sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

FINDI

- Ernesto.
- Hum.
- Coisa boa, né? Um sábado de folga, só pra gente descansar...
- Humhum.
- ...pra relaxar, ficar de papo pro ar, conversar...
- Humhum...
- Querido. Você tá muito absorto hoje. Tá aéreo...
- Tô?
- Tá sim. Tá tudo bem?
- Tá. Tudo certinho.
- Então me diz no quê que você tá pensando!
- Eu?
- Não! Eu, Ernesto! Claro que é você. Me diz!
- Digo o que?
- No que você tá pensando?
- Não tô pensando em nada, querida.
- Ninguém não tá pensando em nada, Ernesto! Fala logo, pô.
- Bobagem...pensando nada...pensamentos voláteis...
- Ernesto. Me responde uma coisa. Você me ama?
- Amo.
- Ama mesmo?
- Amo muito.
- Então. Quem ama não tem nada a esconder. Quem ama de verdade divide tudo com o outro. Não é? 
- É. 
- Diz, então !
- Bom...tava pensando neste clima politico pesado que tá atrapalhando o fim do ano das pessoas, esta discórdia que...
- Ahhh! Para, Ernesto! Não vem com essa. Você tava com uma cara de babão cheio de reminiscências.
- Tava?
- Tava sim. Fala de uma vez!
- Na verdade, quer saber?
- Quero
- Eu tava lembrando da primeira vez que a gente transou.
- Sério?
- Seríssimo.
- Não acredito. Tás inventando isso.
- Tô não.
- Tás me enganando. E me responde. Se você tava lembrando da nossa primeira vez, que na época era novidade, é porque você não gosta mais da nossa transa atual!!? Encheu, não é isso?
- Nada. Tô até imaginando que seria uma grande ideia se a gente transasse agora. Vamos?
- Nop.
- Por que nop?
- Não posso. Tenho de fazer as unhas, depois supermercado...
- Bobagem. Isso tudo pode ficar pra depois.
- Pode não. Olha só. Se você não ficar muito pensativo, taciturno desse jeito, amanhã, depois do Fantástico, rola.
- É?
- É.
- Tá bom.
- Marcado. Mas, Ernesto... Vai fazer alguma coisa.
- Como assim?
- Vai ocupar este cérebro. Não fica por aí, pensando besteira.
- Mas que besteira?
- Ora, querido. Você sabe do que tô falando. Besteira...
- Sei não.
- Sabe sim. Óh. Tô vendo pela tua cara, com este risinho cínico.
- Tá vendo o que?
- Te conheço muito bem, Ernesto. Já sei do que tás lembrando, fofo!
- Tô lembrando o que, pô?
- Eu sabia! Tás lembrando daquela sirigaita, Ernesto!
- Que sirigaita, Marília?
- Para de rir, Ernesto! Tás lembrando daquela vadia de novo. To vendo muito bem nessa tua cara safada. Você acaba de estragar meu findi, Ernesto! Este é o teu prazer.
- Bah, Marília! Não dá pra te aguentar com tuas milhares de improváveis conjecturas. Fui.
- Volta aqui, Ernesto. Fala, desgraçado! Tás pensando naquela vaca, né?
-...
- Volta aqui e responde! Ah, não vais vir? Tá bom então. Sabe aquilo que te prometi pra depois do Fantástico? Esquece. Dou prum mendigo, mas não dou pra ti.
- ...
- Volta aqui, Ernesto! Putz. Tão bom que tava o findi e esse merda tem de estragar tudo.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

MAYA

Já fazia algum tempo que eu estava sob a ducha daquele hotel em terras tão longínquas. Era um banho interminável. Não tinha forças para sair da massagem que a variação da torrente me oferecia.

Estava preso às oscilações do jato ora forte, ora fraco, ora forte... estava preso porque talvez aquilo trouxesse as sensações das ondas do mar, este ser generoso que se dá por inteiro. Mas o mar também te compra. E quando te compra, te escraviza. O mar nunca te deixa ir de verdade.

De olhos fechados, naquele banheiro completamente tomado pelo vapor, destituído de qualquer referência espacial, tal qual linhas do horizonte e arestas arquitetônicas, vasculhando memórias e reflexões, buscava alguma ideia para escrever sobre, quando de repente escuto uma voz feminina dizendo qualquer coisa em inglês, que acabei não entendendo, é claro, pois não sou nem um pouco íntimo com o idioma.

