que é desejado. O sexo das almas gêmeas, dos apaixonados ou simplesmente o sexo dos vorazes que também são generosos e tem talento. Minha trilha tem mar, tem brisa, tem avião e tem sereia. E mais do que tudo, minha trilha sonora tem beijo, ah isso como tem... e tem palavras que não se entendem, mas que se pode muito bem imaginar.
Mas este é só mais um domingo em que pensei que ia encontra-la. Ela novamente não apareceu. Por isto estou mudando de assunto, desconversando. Mas não pense que ela faltou a algum encontro marcado. Não...não é nada disso. Pra falar bem a verdade nem a conheço. Ou melhor, a conheço de um sonho que se repete tantas e tantas vezes que sei, que quando a encontrar, terei certeza de que é ela. Não posso descrever com palavras o jeito dos olhos que ela tem. Nem posso dar uma vaga ideia daquelas mãos que se movem como pássaros sagrados. Mas sei que ela deve estar por aí, em algum ponto da cidade formidável com uma sensação no peito que não a deixa.
Acho que todos nós temos uma trilha sonora que nos acompanha, que nos enleva, que nos deixa a pele arrepiada. A minha vou entoando no ritmo de meus passos enquanto o sol se perde atrás de mim e atrás dos morros. Mesmo estando aqui há tanto tempo, ainda me assombro com a beleza e a magnitude da arquitetura desta cidade. Então vou espionando janelas e salas. Adivinho viveres, escolho lugares onde vou morar. Sinto no ar a melancolia deste domingo que se vai e me abraça ternamente. E imagino. Imagino que ela possa estar em alguma varanda. Tomando café, fazendo as unhas, ouvindo música, lendo... ou olhando nos meus olhos... como ela está fazendo exatamente agora.
https://www.youtube.com/watch?v=U33gSGHkI3I
sábado, 17 de outubro de 2015
Oi, Nina. Resolvi procurar teu endereço de email na página do facebook para te enviar algumas linhas. Evitei manda-las por mensagem e te explico o porquê. Não quis correr o risco de você não tecer qualquer resposta ou comentário, mesmo tendo visualizado o que escrevi. Quis evitar a possibilidade deste silêncio, que seria constrangedor. Então optei pelas águas turvas onde são jogados todos os e-mails pois eles sempre podem tomar a direção de alguma caixa que nunca será aberta. É mais confortante para mim imagina-lo repousando intocável no lixo eletrônico. Mas queria te contar que nesta noite passada sonhei contigo. Estava eu em uma viagem de trem e quando parei em alguma estação que parecia ampla, iluminada e com suaves cores de tijolo predominando, você, repentinamente vinda do nada, apareceu em minha frente. Tinha um sorriso na boca, que me pareceu tão familiar, e me entregou algo. Para este objeto que recebi de suas mãos ainda não consegui achar a palavra adequada em nossa língua cotidiana. Então o denomino paquete e sei que isto é bastante inusual, mas não posso chamá-lo de outra maneira. É a palavra que me vem à cabeça. Tinha a forma de um tablete, ou quem sabe uma barra de ouro dentro de um estojo. É o que diz minha memória que ainda está fresca, pois isto aconteceu há alguns minutos, e minha memória também indica que aquele momento em que você me entregou o paquete foi por demais precioso, pois meu corpo todo vibrou com uma sensação de profundo agradecimento. Surpreendentemente, seguido a isso, você se aproximou e beijou minha boca e foi um beijo terno e efusivo, e neste momento pude ver de perto e de forma muito clara as formas tão belas de seu rosto, seus olhos gigantes de fada que você sabe que tem quando espalha generosas fotos pela rede, com a vaidade que já conheço, pois também a possuo, e intuo que seja um animal que nós dois sabemos muito bem como domesticar. Não acredito que exista alguém no mundo que consiga beijar durante o sonho por largo tempo e comigo não foi diferente. O beijo sempre nos faz acordar e como já não sou tão criança, desta feita também não tentei reembarcar na cauda do sonho, apesar de ter pensado nisso. Então tentei me conformar com meu pobre despertar, mas não posso deixar de dizer que restou uma sensação de rosetas na cama. Devo confessar também que tive dúvidas em relatar a você este evento que parece tolo, afinal de contas, sempre apenas trocamos fortuitos likes e tivemos um par de diálogos entrecortados e vagos, mas pensei que não há mais tempo para deixar de fazer as coisas. Então resolvi te contar. Pensei também que este sonho talvez tenha sido sonhado por você. Ou quem sabe você possa ter sonhado algo que complemente, ou pelo menos explique meu sonho desta noite, algo que revele o significado que ele tem e agora vou mais longe ainda. Estou imaginando que este meu relato possa fazer você sonhar a parte que falta, se existir realmente uma parte que falta. E por que não? Nos últimos tempos tenho adivinhado pensamentos, reações e frases e posso jurar que a porta da garagem tem se aberto frações de segundo antes de eu acionar o controle remoto. Por que não posso acreditar também que as pessoas se relacionem em seus subconscientes e os novos tempos nos farão descobrir um outro mundo? Um mundo inconsciente e mais harmônico, um mundo paralelo onde amores e amizades são mais fluídos, mais líquidos, um mundo com menos histórico e assim também com menos culpa? Talvez meu e-mail não se perca e você clique, abra e leia e quem sabe tenha algo bom a dizer sobre meu devaneio. Quem sabe até tenha algo a sonhar em cima de tudo isto e depois me conte. Agora me vou. Vou almoçar que logo tenho o que fazer. Daqui vejo que voltou a chover. Porto Alegre tem andado triste. Bem mais triste do que eu. Bjs.
15 - OUTUBRO - pOa
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terça-feira, 6 de outubro de 2015
TOLICES E COISAS TOLAS
Foi no Julio de Catilhos, que chegou um aluno novo, que tocava também um pouco de piano, e por isto nos aproximamos. Tínhamos 15 anos e morávamos no mesmo bairro. Voltávamos juntos pra casa. Íamos caminhando e ele falava sempre sem parar. Ia me comprimindo pouco a pouco contra a parede. Quando eu não tinha mais espaço, pulava pro outro lado. Então ele me apertava até chegar no fio da calçada. Quando estava quase levando um espelhaço de ônibus na mufa voltava pro outro lado. Era assim sempre. Chegava uma hora que eu estrilava.
- Pô cara! Chega pra lá.
- Pô! Sujeira cara.
Ele era uruguaio e gostava dessa gíria muito usada na época. "Sujeira". Usava em toda e qualquer situação.
Tempos depois conheci um sujeito que gostava de falar de perto. Sabe? Gostava de conversar com as mãos no bolso e o nariz colado no nariz da gente. Lembro que eu me afastava 10 centímetros e ele avançava 10. Me afastava mais 10 e ele recuperava. Quando chegava na parede tinha de dar um jeito de buscar um outro lugar, em campo aberto que desse chance de fuga. Muito chato. Enquanto ele falava eu não respirava. Não queria inalar o troço que ele expirava.
Agora estes tempos reencontrei um colega que adquiriu o hábito de cutucar quando conversa. Cutuca a gente na barriga. 15 minutos de trela e a barriga já tá doendo bem. De tanto cutuco. E a conversa? Nem vale a pena apanhar tanto. Papo de doido.
Uma vez fui no churrasco de uns americanos decadentes. Comecei a conversar com um octogenário. Ele falava com acentuado sotaque e num tom muito baixo, então para entende-lo tinha de me aproximar. Quando isso acontecia tinha de me afastar pois ele fedia legal. Banho jamais. Véinho nhaquento. Então fiquei ali um tempo que nem João Bobo. Pra frente, pra trás.
Tem também aqueles caras que vem te cumprimentar e pra demonstrar personalidade ou virilidade apertam a mão dicumforça. Pra mim que toco piano e tenho cotovelo de tenista é uma beleza. Tenho estendido a esquerda, quando vejo que o cara é fortão. No documentário do grande pianista Nelson Freire em determinado momento ele comenta que se tem uma coisa que não gosta de fazer nessa vida é cumprimentar. Certamente tem medo. Mãos valiosas.
- Por que você não vai nestas farmácias que tem estas novas máquinas de diagnóstico? Através da urina você descobre o mal que está passando. É barato e dá resultado.
O cara aceitou a sugestão e entrou na farmácia. Fez xixi no potinho e colocou o potinho na máquina. Menos de 2 minutos, veio o resultado numa folha de papel.
VOCÊ ESTÁ SOFRENDO DE EPICONDILITE AGUDA, POPULARMENTE CONHECIDA COMO COTOVELO DE TENISTA. PROCURE UM TRAUMATOLOGISTA.
O cara achou legal, mas não acreditou muito. Resolveu passar a máquina pra trás.
Chegou em casa, botou um pouco do xixi do cachorro no potinho, logo comentou com a família o fato acontecido e pediu pra filha e pra mulher fazerem xixi ali dentro também. Não contente com isto, se masturbou pra aumentar a confusão daquilo. Ele só queria ver que resultado a máquina ia inventar.
No dia seguinte entrou na farmácia e colocou o potinho dentro da máquina. Se passaram 2 minutos e a máquina apresentou o seguinte laudo:
SEU CACHORRO ESTÁ COM VERMES. PROCURE UM VETERINÁRIO.
SUA FILHA ESTÁ CHEIRANDO COCAÍNA. PROCURE UM CENTRO DE APOIO.
SUA MULHER ESTÁ GRÁVIDA E O FILHO NÃO É SEU. PROCURE UM ADVOGADO.
E VÊ SE PARA UM POUCO DE BATER PUNHETA QUE É ISSO QUE DÁ COTOVELO DE TENISTA.
- Pô cara! Chega pra lá.
- Pô! Sujeira cara.
Ele era uruguaio e gostava dessa gíria muito usada na época. "Sujeira". Usava em toda e qualquer situação.
Tempos depois conheci um sujeito que gostava de falar de perto. Sabe? Gostava de conversar com as mãos no bolso e o nariz colado no nariz da gente. Lembro que eu me afastava 10 centímetros e ele avançava 10. Me afastava mais 10 e ele recuperava. Quando chegava na parede tinha de dar um jeito de buscar um outro lugar, em campo aberto que desse chance de fuga. Muito chato. Enquanto ele falava eu não respirava. Não queria inalar o troço que ele expirava.
Agora estes tempos reencontrei um colega que adquiriu o hábito de cutucar quando conversa. Cutuca a gente na barriga. 15 minutos de trela e a barriga já tá doendo bem. De tanto cutuco. E a conversa? Nem vale a pena apanhar tanto. Papo de doido.
Uma vez fui no churrasco de uns americanos decadentes. Comecei a conversar com um octogenário. Ele falava com acentuado sotaque e num tom muito baixo, então para entende-lo tinha de me aproximar. Quando isso acontecia tinha de me afastar pois ele fedia legal. Banho jamais. Véinho nhaquento. Então fiquei ali um tempo que nem João Bobo. Pra frente, pra trás.
Tem também aqueles caras que vem te cumprimentar e pra demonstrar personalidade ou virilidade apertam a mão dicumforça. Pra mim que toco piano e tenho cotovelo de tenista é uma beleza. Tenho estendido a esquerda, quando vejo que o cara é fortão. No documentário do grande pianista Nelson Freire em determinado momento ele comenta que se tem uma coisa que não gosta de fazer nessa vida é cumprimentar. Certamente tem medo. Mãos valiosas.
Pra terminar, piadinha correlata.
O cara se queixou para o amigo de estar com muita dor no braço e o amigo aconselhou.
O cara se queixou para o amigo de estar com muita dor no braço e o amigo aconselhou.
- Por que você não vai nestas farmácias que tem estas novas máquinas de diagnóstico? Através da urina você descobre o mal que está passando. É barato e dá resultado.
O cara aceitou a sugestão e entrou na farmácia. Fez xixi no potinho e colocou o potinho na máquina. Menos de 2 minutos, veio o resultado numa folha de papel.
VOCÊ ESTÁ SOFRENDO DE EPICONDILITE AGUDA, POPULARMENTE CONHECIDA COMO COTOVELO DE TENISTA. PROCURE UM TRAUMATOLOGISTA.