Penso então que pode ser alguma camareira, mas a porta havia sido cuidadosamente trancada e esse tom glacial nada tem de humano. Lembra saguões de aeroporto ou gares agitadas. Não há ninguém além de mim na habitação. Disso tenho certeza.

Então tiro a cabeça do raio de ação da forte corrente de água, para que os ouvidos possam perceber qualquer outro sinal estranho e é neste momento que escuto uma outra voz, também feminina, num claríssimo espanhol, dizendo:

“No malgasteis el água”.

Quando isto acontece, é como uma carta de alforria ou a chegada da melhor notícia, a mais esperada. Me apaixono instantaneamente por esse acento centro americano que me aconselha a ter uma pouco mais de responsabilidade ecológica. Diferentemente da frase yankee, esta nova voz está plena de calor.

Cuba? Panamá? Costa Rica, talvez. É uma voz de tonalidade adocicada da flor do tabaco que não foi e jamais será fumado. É compressa fresca para uma febre que vem desde a infância. É azuis e verdes sobrepostos, aquarelados.

No dia seguinte repito o banho e novamente me excedo no tempo. Com o celular na mão e a têmpora latejando, como alguém que furta enquanto a cidade dorme, gravo a mensagem de Maya. Sim. Não tive dúvida de que a dona daquele timbre estonteante também era dona desse nome. Maya.

Quinze dias depois, no escuro de meu quarto, por sobre uma trilha sonora hipnótica, escuto Maya flutuar, e a cada exatos oito compassos, Maya me sugere cuidado com a utilização da água.

Isso tudo pode parecer um tanto insano, mas é algo que tem me acalmado nestes dias tão contaminados pelo medo e pelo ódio. Para que se possa enfrentar um mundo que está tomado pela loucura, há que buscar remédios também demenciais. Não seria este o processo da homeopatia?

Deixando de lado estes raciocínios que parecem tolos e ilógicos, gostaria de contar que ouvir Maya desde minha cama, serve para arrefecer um pouco o tanto de solidão que me toca e ao mesmo tempo, me divirto com o estranho e delicado gosto que me vem à boca, como se fossem pétalas, pétalas destas que se usam em chás.

Nunca provei deste tipo de infusão, mas penso que deva ter este sabor, este exato sabor que agora sinto, quando ouço Maya me sugerindo mais uma vez que não gaste água.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

NÃO CONTESTE BOLSOMINION

Tenho visto algumas pessoas comparando a eleição da besta à do Collor.

Eu acho um imenso engano.

Collor era um político ordinário padrão como tantos outros que estão por aí. Fez muitas promessas e enganou muita gente.

A besta, além de ordinário, é um puta destruidor de tudo que é positivo.

A besta é um medíocre. Um ressentido.

Que foi eleito também por um contingente de ressentidos, como ele, que passaram a ter um certo protagonismo nas redes sociais e se agruparam para ter coragem de bradar suas insanidades. A grande sacada foi encontrar um representante que avalizasse sua idiotia.

O fenômeno da besta é algo muito novo, que nem os estudiosos conseguiram explicar direito ainda.

Trump, ingleses fora do mercado comum e a besta são filhotes da mentira criada por técnicos que ganham muita grana pra ferrar a humanidade. Seu público alvo é composto de magoados. Cultuadores do ódio que compartilham mentiras, mesmo sabendo que se tratam de mentiras. Dia destes, nas páginas da extrema direita, vi pessoas gritando que "criar e propagar fake news é um direito democrático. Acredita quem quer".

Isto tudo é uma grande vingança.

Mas não é uma vingança contra o PT ou contra a corrupção do PT. Até o antipetismo é, de certa forma,  uma mentira e a gente já sabe que até mesmo os eleitores da besta não acreditam que ele seja honesto.

A vingança é contra a luz do pensamento.

É uma vingança contra as ideias. Contra os criadores, contra a cultura. É uma vingança dos ressentidos contra a esperança, contra a beleza.

Eles querem destruir tudo. Eles se identificam com as ruínas. Se sentirão confortáveis num mundo vazio de música nova, um mundo sem pensadores, um mundo oco de reflexões e questionamentos. Desejam um mundo de águas rasas onde tudo e todos sejam rasos.