O cara achou legal, mas não acreditou muito. Resolveu passar a máquina pra trás.
Chegou em casa, botou um pouco do xixi do cachorro no potinho, logo comentou com a família o fato acontecido e pediu pra filha e pra mulher fazerem xixi ali dentro também. Não contente com isto, se masturbou pra aumentar a confusão daquilo. Ele só queria ver que resultado a máquina ia inventar.
No dia seguinte entrou na farmácia e colocou o potinho dentro da máquina. Se passaram 2 minutos e a máquina apresentou o seguinte laudo:
SEU CACHORRO ESTÁ COM VERMES. PROCURE UM VETERINÁRIO.
SUA FILHA ESTÁ CHEIRANDO COCAÍNA. PROCURE UM CENTRO DE APOIO.
SUA MULHER ESTÁ GRÁVIDA E O FILHO NÃO É SEU. PROCURE UM ADVOGADO.
E VÊ SE PARA UM POUCO DE BATER PUNHETA QUE É ISSO QUE DÁ COTOVELO DE TENISTA.
Fc-outubro-15- pOA
sábado, 3 de outubro de 2015
ROMANCE DE FACEBOOK
Os dois tinham se conhecido rapidamente pela rede e ele logo convidou-a para sair.
Ela gostou da atitude cheia de atitude da parte dele e aceitou o convite, não sem antes dar uma furungada nas fotos.
Achou que ele não era nada de mais, mas também nada de menos. Tinha fotos normais, com amigos, com filhos e ela só encasquetou com uma, na qual ele estava ao lado da mãe.
Cara de um, focinho do outro.
Sempre desconfie deste fenômeno. Quando o filho é a cara da mãe, é sabido que ele é apenas um boneco. É a mesma pessoa em dois corpos diferentes, sendo que a personalidade é a da velha.
No momento em que estavam sentando no restaurante ela foi chamada à atenção pelo cabelo do sujeito. Nas fotos do Face não dava pra ter uma ideia mais precisa, mas com a iluminação farta daquele estabelecimento, ela pôde ver com clareza que era tipo uma moita, logo em seguida achou que se parecia mais com um carpete, até ter certeza de que aquilo era um fragmento removido de algum gramado sintético. Ficou como que hipnotizada e não conseguia tirar os olhos daquela formação que começava um pouco acima das sobrancelhas e ia quase até às costas.
O homem parecia ansioso, consultando toda hora o relógio, e subitamente num gesto decidido, com um sorriso enigmático na cara, tirou um tubinho de plástico do bolso do paletó e de dentro deste pescou um comprimido azul que depositou sobre a mesa ao lado do prato. A moça então não se conteve e apontando para a pílula celeste, mandou.
- Posso perguntar o que é isto?
- Claro, Elizabéss.
- Haroldo... você pode me chamar de Beth.
- Nome de rainha, Elizabéss...tem de ser respeitado. Esqueçamos minimizações. Você não gosta da minha pronúncia? Elizabésssss.
Ele tratou de exagerar a articulação da palavra, usando a língua bem entre os dentes. Com a performance, acabou aspergindo um pouco de saliva, atingindo levemente o rosto da moça que se sentindo um pouco mareada, voltou a perguntar.
- Isso é remédio. Haroldo?
- Não, Elizabéss. É Viagra.
Ela ficou atônita, em silêncio. Enquanto ele espiava o relógio mais uma vez. Beth voltou à carga.
- E você vai tomar este comprimido agora?
- Vou. Exatamente agora.
E engoliu o azulzinho com assustadora sofreguidão. Após verificar a hora mais uma vez, explicou.
- É o comprimido das 8, Elizabéss. Saiba que tomo Viagra de 8 em 8 horas.
Quando ela ouviu a resposta e observou aquele sorriso de Jack Nicholson nos seus piores momentos, murmurou com uma voz quase inaudível.
- Sério?
- Sério, Elizabéss. Assim estou sempre pronto pro que der e vier. Daí, de onde você agora está sentada, infelizmente, não pode admirar o magnífico resultado do meu tratamento.
Nesse momento ela começou a sentir uma vontadezinha de chorar. Ele continuou.
- E daí de onde você está sentada também não pode visualizar uma outra coisinha muito interessante... interessante de verdade, Elizabess. Pode acreditar.
Ela então indagou com um fiozinho de voz.
- É? E o que seria?
Depois de uma pequena pausa, Haroldo se inclinou sobre a mesa e, com uma careta sorridente, sussurrou:
- Eu depilo.
Beth sentiu o calafrio que lhe percorria os ossos.
- Depila?
- Depilo, Elizabéss. Depilo as partes. Depilo tudinho. Até o botão do alarme tá depilado, você acredita?
Nesse instante, Beth se engasgou e já ia começar a tossir, mas Haroldo inclinou-se mais ainda, quase encostando o rosto no rosto da mulher, que agora estava pálida e de olhos arregalados.
Em tom quase segredado o homem despejou lentamente.
- Elizabéss... Agora eu estava reparando...que olho lindo que você tem, um olho azul... grande. Sabe que tenho um sonho?...ter um olho assim, exatamente assim, como o seu, pra por no meu chaveiro... já pensou? Você não acha que ficaria joia?
Ao ouvir isto, Beth não pode evitar uma primeira lágrima, mas antes que caísse a segunda, deu um grito, levantou-se com escândalo e iniciou ensandecida carreira pelo restaurante, desafiando todas as leis dos saltos altos, e como uma garça desesperada que necessita urgentemente alçar voo, depois de quase fazer um strike de garçons, mergulhou pra dentro de um táxi em movimento.
Quinze minutos depois, Beth chegou em casa, fechou portas e janelas, encerrou a conta do Face, mudou de e-mail, pediu férias e foi passar 15 dias na casa da irmã Margareth. Quero dizer...Margaréss.
FC - OUTUBRO - 15 - pOa
Ela gostou da atitude cheia de atitude da parte dele e aceitou o convite, não sem antes dar uma furungada nas fotos.
Achou que ele não era nada de mais, mas também nada de menos. Tinha fotos normais, com amigos, com filhos e ela só encasquetou com uma, na qual ele estava ao lado da mãe.
Cara de um, focinho do outro.
Sempre desconfie deste fenômeno. Quando o filho é a cara da mãe, é sabido que ele é apenas um boneco. É a mesma pessoa em dois corpos diferentes, sendo que a personalidade é a da velha.
No momento em que estavam sentando no restaurante ela foi chamada à atenção pelo cabelo do sujeito. Nas fotos do Face não dava pra ter uma ideia mais precisa, mas com a iluminação farta daquele estabelecimento, ela pôde ver com clareza que era tipo uma moita, logo em seguida achou que se parecia mais com um carpete, até ter certeza de que aquilo era um fragmento removido de algum gramado sintético. Ficou como que hipnotizada e não conseguia tirar os olhos daquela formação que começava um pouco acima das sobrancelhas e ia quase até às costas.
O homem parecia ansioso, consultando toda hora o relógio, e subitamente num gesto decidido, com um sorriso enigmático na cara, tirou um tubinho de plástico do bolso do paletó e de dentro deste pescou um comprimido azul que depositou sobre a mesa ao lado do prato. A moça então não se conteve e apontando para a pílula celeste, mandou.
- Posso perguntar o que é isto?
- Claro, Elizabéss.
- Haroldo... você pode me chamar de Beth.
- Nome de rainha, Elizabéss...tem de ser respeitado. Esqueçamos minimizações. Você não gosta da minha pronúncia? Elizabésssss.
Ele tratou de exagerar a articulação da palavra, usando a língua bem entre os dentes. Com a performance, acabou aspergindo um pouco de saliva, atingindo levemente o rosto da moça que se sentindo um pouco mareada, voltou a perguntar.
- Isso é remédio. Haroldo?
- Não, Elizabéss. É Viagra.
Ela ficou atônita, em silêncio. Enquanto ele espiava o relógio mais uma vez. Beth voltou à carga.
- E você vai tomar este comprimido agora?
- Vou. Exatamente agora.
E engoliu o azulzinho com assustadora sofreguidão. Após verificar a hora mais uma vez, explicou.
- É o comprimido das 8, Elizabéss. Saiba que tomo Viagra de 8 em 8 horas.
Quando ela ouviu a resposta e observou aquele sorriso de Jack Nicholson nos seus piores momentos, murmurou com uma voz quase inaudível.
- Sério?
- Sério, Elizabéss. Assim estou sempre pronto pro que der e vier. Daí, de onde você agora está sentada, infelizmente, não pode admirar o magnífico resultado do meu tratamento.
Nesse momento ela começou a sentir uma vontadezinha de chorar. Ele continuou.
- E daí de onde você está sentada também não pode visualizar uma outra coisinha muito interessante... interessante de verdade, Elizabess. Pode acreditar.
Ela então indagou com um fiozinho de voz.
- É? E o que seria?
Depois de uma pequena pausa, Haroldo se inclinou sobre a mesa e, com uma careta sorridente, sussurrou:
- Eu depilo.
Beth sentiu o calafrio que lhe percorria os ossos.
- Depila?
- Depilo, Elizabéss. Depilo as partes. Depilo tudinho. Até o botão do alarme tá depilado, você acredita?
Nesse instante, Beth se engasgou e já ia começar a tossir, mas Haroldo inclinou-se mais ainda, quase encostando o rosto no rosto da mulher, que agora estava pálida e de olhos arregalados.
Em tom quase segredado o homem despejou lentamente.
- Elizabéss... Agora eu estava reparando...que olho lindo que você tem, um olho azul... grande. Sabe que tenho um sonho?...ter um olho assim, exatamente assim, como o seu, pra por no meu chaveiro... já pensou? Você não acha que ficaria joia?
Ao ouvir isto, Beth não pode evitar uma primeira lágrima, mas antes que caísse a segunda, deu um grito, levantou-se com escândalo e iniciou ensandecida carreira pelo restaurante, desafiando todas as leis dos saltos altos, e como uma garça desesperada que necessita urgentemente alçar voo, depois de quase fazer um strike de garçons, mergulhou pra dentro de um táxi em movimento.
Quinze minutos depois, Beth chegou em casa, fechou portas e janelas, encerrou a conta do Face, mudou de e-mail, pediu férias e foi passar 15 dias na casa da irmã Margareth. Quero dizer...Margaréss.
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quarta-feira, 30 de setembro de 2015
PESCADOR
Apesar de ser agosto, a noite era de clima seco. Fazia uma lua gigante e um frio fininho cortava Porto Alegre. Domênico, através da janelinha da guarita, viu ao longe os soldados cruzando o parque. Agora tinha isto. Soldados pela cidade inteira. Era a tal da revolução que todo mundo andava comentando. Domênico se espreguiçou e cruzou a portinhola da cabine apertada para poder esticar um pouco as pernas e dar uma olhada nos bichos. Pelo speaker o vigia ouviu o locutor da Guaíba anunciar que eram exatas duas da manhã e que na rua Caldas Júnior o termômetro batia nos 10 graus. Havia tanta lua que a Redenção parecia uma festa. Nem precisava lanterna. Domênico caminhou por entre a vegetação até o viveiro dos jacarés, que sempre lhe causavam assombro e talvez por isto fossem seus prediletos. Ficou ali por alguns instantes espreitando para ver se algum deles se movia, mas nada aconteceu, ainda mais com todo aquele frio. Os animais estavam uns por cima dos outros, petrificados, completamente imóveis. A imagem estática era apenas cortada pelo tênue filete de vapor que saia das ventas dos animais. Isto inspirou Domênico a tirar do bolso da japona um maço de Continental sem filtro. Enquanto batia o cigarro na palma da mão, pensou que os jacarés não deviam se importar muito com o frio, afinal eram animais gelados, mas talvez as araras estivessem sofrendo. É claro que em julho tinha sido bem pior, fez perto de zero e bateu chuva quase duas semanas seguidas, mas 10 graus ainda era uma temperatura bastante baixa, mesmo com tempo seco. No momento em que colocou o cigarro na boca, o vigia viu que um vulto se aproximava. A essa hora só podia ser Pedro. Era Pedro mesmo. O sorriso na boca não desmanchava nunca. Se aproximou e apertaram as mãos.
- Buenas, guarda Belo.
- Buenas que me espalho, pescador.
- Como estamos?
- Tudo na paz do Senhor. Vai uma carpa no capricho?
- Vai sim, Domênico. Vim buscar meu peixe.
Pedro se abaixou e de cócoras, olhando ao redor por sob a copa das árvores, perguntou.
- E a guarnição? Já passou?
- Passou mais cedo, mas tem dois soldados fazendo a ronda. Faz uns cinco minutos que vi eles trotando pros lados da Bonifácio, mas até darem a volta toda, vai levar mais uns vinte. Dá tempo de sobra.
Os dois homens tomaram a direção da guarita. Pedro sabia que o vigia tinha um café quente para lhe oferecer e Pedro precisava muito deste café. Estava exausto. Andava trabalhando doze horas diárias na obra e às duas da matina já deveria estar dormindo, pois acordava às 6, mas não tinha outro jeito.
Enquanto Domênico foi até a casinha, Pedro sentou num banco ao lado do laguinho e de dentro de uma sacola tirou um saco de aniagem. Seguido a isto, voltou a enfiar a mão na bolsa, desta vez com cuidado, como se dentro houvesse um animal venenoso, e trouxe do fundo um carretel de linha.
Domênico já estava sentando a seu lado com a térmica e os copos.
- Vai café, pescador?
- Só tô pensando nisso, mestre.
O vigia serviu um copo e o alcançou a Pedro.
- E teu guri, Pedro? Melhorou?
- Seu chefia... acho que vai se salvar. Anteontem levamos ele no Pronto Socorro e o médico do plantão disse que o pulmão tava tomado. Deu uma receita de remédio que tive que comprar naquela noite mesmo, se não ele ia ser levado pela febre. Acabei gastando tudo o que tinha, mas hoje, no fim da tarde já vi ele com um brilho mais vivo no olho. Zezé é forte, vai aguentar. Não vou deixar nenhum dos meus se irem, Domênico. É um batalhão, eu sei, mas vou aguentar o tranco. Os pais da Sandra tão lá em casa também, e como tu já sabe, só eu trabalhando. Às vezes quase me desespero, mas passa. Vai passar sim. E meu guri vai ficar bom. Com remédio certo e carne de peixe.
Domênico serviu café para si e ofereceu um cigarro a Pedro que não aceitou.
- Gracias, velho. Quem não tem dinheiro não tem vício. Só o café já tá mais do que bom.
Os dois tinham se conhecido nos canteiros de obra, e apesar da diferença de idade, começaram uma amizade que já durava bem uns dez anos. Talvez tenha sido um grenal, no qual se encontraram ocasionalmente, que os tenha aproximado em definitivo, quando acabaram tentando curar suas cabeças inchadas com duas garrafas de cachaça da pior espécie. O Inter tinha tomado 4 do rival e aquela goleada doeu fundo. Tempos depois, Domênico teve de largar o canteiro por conta de um problema na vértebra. Carregou um bilhão de tijolos até o dia em que as costas estalaram. Passou um mês paralisado na cama e por fim conseguiu uma aposentadoria por invalidez. Teve sorte também, pois o patrão da mulher trabalhava no município e logo conseguiu coloca-lo no parque como vigia à noite e assim seu ganho ficava um pouco melhor. Andava pelos 50. Era um mulato delgado e alto que sempre era obrigado a satisfazer a curiosidade dos colegas quanto a este nome esquisito que levava. Dizia que sua mãe havia lido numa revista e tinha achado bonito. Isto não era verdade. A mãe de Domênico era camareira do Plaza e acabou se deixando levar pelos encantos de um nobre Veneziano que havia descido no porto. Assim como veio, o italiano se foi sem deixar vestígio, deixando a moça apaixonada e grávida. A mulher foi vista muitas vezes pelo cais do porto, depois do expediente, perguntando se alguém sabia se havia embarcado um Duque ou Conde chamado Domênico, mas não havia nem sinal. A expressão "ficou a ver navios" se revela triste, quando entendemos que certamente provém dos tantos corações machucados, corações partidos por viajantes que se foram.
Já Pedro tem todas as mesclas. Se trata de um pelo duro legítimo, baixo e atarracado, amulatado de olhos verdes, descendente dos primeiros portugueses que aportaram por estas terras e que foram se misturando com índios, negros e espanhóis. Nasceu no litoral, filho de pescadores de Tramandaí. Seu pai tinha barco e tudo, mas o rapaz com 20 anos resolveu ir para a capital em busca de outras oportunidades. Acabou se enrabichando com uma guria do Partenon e logo vieram os filhos e assim, a vida foi rapidamente se tornando difícil e com tantas bocas para alimentar, o remédio foi aprender o ofício de pedreiro.
- Domênico, por que é que de uns dias pra cá tem esta soldadama por toda a cidade?
- Revolução, pescador. Não ouviu falar?
- Na firma eles andam comentando, mas nem presto atenção. É um tipo de guerra que nos metemos?
- Dizem que é uma guerra contra os comunistas.
- E quem são os comunistas?
- Não sei. Nunca vi um. Mas boa coisa é que não é. Cadê o pão?
- Taqui.
Pedro levantou, tirou do bolso um pequeno toco de pão e voltou a sentar. Manuseou o carretel de linha até liberar o anzol. Mostrou a Domênico.
- Olha só. Troquei por outro um pouco maior. Estes peixes andam muito graúdos.
O vigia viu o reflexo da lua cintilando no anzol dourado. Falou em tom grave.
- Vai logo, antes que eles voltem.
Pedro arrancou um pequeno pedaço do miolo do pão, amassou-o até tornar-se uma esfera quase perfeita e colocou-o no anzol. Num gesto hábil jogou a linha na água, ali pertinho, coisa de dois metros, e nem 5 segundos se passaram, já sentiu o puxão brutal. Estava fisgado.
- Olha só, guarda Belo, como ela puxa. Ela é valente. É uma carpa grandona.
Domênico, às vezes pedia para segurar a linha e sentir o peixe lutando, gostava da sensação, mas esta noite tinha muita luz no parque e podiam ser vistos de longe. Queria que Pedro terminasse logo com aquilo. Se fossem pegos, perderia o emprego na certa.
- Tira esse bicho logo de uma vez, Pedro.
Pedro acatou o pedido do amigo e trouxe o peixe para a superfície. Era uma carpa amarelada e imensa. Ficou se debatendo e roncando na grama do canteiro.
- Que baita peixe, pescador! Este deve ser o maior que tu já pegou. Olha o tamanho dessa cabeça.
- É sim. É linda ela. Deve ter uns 6 ou 7 quilos. Foi bom eu ter trazido o saco grande, senão ia ficar o rabo de fora.
Sem perda de tempo Pedro colocou o animal e a linha dentro do saco e limpou as mãos apressadamente no capim gelado. Secou o resto nas calças mesmo.
- Bueno, Guarda Belo. Me vou antes que os soldados voltem.
- Acho bom. Tenho a impressão que ouvi trote pros lados da Osvaldo.
Os dois fizeram silêncio e Pedro inclinou a cabeça para quem sabe escutar o som dos cascos.
-É sim. Acho que eles já tão voltando. Domênico. Domingo destes vou te convidar pra comer um peixe lá em casa. É só o Zezé arribar. Combinado?
- Combinado, pescador. Agora vai. Não perde tempo.
Pedro se esgueirou por entre a copa das árvores e rapidamente chegou até a João Pessoa. Não queria caminhar de jeito nenhum pelo interior do parque, pois podia ser revistado, então na avenida se sentiu mais aliviado. Teria pela frente um bom bocado ainda. Pegar a Ipiranga, andar um bom trajeto até chegar no Menino Deus. Depois tinha de subir toda a Silveiro até o morro de Santa Tereza, mas não havia o que lamentar, pois tinha o seu peixe bem guardado e num passo acelerado levaria menos de uma hora para chegar em casa. Por sorte a noite apesar de fria estava seca e Pedro foi espiando as estrelas e assoviando baixinho uma do Teixeirinha pra ver se afastava um pouco os maus pensamentos. A caminhada seguia serena e tudo parecia tranquilo até à esquina da Venâncio, mas são coisas que acontecem nessa vida, o cenário, algumas vezes, muda bruscamente, a paisagem se torna irreconhecível e foi exatamente isto que Pedro sentiu quando ouviu o forte ruído do motor e ao voltar-se, se deparou com o camburão vindo em alta velocidade pela contramão e foi aí que sentiu o gelo percorrendo a espinha, pois teve a certeza de que era com ele a confusão, mas o veículo passou rente e 50 metros adiante abordou 3 homens que saíram sabe-se lá de onde e cruzavam a via. Pedro atravessou a avenida em direção à calçada oposta com o coração pulando nas têmporas. Não quis mudar de direção para não parecer suspeito mas também quis evitar passar tão perto dos oficiais que agora gritavam nervosamente para que os homens se deitassem no solo e Pedro, sem parar de caminhar, arriscou olhar praquilo e viu que eram rapazes franzinos que não teriam mais de 20 anos, certamente estes pirralhos não seriam os comunistas, e quando viu um dos soldados batendo com a coronha do fuzil na cabeça de um deles experimentou um sentimento raro de medo misturado com raiva latejando no peito e isso o fez acelerar a marcha em direção à Azenha mas só começou a correr quando ouviu aquele estampido tão forte, o ruído do aço contra o aço, tão feio, sem dúvida era tiro, mas será que atiraram neles? ou tentaram fugir quem sabe? mas por que atirar assim em alguém? são uns meninos, uns fedelhos, o que teriam feito de tão grave? e Pedro com seu valioso peixe que ainda se debatia debaixo do braço só parou de correr quando cruzou a Ipiranga e então, sem ar e sem forças, se apoiou na mureta da ponte pra botar as tripas pra fora nas águas do riacho, que desespero, que sensação horrorosa esta, ter a morte assim tão perto, que sentimento tão doído de desamparo, uma pena tão grande daqueles três, podia ter sido qualquer um, podia ter sido ele, e por que não? a não voltar mais para casa, a não ver nunca mais seus filhos, podia ter sido ele, por algum engano qualquer, agora podia estar deitado no frio do asfalto sobre um poça de sangue, podia ter sido...
Foi Zezé mesmo quem usou os braços fortes e tatuados para tirar a grande mala do bagageiro do ônibus e depois de estancar por alguns segundos em frente a um ponto de táxi resolveu que faria o trajeto a pé mesmo. Foi então puxando cuidadosamente a mala vermelha pelas calçadas irregulares de Tramandaí, nas quais não pisava havia mais de 5 anos, 5 anos de ausência que pareciam 10, embarcado na sua maior parte do tempo, vivendo uma dura e diária tentativa de frustrar a caça das baleeiras nos gélidos mares japoneses, mas agora estava no seu chão, do outro lado do mundo onde fazia uma manhã luminosa de dezembro com pouco vento, apesar de ser ainda primavera, então Zezé foi respirando aqueles ares de nostalgia, tentando controlar a ansiedade de chegar logo de uma vez e ver sua gente. Não o estavam esperando, pois não havia dito que chegaria. Seria quase uma surpresa. Depois de cruzar a Flores da Cunha, Zezé entrou com o coração apertado na Riachuelo e já da esquina pode ver a casa, bonita que lhe pareceu, pintadinha e bem conservada e ali na varanda, sentado com chimarrão na mão, o velho Pedro, seu pai, parecia sorrir sem razão, como sempre, e esta visão fez Zezé voltar 40 anos até aquela madrugada em que a febre amainou e a fome lhe fez acordar e sair da cama e ao chegar na modesta cozinha viu seu pai ali de pé, na penumbra, com os olhos molhados de quem chora, que gozado, pai ri, pai nunca chora...
- Volta pra cama Zezé. Tá frio.
Nisso a atenção do menino foi atraída pelos estertores da carpa dentro da pia. Se aproximou com olhos arregalados.
- Bah pai, que peixão! Qual é a marca?
- Não é marca, Zezé. É raça que se diz.
- Qual é a raça?
- É carpa.
- Ela vai morrer?
- Vai.
- Quando?
- Vai dormir, Zezé.
- Ela precisa morrer?
- Vai pra cama.
- Pai, tô com fome.
- Vai pra cama filho. Vou te fazer um pão com manteiga. Te levo lá.
Zezé afastou estas tão claras lembranças para pular o portãozinho como fazia quando era adolescente e viu como marejavam os olhos do velho antes do abraço forte. Olharam-se em silêncio, para quem sabe descobrir as marcas que o tempo havia feito.
- Como estão as coisas, pescador?
- Na santa paz, Zezé. Que coisa esta. Faz muito que ninguém me chama pescador.
Pedro passou a mão no rosto barbado do filho. Acarinhando a saudade, brincou.
- Meu filho comunista se vai por este mundo afora e demora, demora tanto a voltar.
Zezé abriu um sorriso largo.
- Não é comunista, pai. É ativista. E a mãe?
- Foi na feira. Não demora a chegar. Mas, entra, vamos tomar uma purinha pra comemorar.
Zezé entrou na casa de cheiros tão familiares. Quase nada havia mudado com exceção da pintura nova. Sentou-se na cozinha, enquanto o velho abria armários e escolhia copos.
Pedro foi servindo os copos com a azulzinha de Santo Antônio e indagando.
- Mas Zezé, tu deve tá com fome. Queres comer alguma coisa?
Pela janela, o filho pode ver as andorinhas pousadas nos fios de luz. Isto era prenúncio de chuva. Não tinha erro. Zezé tinha aprendido isso com o velho, como tantas e tantas outras coisas importantes e este pensamento fez com que sentisse uma paz imensa acariciando o peito. Uma paz que, talvez até aquele dia, nunca tinha sentido. Sem tirar os olhos dos pássaros, aquele homem forte, tisnado pelo sol de tantos oceanos, respondeu ao velho quase num engasgo.
- Tô com fome sim, pai. Tem pão com manteiga?
- Buenas, guarda Belo.
- Buenas que me espalho, pescador.
- Como estamos?
- Tudo na paz do Senhor. Vai uma carpa no capricho?
- Vai sim, Domênico. Vim buscar meu peixe.
Pedro se abaixou e de cócoras, olhando ao redor por sob a copa das árvores, perguntou.
- E a guarnição? Já passou?
- Passou mais cedo, mas tem dois soldados fazendo a ronda. Faz uns cinco minutos que vi eles trotando pros lados da Bonifácio, mas até darem a volta toda, vai levar mais uns vinte. Dá tempo de sobra.
Os dois homens tomaram a direção da guarita. Pedro sabia que o vigia tinha um café quente para lhe oferecer e Pedro precisava muito deste café. Estava exausto. Andava trabalhando doze horas diárias na obra e às duas da matina já deveria estar dormindo, pois acordava às 6, mas não tinha outro jeito.
Enquanto Domênico foi até a casinha, Pedro sentou num banco ao lado do laguinho e de dentro de uma sacola tirou um saco de aniagem. Seguido a isto, voltou a enfiar a mão na bolsa, desta vez com cuidado, como se dentro houvesse um animal venenoso, e trouxe do fundo um carretel de linha.
Domênico já estava sentando a seu lado com a térmica e os copos.
- Vai café, pescador?
- Só tô pensando nisso, mestre.
O vigia serviu um copo e o alcançou a Pedro.
- E teu guri, Pedro? Melhorou?
- Seu chefia... acho que vai se salvar. Anteontem levamos ele no Pronto Socorro e o médico do plantão disse que o pulmão tava tomado. Deu uma receita de remédio que tive que comprar naquela noite mesmo, se não ele ia ser levado pela febre. Acabei gastando tudo o que tinha, mas hoje, no fim da tarde já vi ele com um brilho mais vivo no olho. Zezé é forte, vai aguentar. Não vou deixar nenhum dos meus se irem, Domênico. É um batalhão, eu sei, mas vou aguentar o tranco. Os pais da Sandra tão lá em casa também, e como tu já sabe, só eu trabalhando. Às vezes quase me desespero, mas passa. Vai passar sim. E meu guri vai ficar bom. Com remédio certo e carne de peixe.
Domênico serviu café para si e ofereceu um cigarro a Pedro que não aceitou.
- Gracias, velho. Quem não tem dinheiro não tem vício. Só o café já tá mais do que bom.
Os dois tinham se conhecido nos canteiros de obra, e apesar da diferença de idade, começaram uma amizade que já durava bem uns dez anos. Talvez tenha sido um grenal, no qual se encontraram ocasionalmente, que os tenha aproximado em definitivo, quando acabaram tentando curar suas cabeças inchadas com duas garrafas de cachaça da pior espécie. O Inter tinha tomado 4 do rival e aquela goleada doeu fundo. Tempos depois, Domênico teve de largar o canteiro por conta de um problema na vértebra. Carregou um bilhão de tijolos até o dia em que as costas estalaram. Passou um mês paralisado na cama e por fim conseguiu uma aposentadoria por invalidez. Teve sorte também, pois o patrão da mulher trabalhava no município e logo conseguiu coloca-lo no parque como vigia à noite e assim seu ganho ficava um pouco melhor. Andava pelos 50. Era um mulato delgado e alto que sempre era obrigado a satisfazer a curiosidade dos colegas quanto a este nome esquisito que levava. Dizia que sua mãe havia lido numa revista e tinha achado bonito. Isto não era verdade. A mãe de Domênico era camareira do Plaza e acabou se deixando levar pelos encantos de um nobre Veneziano que havia descido no porto. Assim como veio, o italiano se foi sem deixar vestígio, deixando a moça apaixonada e grávida. A mulher foi vista muitas vezes pelo cais do porto, depois do expediente, perguntando se alguém sabia se havia embarcado um Duque ou Conde chamado Domênico, mas não havia nem sinal. A expressão "ficou a ver navios" se revela triste, quando entendemos que certamente provém dos tantos corações machucados, corações partidos por viajantes que se foram.
Já Pedro tem todas as mesclas. Se trata de um pelo duro legítimo, baixo e atarracado, amulatado de olhos verdes, descendente dos primeiros portugueses que aportaram por estas terras e que foram se misturando com índios, negros e espanhóis. Nasceu no litoral, filho de pescadores de Tramandaí. Seu pai tinha barco e tudo, mas o rapaz com 20 anos resolveu ir para a capital em busca de outras oportunidades. Acabou se enrabichando com uma guria do Partenon e logo vieram os filhos e assim, a vida foi rapidamente se tornando difícil e com tantas bocas para alimentar, o remédio foi aprender o ofício de pedreiro.
- Domênico, por que é que de uns dias pra cá tem esta soldadama por toda a cidade?
- Revolução, pescador. Não ouviu falar?
- Na firma eles andam comentando, mas nem presto atenção. É um tipo de guerra que nos metemos?
- Dizem que é uma guerra contra os comunistas.
- E quem são os comunistas?
- Não sei. Nunca vi um. Mas boa coisa é que não é. Cadê o pão?
- Taqui.
Pedro levantou, tirou do bolso um pequeno toco de pão e voltou a sentar. Manuseou o carretel de linha até liberar o anzol. Mostrou a Domênico.
- Olha só. Troquei por outro um pouco maior. Estes peixes andam muito graúdos.
O vigia viu o reflexo da lua cintilando no anzol dourado. Falou em tom grave.
- Vai logo, antes que eles voltem.
Pedro arrancou um pequeno pedaço do miolo do pão, amassou-o até tornar-se uma esfera quase perfeita e colocou-o no anzol. Num gesto hábil jogou a linha na água, ali pertinho, coisa de dois metros, e nem 5 segundos se passaram, já sentiu o puxão brutal. Estava fisgado.
- Olha só, guarda Belo, como ela puxa. Ela é valente. É uma carpa grandona.
Domênico, às vezes pedia para segurar a linha e sentir o peixe lutando, gostava da sensação, mas esta noite tinha muita luz no parque e podiam ser vistos de longe. Queria que Pedro terminasse logo com aquilo. Se fossem pegos, perderia o emprego na certa.
- Tira esse bicho logo de uma vez, Pedro.
Pedro acatou o pedido do amigo e trouxe o peixe para a superfície. Era uma carpa amarelada e imensa. Ficou se debatendo e roncando na grama do canteiro.
- Que baita peixe, pescador! Este deve ser o maior que tu já pegou. Olha o tamanho dessa cabeça.
- É sim. É linda ela. Deve ter uns 6 ou 7 quilos. Foi bom eu ter trazido o saco grande, senão ia ficar o rabo de fora.
Sem perda de tempo Pedro colocou o animal e a linha dentro do saco e limpou as mãos apressadamente no capim gelado. Secou o resto nas calças mesmo.
- Bueno, Guarda Belo. Me vou antes que os soldados voltem.
- Acho bom. Tenho a impressão que ouvi trote pros lados da Osvaldo.
Os dois fizeram silêncio e Pedro inclinou a cabeça para quem sabe escutar o som dos cascos.
-É sim. Acho que eles já tão voltando. Domênico. Domingo destes vou te convidar pra comer um peixe lá em casa. É só o Zezé arribar. Combinado?
- Combinado, pescador. Agora vai. Não perde tempo.
Pedro se esgueirou por entre a copa das árvores e rapidamente chegou até a João Pessoa. Não queria caminhar de jeito nenhum pelo interior do parque, pois podia ser revistado, então na avenida se sentiu mais aliviado. Teria pela frente um bom bocado ainda. Pegar a Ipiranga, andar um bom trajeto até chegar no Menino Deus. Depois tinha de subir toda a Silveiro até o morro de Santa Tereza, mas não havia o que lamentar, pois tinha o seu peixe bem guardado e num passo acelerado levaria menos de uma hora para chegar em casa. Por sorte a noite apesar de fria estava seca e Pedro foi espiando as estrelas e assoviando baixinho uma do Teixeirinha pra ver se afastava um pouco os maus pensamentos. A caminhada seguia serena e tudo parecia tranquilo até à esquina da Venâncio, mas são coisas que acontecem nessa vida, o cenário, algumas vezes, muda bruscamente, a paisagem se torna irreconhecível e foi exatamente isto que Pedro sentiu quando ouviu o forte ruído do motor e ao voltar-se, se deparou com o camburão vindo em alta velocidade pela contramão e foi aí que sentiu o gelo percorrendo a espinha, pois teve a certeza de que era com ele a confusão, mas o veículo passou rente e 50 metros adiante abordou 3 homens que saíram sabe-se lá de onde e cruzavam a via. Pedro atravessou a avenida em direção à calçada oposta com o coração pulando nas têmporas. Não quis mudar de direção para não parecer suspeito mas também quis evitar passar tão perto dos oficiais que agora gritavam nervosamente para que os homens se deitassem no solo e Pedro, sem parar de caminhar, arriscou olhar praquilo e viu que eram rapazes franzinos que não teriam mais de 20 anos, certamente estes pirralhos não seriam os comunistas, e quando viu um dos soldados batendo com a coronha do fuzil na cabeça de um deles experimentou um sentimento raro de medo misturado com raiva latejando no peito e isso o fez acelerar a marcha em direção à Azenha mas só começou a correr quando ouviu aquele estampido tão forte, o ruído do aço contra o aço, tão feio, sem dúvida era tiro, mas será que atiraram neles? ou tentaram fugir quem sabe? mas por que atirar assim em alguém? são uns meninos, uns fedelhos, o que teriam feito de tão grave? e Pedro com seu valioso peixe que ainda se debatia debaixo do braço só parou de correr quando cruzou a Ipiranga e então, sem ar e sem forças, se apoiou na mureta da ponte pra botar as tripas pra fora nas águas do riacho, que desespero, que sensação horrorosa esta, ter a morte assim tão perto, que sentimento tão doído de desamparo, uma pena tão grande daqueles três, podia ter sido qualquer um, podia ter sido ele, e por que não? a não voltar mais para casa, a não ver nunca mais seus filhos, podia ter sido ele, por algum engano qualquer, agora podia estar deitado no frio do asfalto sobre um poça de sangue, podia ter sido...
Foi Zezé mesmo quem usou os braços fortes e tatuados para tirar a grande mala do bagageiro do ônibus e depois de estancar por alguns segundos em frente a um ponto de táxi resolveu que faria o trajeto a pé mesmo. Foi então puxando cuidadosamente a mala vermelha pelas calçadas irregulares de Tramandaí, nas quais não pisava havia mais de 5 anos, 5 anos de ausência que pareciam 10, embarcado na sua maior parte do tempo, vivendo uma dura e diária tentativa de frustrar a caça das baleeiras nos gélidos mares japoneses, mas agora estava no seu chão, do outro lado do mundo onde fazia uma manhã luminosa de dezembro com pouco vento, apesar de ser ainda primavera, então Zezé foi respirando aqueles ares de nostalgia, tentando controlar a ansiedade de chegar logo de uma vez e ver sua gente. Não o estavam esperando, pois não havia dito que chegaria. Seria quase uma surpresa. Depois de cruzar a Flores da Cunha, Zezé entrou com o coração apertado na Riachuelo e já da esquina pode ver a casa, bonita que lhe pareceu, pintadinha e bem conservada e ali na varanda, sentado com chimarrão na mão, o velho Pedro, seu pai, parecia sorrir sem razão, como sempre, e esta visão fez Zezé voltar 40 anos até aquela madrugada em que a febre amainou e a fome lhe fez acordar e sair da cama e ao chegar na modesta cozinha viu seu pai ali de pé, na penumbra, com os olhos molhados de quem chora, que gozado, pai ri, pai nunca chora...
- Volta pra cama Zezé. Tá frio.
Nisso a atenção do menino foi atraída pelos estertores da carpa dentro da pia. Se aproximou com olhos arregalados.
- Bah pai, que peixão! Qual é a marca?
- Não é marca, Zezé. É raça que se diz.
- Qual é a raça?
- É carpa.
- Ela vai morrer?
- Vai.
- Quando?
- Vai dormir, Zezé.
- Ela precisa morrer?
- Vai pra cama.
- Pai, tô com fome.
- Vai pra cama filho. Vou te fazer um pão com manteiga. Te levo lá.
Zezé afastou estas tão claras lembranças para pular o portãozinho como fazia quando era adolescente e viu como marejavam os olhos do velho antes do abraço forte. Olharam-se em silêncio, para quem sabe descobrir as marcas que o tempo havia feito.
- Como estão as coisas, pescador?
- Na santa paz, Zezé. Que coisa esta. Faz muito que ninguém me chama pescador.
Pedro passou a mão no rosto barbado do filho. Acarinhando a saudade, brincou.
- Meu filho comunista se vai por este mundo afora e demora, demora tanto a voltar.
Zezé abriu um sorriso largo.
- Não é comunista, pai. É ativista. E a mãe?
- Foi na feira. Não demora a chegar. Mas, entra, vamos tomar uma purinha pra comemorar.
Zezé entrou na casa de cheiros tão familiares. Quase nada havia mudado com exceção da pintura nova. Sentou-se na cozinha, enquanto o velho abria armários e escolhia copos.
Pedro foi servindo os copos com a azulzinha de Santo Antônio e indagando.
- Mas Zezé, tu deve tá com fome. Queres comer alguma coisa?
Pela janela, o filho pode ver as andorinhas pousadas nos fios de luz. Isto era prenúncio de chuva. Não tinha erro. Zezé tinha aprendido isso com o velho, como tantas e tantas outras coisas importantes e este pensamento fez com que sentisse uma paz imensa acariciando o peito. Uma paz que, talvez até aquele dia, nunca tinha sentido. Sem tirar os olhos dos pássaros, aquele homem forte, tisnado pelo sol de tantos oceanos, respondeu ao velho quase num engasgo.
- Tô com fome sim, pai. Tem pão com manteiga?
domingo, 27 de setembro de 2015
MAIS UM TIQUINHO DE Nietzsche. Bolsonaro de lambuja.
Comentei com vocês que minha burrice e eu estávamos tentando ler "E ASSIM FALOU ZARATUSTRA" do gauchão Nietzsche? Comentei, né?
Devo ter comentado também que há um prólogo que revela sobre qual assunto o livro versa. Não fosse isto, confesso com amargor, estaríamos ainda mais perdidos. Pelo que saquei, Zaratustra prega que o homem pode vir a se tornar um super-homem, mas para isto ele tem de dizer não à religião e a qualquer tipo de deus.
A frase consagrada do livro:
DEUS ESTÁ MORTO
Mudando de assunto mas continuando no mesmo.
Comentei também que de vez em quando vou na página do Bolsonaro dar uma incerta e deletar "amigos" que curtem a página?
Atenção!
Se você for fazer isto, é preciso cuidado neste momento. Tem alguns petralhas maníacos que estão ali pra dizer desaforos ao perverso homem. A estes deixo quietos.
Mas você vai encontrar também pessoas que curtem de verdade aquele idiota.
E a grande ironia!
Se você entrar no perfil desta gente, vai ver que são pessoas simples e vai encontrar muitas citações a Jesus Cristo e Deus Nosso Senhor. São as pessoas de "bem" que curtem beatismos, preconceito e, surpreendentemente, tortura. Tudo junto ao mesmo tempo reunido. Bolsonaro, entre outras graves infâmias, apoia a tortura.
Claro que alguém vai dizer que estas pessoas nada sabem. E é exatamente isso. As pessoas nada sabem e não querem saber. A ignorância é um ótimo álibi pra se ser malvado. A ignorância tá pertíssimo do mal.
Os países mataram e continuam matando em nome de Deus. Mentira, é claro. Deus neste caso é um maravilhoso álibi pra matar por dinheiro. E a palavra liberdade está sempre coladinha à palavra Deus.
Desconfio, cada vez mais, que este livro de Nietzsche resume a grande tragédia humana a apenas uma palavra; Deus.
terça-feira, 22 de setembro de 2015
O NOME E O EGO
Era um livro sobre bossa nova e contava sobre a célebre gravação de Águas de Março. Elis falou pro Tom que levaria seu pianista aos EUA e diz que o Tom ficou bravo e não queria, mas a cantora fincou pé e o Mariano acabou indo.
Tom cantou e tocou flauta no vídeo onde Elis e ele, os dois de pé, frente a frente, interpretam a linda canção de forma divertida, o que certamente ajudou a celebrizar o clip. Ficou aquela coisa du carai. Leve e antológica. Nessa parte do livro, diz também que o Tom, que tinha mania de mudar o nome das pessoas, chamava a cantora de Élis, acentuando na primeira sílaba e chamava o pianista de Camargo, diferentemente de todo o resto das pessoas que usava Cesar ou Mariano.
Coisa parecida fazia o Brizola no programa do Jô Soares. O político pronunciava o nome do apresentador com "o" aberto.
- Mas viu, Jó?...
Falava desta forma e fazia uma pausa, com um sorriso matreiro nos lábios e o olhar vivo faiscava, como que dizendo...aqui eu sou o patrão, aqui eu sou o pai eu dou o nome como me aprouver. No caso do Jobim também. Era uma forma sutil de ter um certo poder sobre as pessoas. Parece uma coisa mínima mas acho que tem o seu peso. Fica ali, no subtexto, subliminar. Tô chutando?
Dia destes uma pessoa próxima, numa conversa, lamentou o fato de que possuía o acentuado hábito de apelidar seus amigos na infância. Me comentou que achava que com isto, tinha plantado o rancor no coração da galera. E é verdade mesmo. Ele apelidava todo mundo. Acho que era uma tentativa de liderança sobre o bando. Apelidar é nomear, ou nominar. Apelidar é batizar e quem batiza é o padre, ou o pai, então penso que apelidar é uma forma de tentar desqualificar, ou enfraquecer, o indivíduo no grupo. Eu apelidei algumas vezes. Também fui perverso. Já faz muito tempo que não faço isso. Acho que foi desde que descobri que as pessoas gostam de ter seu nome pronunciado no meio da frase que se fala. Notei que o olho da pessoa brilha quando isto acontece. Me parece nobre fazer isto. Colocar o nome do interlocutor no meio da sentença.
Saindo do assunto, mas continuando no mesmo, Osho e a filosofia Zen consideram isto tudo uma grande bobagem. Pra eles, o nome e o ego são a mesma coisa, e acreditam ser de vital importância matar o ego. Já li textos bem interessantes sobre isto. Quando você consegue eliminar o ego, e descobre o que eles chamam de real centro, você fica imune à qualquer ofensa, assim como deixa de ser sensível aos elogios. E como necessitamos de elogios. Não é?
Nestes tempos de rede social, os egos nunca estiveram tão borbulhantes e inflamados, afinal a rede, de uma certa forma, nos torna a todos protagonistas. Talvez por isto haja tanta convulsão por micro motivos. Talvez por isto haja tanto ódio escorrendo. O ego. Construído sobre frágeis alicerces. Se melindra por qualquer coisinha. Será que é isso?
Coisa parecida fazia o Brizola no programa do Jô Soares. O político pronunciava o nome do apresentador com "o" aberto.
- Mas viu, Jó?...
Falava desta forma e fazia uma pausa, com um sorriso matreiro nos lábios e o olhar vivo faiscava, como que dizendo...aqui eu sou o patrão, aqui eu sou o pai eu dou o nome como me aprouver. No caso do Jobim também. Era uma forma sutil de ter um certo poder sobre as pessoas. Parece uma coisa mínima mas acho que tem o seu peso. Fica ali, no subtexto, subliminar. Tô chutando?
Dia destes uma pessoa próxima, numa conversa, lamentou o fato de que possuía o acentuado hábito de apelidar seus amigos na infância. Me comentou que achava que com isto, tinha plantado o rancor no coração da galera. E é verdade mesmo. Ele apelidava todo mundo. Acho que era uma tentativa de liderança sobre o bando. Apelidar é nomear, ou nominar. Apelidar é batizar e quem batiza é o padre, ou o pai, então penso que apelidar é uma forma de tentar desqualificar, ou enfraquecer, o indivíduo no grupo. Eu apelidei algumas vezes. Também fui perverso. Já faz muito tempo que não faço isso. Acho que foi desde que descobri que as pessoas gostam de ter seu nome pronunciado no meio da frase que se fala. Notei que o olho da pessoa brilha quando isto acontece. Me parece nobre fazer isto. Colocar o nome do interlocutor no meio da sentença.
Saindo do assunto, mas continuando no mesmo, Osho e a filosofia Zen consideram isto tudo uma grande bobagem. Pra eles, o nome e o ego são a mesma coisa, e acreditam ser de vital importância matar o ego. Já li textos bem interessantes sobre isto. Quando você consegue eliminar o ego, e descobre o que eles chamam de real centro, você fica imune à qualquer ofensa, assim como deixa de ser sensível aos elogios. E como necessitamos de elogios. Não é?
Nestes tempos de rede social, os egos nunca estiveram tão borbulhantes e inflamados, afinal a rede, de uma certa forma, nos torna a todos protagonistas. Talvez por isto haja tanta convulsão por micro motivos. Talvez por isto haja tanto ódio escorrendo. O ego. Construído sobre frágeis alicerces. Se melindra por qualquer coisinha. Será que é isso?
setembro - 15 - pOa
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
PINTURA
Sou pintor. Pintor de telas. Ou quadros, como se fala mais popularmente. Utilizo óleo e apenas óleo. As outras tintas jamais me interessaram. Minha pincelada é exatamente Toulouse ou Modigliani, e quando quero também sou Picasso. Saiba você que deixei de tentar criar qualquer coisa, e isto faz muito tempo. Não tenho vergonha nenhuma de revelar que num determinado momento de minha vida resolvi me dedicar por inteiro e até meu último dia à cópia. O resumo de minha passagem pelo planeta se tornou uma busca incessante pela cópia exata. A cópia absoluta, como gosto de dizer até hoje. Em frente ao cavalete podia ficar muitas horas copiando e recopiando incansavelmente Rembrandts, Cezanes e Monets. Isso tudo principiou no século passado, quando perambulei pelo velho mundo, quase morando nos museus e foi nos museus que estudei a técnica pictórica até as últimas consequências. Copistas espanhóis e franceses acompanhavam de perto, com curiosidade e estupor, a exatidão da cor e do traço de meu trabalho. Quando voltei ao Brasil, trouxe minhas melhores réplicas de muitas das mais famosas telas da história da humanidade e é em cima delas que ganho a vida. Tenho sorte de, apesar da idade avançada, não necessitar de óculos e ainda saber com justa precisão a quantidade de luz a ser empregada nas obras que sempre consigo vender por um bom preço. Mas não pense que esta foi uma jornada fácil e rápida. Levei 60 anos para assassinar meu ego de vez e me tornar o que sou agora sem sentir pontadas na alma. Sou um pintor copista. Simples assim. Eu copio. E também me custou 60 anos descobrir que este novo "eu" precisava viver só. E assim estava sendo. Cheguei a um ponto de harmonia tal, que sentia intenso prazer no simples ato de refletir. Quando me cansava desse pensar ou de tanto pintar, sempre acabava sendo levado até a areia da praia e foi em frente ao mar que fui descobrindo uma maneira de paralisar pensamentos. Acho importante lhe dizer que isto é de extrema valia. Numa destas caminhadas comecei a achar que Juarez Matos tem uma sonoridade por demais estranha a tal ponto de perder por completo seu sentido, e lembro que isso aconteceu no exato momento em que o sol desaparecia por trás dos Dois Irmãos. Sim. Você pode me chamar desta forma, se quiser: Juarez. Está escrito numa carteira de plástico que sou Juarez Matos e este nome está junto à fotografia de meu rosto. Dia destes pintei minha carteira de identidade detalhadamente, frente e verso, numa tela de mais de 3 metros de altura e a coloquei na sala de minha casa, na Gávea. Talvez tenha feito isto com medo de perder os fios de conexão. Quando não se tem com quem falar ou quando não se ouve o som da própria voz por largo tempo, pode haver o perigo de você perder contato com a torre. Então, toda manhã, quando desperto, tomo a direção da sala e paro em frente à tela. Ali está minha foto. Ali está meu nome. E assim não me sinto tão perdido. Sim, eu moro na Gávea. Moro muito bem, não duvide disto. Dia destes vendi um Gauguin por quase 10 mil doletas. Verdade. Os abastados cariocas pagam e ficam felizes. Então minha vida é tranquila, pode acreditar. Quero dizer...era tranquila até aquele dia de São Sebastião, como lhe conto a seguir. Naquele feriado que se iniciava, naquele fim de tarde de sexta feira, o Rio de Janeiro já estava melancolicamente vazio. Apesar da noite já estar se apresentando, o calor ainda batia nos 40. Tinha tomado meu terceiro banho naquele dia e estava no Jobi, bebendo, absolutamente sem brisa, sem vontade de nada e sem ninguém para trocar qualquer palavra, quando vi aquela mulher tropeçando pela calçada, vindo na direção de minha mesa. Estancou frente a mim com olhar fixo. Não a conhecia, ou não lembrava. Pensei que poderia ser até uma cliente, mas não. Tinha os olhos vermelhos e inchados. As lágrimas corriam. Teria 30 anos, no máximo. Pulseiras, correntes e anéis. Burguesia etílica. Conheço um pouco este estilo. Então a moça revelou sua bêbada e chorosa voz, num tom de sentença inapelável.
- Vou dar pra você.
Fiquei sem ter o que dizer a ela que continuou.
- Meu marido tá com outra...descobri hoje. Filho da puta.
E desabou num choro convulsivo. Os garçons se aproximaram para quem sabe me livrar da doida, mas algo me fez querer que ela não se fosse e depois de um gesto vago em direção a eles para que não fizessem caso, convidei-a para sentar e lhe ofereci algo para beber.
- Descobri hoje de tarde. Como é que ele pôde? Com a Tânia?
Logo com ela, meu Deus? Mas não vai ficar assim. Acabei de dizer pra ele que iria trepar com o primeiro que encontrasse ... e você foi o primeiro. Então é você.
Continuei em silêncio, sem saber o que fazer. Ela exalava álcool e cigarro por todos os poros, estava num estado mental deplorável, mas eu podia notar que era uma mulher estupenda em suas formas e a cabeleira longa e densa foi o que mais me encantou, a forma daquele cabelo grosso, castanho, suave. Tive vontade de enfiar meus dedos naquelas fartas madeixas mas não havia bebido o suficiente para também ter coragem para selvagerias.
- Vai me comer ou não? Se não vai, fala logo. Vou embora.
Devo lhe dizer que nunca fui covarde. Nunca me aproximei das loucas, das insanas. Nunca me aproveitei das drogadas nem das chucas, mas talvez a porra da vida se aproximando da reta final tivesse me transformado num serzinho abjeto naquele exato momento de tamanha oferta e acho que pensei que não teria outra oportunidade de estar em uma cama com uma mulher de beleza tão generosa e foi quase um ato impensado que me fez responder num tom baixo e vil, para não ser ouvido pelas poucas pessoas que estavam ali por perto:
- Vou sim. Vou pedir a conta.
Naquele momento fiquei tenso, não lembro ao certo da sequência dos fatos, mas recordo de não ter esperado pelo troco pois os garçons já me irritavam com suas fisionomias de deboche e quando cruzamos com ansiedade a avenida, era como se eu estivesse atravessando uma fronteira e pudesse ser alvejado por uma bala a qualquer instante. Então entramos em silêncio no meu carro e em silêncio tomamos o rumo de minha casa e lhe conto que naquela noite não deixei pedra sobre pedra, lhe relato que naquela deslumbrante e incandescente noite comi e recomi aquela estranha tanto, mas tanto, que sua expressão de desespero foi pouco a pouco se transformando na mais doce serenidade e seu cheiro de cavernas defumadas foi dando lugar a um aroma de amêndoas e mel e algumas horas depois, quando ela exausta adormeceu profundamente não tive dúvidas de ir buscar meu material no estúdio e usei carvão e usei óleo e a fotografei e a esbocei e a pintei e lhe dei comida quando despertou, e nos banhamos, e voltamos a foder e mergulhei insanamente num transe que deformava tempo e espaço com esta mulher que me tirou a paz que eu ingenuamente pensava ter, esta mulher de carnes tão duras e fartas e de hálito de leite fresco e glacial, esta mulher que resolveu ir-se dois dias depois, tão diferente que ficou daquela criatura que conheci, esta mulher que se foi sorridente pelas ruas de uma Gávea ensolarada, se foi... deixando um buraco bem aqui, no meio do meu estômago.
Ela não largou do marido rico. Sente por ele um tipo de amor que ninguém pode condenar e além disso os dois tem um filho pequeno. Mas me encontra uma vez por semana "para se vingar mais um pouquinho", como ela gosta de dizer. Minha casa agora tem mais de 50 telas onde ela está retratada. Vou até fazer uma exposição no centro da cidade, você acredita? Em minha sala, por onde todas as quintas ela caminha de pés descalços, pendurei também sua carteira de identidade em tamanho gigante. Ao lado da minha. Assim ela também não se perde tanto, pois ali ela pode ver sua foto e ali também está seu nome. Anita Vieira de Castro. Tem nome de rua, você não acha? Muitas vezes tenho cantado este nome como um mantra, enquanto trabalho, e é nesse momento que penso que Anita é bem mais do que música. E é mais do que livro também, ou verso ou cinema... Anita é tela... Anita é pintura.
FC-SETEMBRO-15-pOa
- Vou dar pra você.
Fiquei sem ter o que dizer a ela que continuou.
- Meu marido tá com outra...descobri hoje. Filho da puta.
E desabou num choro convulsivo. Os garçons se aproximaram para quem sabe me livrar da doida, mas algo me fez querer que ela não se fosse e depois de um gesto vago em direção a eles para que não fizessem caso, convidei-a para sentar e lhe ofereci algo para beber.
- Descobri hoje de tarde. Como é que ele pôde? Com a Tânia?
Logo com ela, meu Deus? Mas não vai ficar assim. Acabei de dizer pra ele que iria trepar com o primeiro que encontrasse ... e você foi o primeiro. Então é você.
Continuei em silêncio, sem saber o que fazer. Ela exalava álcool e cigarro por todos os poros, estava num estado mental deplorável, mas eu podia notar que era uma mulher estupenda em suas formas e a cabeleira longa e densa foi o que mais me encantou, a forma daquele cabelo grosso, castanho, suave. Tive vontade de enfiar meus dedos naquelas fartas madeixas mas não havia bebido o suficiente para também ter coragem para selvagerias.
- Vai me comer ou não? Se não vai, fala logo. Vou embora.
Devo lhe dizer que nunca fui covarde. Nunca me aproximei das loucas, das insanas. Nunca me aproveitei das drogadas nem das chucas, mas talvez a porra da vida se aproximando da reta final tivesse me transformado num serzinho abjeto naquele exato momento de tamanha oferta e acho que pensei que não teria outra oportunidade de estar em uma cama com uma mulher de beleza tão generosa e foi quase um ato impensado que me fez responder num tom baixo e vil, para não ser ouvido pelas poucas pessoas que estavam ali por perto:
- Vou sim. Vou pedir a conta.
Naquele momento fiquei tenso, não lembro ao certo da sequência dos fatos, mas recordo de não ter esperado pelo troco pois os garçons já me irritavam com suas fisionomias de deboche e quando cruzamos com ansiedade a avenida, era como se eu estivesse atravessando uma fronteira e pudesse ser alvejado por uma bala a qualquer instante. Então entramos em silêncio no meu carro e em silêncio tomamos o rumo de minha casa e lhe conto que naquela noite não deixei pedra sobre pedra, lhe relato que naquela deslumbrante e incandescente noite comi e recomi aquela estranha tanto, mas tanto, que sua expressão de desespero foi pouco a pouco se transformando na mais doce serenidade e seu cheiro de cavernas defumadas foi dando lugar a um aroma de amêndoas e mel e algumas horas depois, quando ela exausta adormeceu profundamente não tive dúvidas de ir buscar meu material no estúdio e usei carvão e usei óleo e a fotografei e a esbocei e a pintei e lhe dei comida quando despertou, e nos banhamos, e voltamos a foder e mergulhei insanamente num transe que deformava tempo e espaço com esta mulher que me tirou a paz que eu ingenuamente pensava ter, esta mulher de carnes tão duras e fartas e de hálito de leite fresco e glacial, esta mulher que resolveu ir-se dois dias depois, tão diferente que ficou daquela criatura que conheci, esta mulher que se foi sorridente pelas ruas de uma Gávea ensolarada, se foi... deixando um buraco bem aqui, no meio do meu estômago.
Ela não largou do marido rico. Sente por ele um tipo de amor que ninguém pode condenar e além disso os dois tem um filho pequeno. Mas me encontra uma vez por semana "para se vingar mais um pouquinho", como ela gosta de dizer. Minha casa agora tem mais de 50 telas onde ela está retratada. Vou até fazer uma exposição no centro da cidade, você acredita? Em minha sala, por onde todas as quintas ela caminha de pés descalços, pendurei também sua carteira de identidade em tamanho gigante. Ao lado da minha. Assim ela também não se perde tanto, pois ali ela pode ver sua foto e ali também está seu nome. Anita Vieira de Castro. Tem nome de rua, você não acha? Muitas vezes tenho cantado este nome como um mantra, enquanto trabalho, e é nesse momento que penso que Anita é bem mais do que música. E é mais do que livro também, ou verso ou cinema... Anita é tela... Anita é pintura.
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NO BOTECO
- O Temer?
- É.
- O que acho dele? ...
- Isto.
- Torço todos os dias pra que aquela linda, a mulher dele, esteja dando pra outro.
- É? Por que?
- Traíra.
- Entendi. Mas esse outro era tu, né?
- Eu não!
- Por que não?
- Já viu aquele cara? Aquele botox moderado?
- Que que tem?
- Parece figura do Tarantino.
- Malvado?
- Muito. Somem com teu corpo. Nunca mais te encontram.
- Hm.
- Mais seguro que outro coma.
- Eu, então.
- Tu comia?
- Comia.
- Putz. Tá louco! Não tem medo?
- Me cago de medo. Mas comia.
- Sério?
- Comia na cama deles. Em nome da democracia.
- Ah, moleque corajoso! Corajoso e democrata. Contigo golpe não se cria. Mas me diz uma coisa.... e a Maria?
- Que Maria?
- A do Rosário? Comia também?
- Claro. Já pensou aquela voz na cama, te irritando?
- Tesão, né? E a Dilma?
- Tenho especial atração pela Dilma. Comia fácil.
- Hum. Deixa ver...e a Erundina?
- Bom...se tivesse clima.
- Caralho.
- Que?
- Te admiro.
- Já sei. Me comia.
- Se tivesse clima...até que...
- Tomanocu.
- Sifudê.
- É.
- O que acho dele? ...
- Isto.
- Torço todos os dias pra que aquela linda, a mulher dele, esteja dando pra outro.
- É? Por que?
- Traíra.
- Entendi. Mas esse outro era tu, né?
- Eu não!
- Por que não?
- Já viu aquele cara? Aquele botox moderado?
- Que que tem?
- Parece figura do Tarantino.
- Malvado?
- Muito. Somem com teu corpo. Nunca mais te encontram.
- Hm.
- Mais seguro que outro coma.
- Eu, então.
- Tu comia?
- Comia.
- Putz. Tá louco! Não tem medo?
- Me cago de medo. Mas comia.
- Sério?
- Comia na cama deles. Em nome da democracia.
- Ah, moleque corajoso! Corajoso e democrata. Contigo golpe não se cria. Mas me diz uma coisa.... e a Maria?
- Que Maria?
- A do Rosário? Comia também?
- Claro. Já pensou aquela voz na cama, te irritando?
- Tesão, né? E a Dilma?
- Tenho especial atração pela Dilma. Comia fácil.
- Hum. Deixa ver...e a Erundina?
- Bom...se tivesse clima.
- Caralho.
- Que?
- Te admiro.
- Já sei. Me comia.
- Se tivesse clima...até que...
- Tomanocu.
- Sifudê.
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
ORBITAIS 5 - do nascer
Caramba,
a gente não quer sair da cama quente,não quer sair do banho fervendo,
e quando o sexo acontece,
a gente não quer parar nunca mais,
não quer deixar daquele ambiente quente e úmido,
pois não é verdade que em outras plagas batizaram o orgasmo de "pequena morte"?,
porque gozar, para o homem é sempre um fim,
mas pra mim,
gozar também é algo como renascer,
então adio,
postergo,
porque a gente não quer ter de nascer de novo,
nascer é muito duro e difícil e todo dia a gente volta a nascer brutalmente, quando desperta pela manhã,
talvez por isso alguém andou dizendo por aí que só atinge a felicidade aquele que morre,
e deve ser exatamente por isto que invado mais e mais as madrugadas, porque adormecer significa que haverá um despertar e despertar é uma alegoria do renascer e tenho pensado que tenho mais medo de nascer do que de morrer,
e Almodóvar sabe muito bem disto,
tanto é que numa cena de um de seus filmes que parecia ser ridícula,
mas está longe de se-la,
apesar de cômica,
o cineasta espanhol retrata um pequenino homem entrando ansiosamente em uma vagina imensa,
tentando desesperadamente voltar, quem sabe seria o "desnacer",
talvez seja este o ponto principal e mais central da reflexão sobre a existência ou talvez a Lispector tenha feito uma frase ainda mais genial e definitiva que diz "Ter nascido me estragou a saúde".
Não sei bem se é isso mesmo,
se é pura bobagem,
talvez aí tenha bastante de bobagem como em tudo que andamos tateando, mas foi assim que me veio e foi assim que com esforço consegui escrever.
sábado, 12 de setembro de 2015
A BEBEL TÁ AFIM DE TI
Foi bem assim que a Fátima falou. Que a Bebel tava afim de mim. Já fiquei nervoso, do melhor nervosismo que alguém pode sentir. Mas já estava desconfiado também. Dias antes, a Fátima me colocou de costas coladas com a Bebel. Depois de verificar o que queria, revelou empolgada:
- Viu só? Eu não disse?
Pesquei alguma coisa ali. Certamente Bebel queria saber se eu era mais alto que ela. Isto era importante. Ser mais alto, nem que fosse um milímetro. Eu tinha dois amigos. O Ronaldo e o Celso. Os dois tinham 1.83 de altura. Eu tinha 15 anos e lembro que cheguei a pensar, por algum momento, que com o passar do tempo eu também teria os meus 1,83, mas infelizmente me mantive anão. Bueno...pelo menos era mais alto que a Bebel, que tinha cabelos longos, pele e olhos claros. Bonita e meiga. Tão quietinha a Bebel...
Esta medição que me refiro foi feita num jogo de vôlei. Nunca joguei vôlei. Eu achava que vôlei era coisa de bichinha, assim como também achava que basquete era coisa de moscão. Eu era do futebol e fazia uma pequena concessão algumas vezes pra jogar um tenisinho. Mas tava ali, jogando vôlei naquela tarde só por causa das gurias, entende? Pelas gurias, tudo. É claro. Então, tinha surgido aquela novidade, e eu teria de pedir a Bebel em namoro.
No sábado teve uma festinha no bairro e lá estava eu, calça boca de sino de tergal bege, que é a cor preferida da minha mãe que costurou a calça. Carteira de identidade numa meia, dinheirinho na outra. Era careta calça com bolso. Não se usava de jeito nenhum! Meu pai ficava puto com esta moda.
A Bebel tava lá, toda linda, na festa que tava animada, no meio das pessoas e eu sem coragem. A mão suava. Fiquei remanchando um tempo, escolhendo as palavras que seriam ditas. Até que chegou um momento que pensei que era hora, que eu não podia ser tão perna de rato. Então fui lá e falei com voz trêmula pra menina que queria falar com ela.
Por aqueles dias eu tinha lido Love Story e tinha uma cena em que a mocinha pegava o mocinho pela manga do casaco e acho que esta cena se tornou emblemática e logo resolvi utilizar o mesmo expediente. Peguei a Bebel pela manga e a levei prum canto mais escondido pra me declarar. Depois o Dido veio me dizer.
- Pô, cara. Parecia que tu tava levando ela presa.
Mas voltando, pedi em namoro, ela aceitou e nos beijamos. Meu primeiro beijo foi meio babado mas rapidamente eu já estava dominando a técnica da baba perfeita. Como é bom, né?
No dia seguinte, no clube do qual era sócio, tinha o Barrico. O Barrico era a boate da gurizadinha e funcionava das 4 da tarde às 8 da noite. Pois bem. Bebel e eu entramos na boatezinha e nos beijamos durante 4 horas sem parar. Saímos de lá exaustos e com as bocas vermelhas. O Dido depois veio me dizer.
-Cara! Quando tu saiu lá de dentro, tu parecia um velho!
Lembro que fiquei cansadão realmente. E o Ronaldo veio me criticar.
- Porra, cara! Conversa um pouco. Não beija tanto.
Não dei muita bola. Eu lembro um pouco deste começo, mas não lembro nada como terminou o namoro. Acho que não durou nem uma semana. Talvez porque a gente não tivesse assunto. Era uma preocupação que me afligia. Beijar eu achava fácil. Mas e o assunto? Que que eu vou falar com esta guria? Éramos mais caipiras nestas priscas eras.
De vez em quando lembro da Bebel e do meu primeiro beijo e acho que sempre vou pensar que este é o melhor e um dos mais importantes assuntos.
Nunca deixarei de me sentir profundamente agradecido, maravilhado e assombrado quando uma mulher me escolhe pra beijar sua boca. E sinto isto de verdade. Não é pra ser fofo ou own, que tá na moda falar.
É uma coisa minha... certamente coisa de caipira.
FC-SETEMBRO-15-pOa
- Viu só? Eu não disse?
Pesquei alguma coisa ali. Certamente Bebel queria saber se eu era mais alto que ela. Isto era importante. Ser mais alto, nem que fosse um milímetro. Eu tinha dois amigos. O Ronaldo e o Celso. Os dois tinham 1.83 de altura. Eu tinha 15 anos e lembro que cheguei a pensar, por algum momento, que com o passar do tempo eu também teria os meus 1,83, mas infelizmente me mantive anão. Bueno...pelo menos era mais alto que a Bebel, que tinha cabelos longos, pele e olhos claros. Bonita e meiga. Tão quietinha a Bebel...
Esta medição que me refiro foi feita num jogo de vôlei. Nunca joguei vôlei. Eu achava que vôlei era coisa de bichinha, assim como também achava que basquete era coisa de moscão. Eu era do futebol e fazia uma pequena concessão algumas vezes pra jogar um tenisinho. Mas tava ali, jogando vôlei naquela tarde só por causa das gurias, entende? Pelas gurias, tudo. É claro. Então, tinha surgido aquela novidade, e eu teria de pedir a Bebel em namoro.
No sábado teve uma festinha no bairro e lá estava eu, calça boca de sino de tergal bege, que é a cor preferida da minha mãe que costurou a calça. Carteira de identidade numa meia, dinheirinho na outra. Era careta calça com bolso. Não se usava de jeito nenhum! Meu pai ficava puto com esta moda.
A Bebel tava lá, toda linda, na festa que tava animada, no meio das pessoas e eu sem coragem. A mão suava. Fiquei remanchando um tempo, escolhendo as palavras que seriam ditas. Até que chegou um momento que pensei que era hora, que eu não podia ser tão perna de rato. Então fui lá e falei com voz trêmula pra menina que queria falar com ela.
Por aqueles dias eu tinha lido Love Story e tinha uma cena em que a mocinha pegava o mocinho pela manga do casaco e acho que esta cena se tornou emblemática e logo resolvi utilizar o mesmo expediente. Peguei a Bebel pela manga e a levei prum canto mais escondido pra me declarar. Depois o Dido veio me dizer.
- Pô, cara. Parecia que tu tava levando ela presa.
Mas voltando, pedi em namoro, ela aceitou e nos beijamos. Meu primeiro beijo foi meio babado mas rapidamente eu já estava dominando a técnica da baba perfeita. Como é bom, né?
No dia seguinte, no clube do qual era sócio, tinha o Barrico. O Barrico era a boate da gurizadinha e funcionava das 4 da tarde às 8 da noite. Pois bem. Bebel e eu entramos na boatezinha e nos beijamos durante 4 horas sem parar. Saímos de lá exaustos e com as bocas vermelhas. O Dido depois veio me dizer.
-Cara! Quando tu saiu lá de dentro, tu parecia um velho!
Lembro que fiquei cansadão realmente. E o Ronaldo veio me criticar.
- Porra, cara! Conversa um pouco. Não beija tanto.
Não dei muita bola. Eu lembro um pouco deste começo, mas não lembro nada como terminou o namoro. Acho que não durou nem uma semana. Talvez porque a gente não tivesse assunto. Era uma preocupação que me afligia. Beijar eu achava fácil. Mas e o assunto? Que que eu vou falar com esta guria? Éramos mais caipiras nestas priscas eras.
De vez em quando lembro da Bebel e do meu primeiro beijo e acho que sempre vou pensar que este é o melhor e um dos mais importantes assuntos.
Nunca deixarei de me sentir profundamente agradecido, maravilhado e assombrado quando uma mulher me escolhe pra beijar sua boca. E sinto isto de verdade. Não é pra ser fofo ou own, que tá na moda falar.
É uma coisa minha... certamente coisa de caipira.
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domingo, 6 de setembro de 2015
IMPOSSIBILIDADES DE UMA AMEBA
Eu sou um protozoário. Os pequenos serviços, não sei fazer nada. É raro acontecer de eu ter sucesso nestas mini empreitadas. Quando isto acontece, me sinto muito bem.
Mas tem coisas dificilíssimas de se fazer. Não sei por que cargas d’água, sempre que vou desparafusar qualquer coisa, um dos parafusos está travado. É uma sina. Quando forço um pouco mais com a chave, danifico a fenda, e acabo tornando a tarefa impossível. Não sai nem por uma caralha. ...Diz que tem cara que consegue tirar um parafuso nesta condição. Mas como é que pode? É muita sabedoria.
Uma vez, minha avó me mandou lixar umas cadeiras de ferro.
Eram brancas e ela queria pintar de preto. Se eu tivesse resolvido levar a cabo a tarefa, estaria lixando até hoje. Não saia nadinha daquela tinta branca. Cosa de loco.
Uma vez a mãe da Júlia, que agora tem 11 anos, me mandou descascar uma abóbora pra fazer sopa pra ela. Uma destas abóboras verdes, que não são tão grandes. Depois de meia hora de extenuante luta, eu tinha conseguido tirar uma casquinha de uns 5 centímetros apenas. A abóbora tava toda cavocada. Eu ia levar mais uns dois ou três dias pra descascar toda. Nunca tente descascar uma abóbora verde. É impossível.
O serviço mais tapeado que já fiz? Faz tempo. Tive de lavar uma calça jeans a mão. Fazia temperatura negativa. A calça foi ficando dura. Parecia um pesadelo passar sabão naquele troço congelado. Ao mesmo tempo que tentava lavar, caia na gargalhada ao observar minhas imensas impossibilidades. Pendurei aquele picolé de calça de qualquer jeito, meio suja mesmo, e fui tomar vinho.
Tenho inveja destes caras que tem uma caixa de ferramentas e uma furadeira. Homem que é homem de verdade possui uma furadeira Bosch. Sou uma ameba. Foi só dia desses que aprendi a fazer café e a colocar roupa na máquina de lavar e descobri com tristeza que a máquina não coloca a roupa na corda.
Mas tem coisas dificilíssimas de se fazer. Não sei por que cargas d’água, sempre que vou desparafusar qualquer coisa, um dos parafusos está travado. É uma sina. Quando forço um pouco mais com a chave, danifico a fenda, e acabo tornando a tarefa impossível. Não sai nem por uma caralha. ...Diz que tem cara que consegue tirar um parafuso nesta condição. Mas como é que pode? É muita sabedoria.
Uma vez, minha avó me mandou lixar umas cadeiras de ferro.
Eram brancas e ela queria pintar de preto. Se eu tivesse resolvido levar a cabo a tarefa, estaria lixando até hoje. Não saia nadinha daquela tinta branca. Cosa de loco.
Uma vez a mãe da Júlia, que agora tem 11 anos, me mandou descascar uma abóbora pra fazer sopa pra ela. Uma destas abóboras verdes, que não são tão grandes. Depois de meia hora de extenuante luta, eu tinha conseguido tirar uma casquinha de uns 5 centímetros apenas. A abóbora tava toda cavocada. Eu ia levar mais uns dois ou três dias pra descascar toda. Nunca tente descascar uma abóbora verde. É impossível.
O serviço mais tapeado que já fiz? Faz tempo. Tive de lavar uma calça jeans a mão. Fazia temperatura negativa. A calça foi ficando dura. Parecia um pesadelo passar sabão naquele troço congelado. Ao mesmo tempo que tentava lavar, caia na gargalhada ao observar minhas imensas impossibilidades. Pendurei aquele picolé de calça de qualquer jeito, meio suja mesmo, e fui tomar vinho.
Tenho inveja destes caras que tem uma caixa de ferramentas e uma furadeira. Homem que é homem de verdade possui uma furadeira Bosch. Sou uma ameba. Foi só dia desses que aprendi a fazer café e a colocar roupa na máquina de lavar e descobri com tristeza que a máquina não coloca a roupa na corda.
DEPOIS DO BANHO
Estava eu em frente ao espelho, penteando meus parcos cabelos depois do banho, completamente arrepiado de emoção, pois da sala a TV mandava Chico Buarque pela casa toda e claro que não era nenhuma destas emissoras que diariamente nos traem quando nos oferecem seu lixo e suas mentiras, e o bem estar da boa temperatura do banheiro me fez lembrar de uma entrevista com Ricardo Darin que disse sentir-se constantemente agradecido por ter a sorte de poder tomar dois banhos quentes por dia e tenho me sentido assim por também possuir o que considero um modesto oásis no meio de tanta tristeza e caos que vai se aprofundando desde a cidade onde vivo até outros lados do mundo e lembrei também de que certa feita a minha querida Vika me convidou pra assistir ao Senhor Buarque no Canecão e eu andava duro e ela pagou e tudo e eu pensei que ia ser apenas bacana, mas acabei chorando que nem criança uma boa parte do concerto, pois aquilo era demais de lindo e a casa cheia de gente de tudo que era idade, todo mundo emocionado com a entrega daquele gênio bonito, porque o Chico ao vivo me pareceu impressionante, ele estava vibrando, ele estava dando o máximo como artista como sempre deu compondo, gigante planetário, sempre fez uma arte de ponta, criativa, nova, nos dando referência, educando nossa estética e assim também nossa ética, e na frente do espelho, pensando nisso, me deu pena que exista uma gente que não lava a boca com sabão pra falar dele, uma gente que por suas ideias tacanhas e pequenas, e mais do que tudo por ignorar e querer ignorar, o que é muitíssimo pior, resolve não ser Chico e prefere ser Lobão, ora vejam, uma gente feia e endinheirada que vai pras ruas pedir o que mesmo? uma gente fascista, homofóbica, racista, uma gente feita de ódio e pobre de argumentos, uns ninguéns, uns destituídos com os quais ainda não consegui descobrir qual o fio de comunicação para lhes fazer entender que estão equivocados, que o mundo vai se tornando mais e mais uma praia onde chegam crianças mortas, porque o egoísmo fez seu reinado no planeta e 1 por cento da humanidade possui a metade dos bens do mundo, e mesmo assim não estão contentes, ainda querem mais, querem tudo pois cada vez mais vai sendo instituída uma permissão para se ser perverso e como é que vamos fazer isto? como poderemos melhorar a capacidade destas pessoas para que reflitam um pouco mais? para tentarmos mudar o rumo terrível que as coisas estão tomando, antes que nossa jornada se transforme numa tragédia ainda mais generalizada e definitivamente irrecuperável?
sexta-feira, 4 de setembro de 2015
POR ONDE ANDAM TEUS PÉS
POR ONDE ANDAM TEUS PÉS?
Facebookianos e eu fizemos a sétima canção da IDEIA COMPARTILHADA. Maria Nilma sugeriu POR ONDE ANDAM TEUS PÉS e Julio Kling mandou uma frase que tinha a palavra MARFIM e a partir daí decidi que a letra iria por um caminho ecológico.
É estranho fazer uma canção com este teor.
Acho que no Brasil quase não existem canções que falem em ecologia. Tô certo?
Me diverti um pouco utilizando o gigante Marvin Gaye como referência e a intro tem a melodia de What's going on.
Na década de 80 vivi na Espanha e lembro de uma tarde em que estava sentado na mesa da sala, na calle Enrique Trompeta, no bairro operário de Legazpi, em Madrid, quando ouvi a notícia de que o artista tinha sido assassinado por seu pai. Acho que isso foi em 85 ou 86. Foi assassinado por ser gay.
Nesta época, a Espanha vivia sua nova democracia.
Havia o otimismo de um socialismo que funcionava muito bem.
O presidente do governo, Felipe Gonzalez era muito respeitado. Madrid tinha um prefeito fantástico, Tierno Galvan.
Um velhinho, que certa feita entrou num grande concerto de rock, chegou no microfone e perguntou pra massa; "Están todos colocados?" Ele queria saber se estavam todos chapados. A posse de uma pequena quantidade de haxixe tinha sido permitida no país e Tierno era moderninho. Era amado na cidade.
E tinha o rei também, que a gente gostava muito. Juan Carlos tinha peitado os militares em 81 quando os babacas fascistas tentaram dar novamente um golpe de direita. Então éramos fans do cara.
Pois é. Mas olha só. Vários anos depois Juan Carlos andou por aqui pelas Américas e mandou o Chavez calar a boca numa destas reuniões de cúpula ou algo assim.
Até aí tudo bem.
O brabo foi saber que poucos meses depois o rei de Espanha foi encontrado na África matando elefantes.
É mole?
Uma coisa destas deixa a gente perdido, pensando que a humanidade tá uma merda e não tem jeito mesmo.
E ainda tem este dentista americano que entra na África pra matar o animal mais lindo que existe. Um cara destes não tem mãe ou filhos? E estas pessoas que o rodeiam vêem as fotos de sua ignóbil caçada e o aclamam? Não se entristecem nem o censuram? Não? Mas que tipo de gente é essa?
Bueno. Acho que a canção ficou biita. Participaram Maria Nilma, Julio Kling, Aline Julio e Vânia Mallmann. Aqui vai a letra também.
POR ONDE ANDAM TEUS PÉS
Por onde andam teus pés?
É estranho fazer uma canção com este teor.
Acho que no Brasil quase não existem canções que falem em ecologia. Tô certo?
Me diverti um pouco utilizando o gigante Marvin Gaye como referência e a intro tem a melodia de What's going on.
Na década de 80 vivi na Espanha e lembro de uma tarde em que estava sentado na mesa da sala, na calle Enrique Trompeta, no bairro operário de Legazpi, em Madrid, quando ouvi a notícia de que o artista tinha sido assassinado por seu pai. Acho que isso foi em 85 ou 86. Foi assassinado por ser gay.
Nesta época, a Espanha vivia sua nova democracia.
Havia o otimismo de um socialismo que funcionava muito bem.
O presidente do governo, Felipe Gonzalez era muito respeitado. Madrid tinha um prefeito fantástico, Tierno Galvan.
Um velhinho, que certa feita entrou num grande concerto de rock, chegou no microfone e perguntou pra massa; "Están todos colocados?" Ele queria saber se estavam todos chapados. A posse de uma pequena quantidade de haxixe tinha sido permitida no país e Tierno era moderninho. Era amado na cidade.
E tinha o rei também, que a gente gostava muito. Juan Carlos tinha peitado os militares em 81 quando os babacas fascistas tentaram dar novamente um golpe de direita. Então éramos fans do cara.
Pois é. Mas olha só. Vários anos depois Juan Carlos andou por aqui pelas Américas e mandou o Chavez calar a boca numa destas reuniões de cúpula ou algo assim.
Até aí tudo bem.
O brabo foi saber que poucos meses depois o rei de Espanha foi encontrado na África matando elefantes.
É mole?
Uma coisa destas deixa a gente perdido, pensando que a humanidade tá uma merda e não tem jeito mesmo.
E ainda tem este dentista americano que entra na África pra matar o animal mais lindo que existe. Um cara destes não tem mãe ou filhos? E estas pessoas que o rodeiam vêem as fotos de sua ignóbil caçada e o aclamam? Não se entristecem nem o censuram? Não? Mas que tipo de gente é essa?
Bueno. Acho que a canção ficou biita. Participaram Maria Nilma, Julio Kling, Aline Julio e Vânia Mallmann. Aqui vai a letra também.
POR ONDE ANDAM TEUS PÉS
Por onde andam teus pés?
Teus sapatos estão sujos de sangue.
O sangue da seiva do mundo
O licor da vida.
Por onde andam teus pés?
Como pode um homem
que diz ter um deus
olhar nos olhos de seus filhos
logo após covardemente alvejar
o mais glorioso rei
Por onde andam teus pés?
Em Pequim um jovem joga flores aos céus
E espera por sinais
Por onde andam teus pés?
Por onde andam teus pés?
Por praças de touros, safaris, arenas
Teus anéis de marfim tem o preço da dor
por onde andam teus pés?
Como pode um rei
e agora vos falo de um rei dos homens
calar a preciosa vida do planeta
e posar tão sorridente
ao lado de tão ignóbeis troféus
por onde andam teus pés?
Em Paris uma menina, fim de tarde, na janela espera por sinais
Por onde andam teus pés?
Virá,
de um futuro virá
uma estrela pra nos guiar
avatar, avatar
Virá,
de um futuro virá
uma estrela pra nos salvar
Como pode a geleira de alguns corações
compartilhar venenos e desertos
suas vozes nos banquetes abafam outras tantas vozes
que clamam do além mar
Por onde andam teus pés?
Em São Paulo um velho homem liga seu radinho
à espera de sinais
por onde andam teus pés?
Virá,
de um futuro virá
uma estrela pra nos guiar
avatar, avatar
Virá
de um futuro virá
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