Eles têm um arsenal de memes que utilizam para combater argumentos. É só o que eles têm. Memes com kkk no final. Não formulam nada.

Nunca tente trocar uma ideia com algum adorador da besta.

Você vai ficar chateado e ele vai exultar, porque o lance dele é destruir.

Já faz tempo que não refuto nada desta gente. E fujo de ler o que escrevem. Não divido mais pedaços da minha vida com estas pessoas.

Não conteste os bolsominions. Eles se alimentam da tua energia. Eles sobrevivem do teu sofrimento.

Deixe eles entre eles.

Eles vão se dissolver aos poucos.

sábado, 8 de dezembro de 2018

DJAVAN

Programa muito bom na TV com o Djavan.

Me lembrou de quando recém havia chegado ao Rio de Janeiro e numa noite, no momento em que entrei no Rival, Djavan estava no palco acompanhado por um músico apenas. Acho que era o lançamento do Songbook de João Bosco e a canção era lenta. Fui pro fundo do teatro e fiquei de pé, observando a performance. Pensei.

Putz. É como se fosse um anjo cantando.

Conheci um carioca chamado Jaburu, que além de ser um grande compositor, tinha uma inteligência daquelas que tornava importante fazer-se silêncio pra ouvir o que ele tinha a dizer sobre música. Jaburu, certa feita, num boteco, sentenciou que nunca se deve imitar Djavan cantando porque é algo que a gente vicia e nunca mais deixa. Tem muita beleza em sua forma de cantar.

Verdade verdadeira.

Aqui pelo sul Djavan não chegava. Muito melancólico, era o que se falava por estas bandas.

Os publicitários odiavam. Por esta melancolia, Djavan não seria referência pra nada em propaganda, mesmo que se diga por aí que melancolia nada mais é do que a felicidade de estar triste. Eu curto muito uma melancoliazinha, mas sei que melancolia não vende jeans e muito menos detergente.

Mas num belo dia, Djavan fez uma canção e introduziu nela a seguinte frase; “Te devoraria como a Leonardo de Caprio”.

E os astros fizeram seu trabalho.

“Titanic” foi lançado na mesma época e jogou Leonardo às nuvens. A canção de Djavan pegou carona neste trem. Esta é uma teoria minha e só minha.

O que sei é que a partir deste momento ”Te devoro” passou a ser a música mais tocada na noite porto alegrense e lembro que foi surpreendente entrar na casa de um amigo e ouvir as melancolias alagoanas de Djavan. Sua filha, que estava com quinze, havia comprado o CD.

Nessa época era Djavan por todo canto que chegou a encher.

Um tempo depois ele fez um show no Araújo Viana lotado e nas primeiras filas só menininhas de quinze anos. Apaixonadas pelo cara.

Djavan, numa entrevista, disse que sua carreira tinha tomado um rumo que ele não estava gostando muito.

Era muito sucesso, acho.

Mas foi uma boa conjunção astral que o tornou mais popular ainda. Anos antes, sua trajetória já havia dado um bom salto com o disco Luz, onde Samurai foi o carro chefe, mas o "eu te devoro" jogou o cara pras estrelas.

É sempre bom quando a cultura se propaga, mesmo quando ajudada por um golpe de sorte.

Neste momento estamos necessitando de muitos golpes de sorte, pois se antes o poder não se importava muito com a cultura, agora o poder deseja aniquilá-la. 


Djavan é necessidade vital brasileira.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

PAPO CUECA1

- Olha só.
- O que?
- Que espuma linda.
- É mesmo. Esta ceva é uma loucura.
- Teor nas alturas. Teor fodão.
- Bah. To Chaplin total.
- Então...mais um brinde!
- Mais um brinde!
- A nós. À nossa amizade!
- À nossa amizade!
- Agora...eu tava pensando.
- Ih...isso is not goody.
- Pô, presta atenção! É sério. Deixa te falar.
- Manda.
- Vai prestar atenção?
- Acho que vou. Vai. Fala, antes que eu desmaie.
- Lá vai.
- Hum.
- Do pó viemos, ao pó voltaremos e não comemos ninguém.
- Opa, opa, opa! Fala por você. Eu comi muita gente.
- Comeu nada. Te conheço desde pequeno. Comeu rolhas.
- Ah, ah! Quem não comeu foi você, cabação.
- Olha. Tu comeu uma romena?
- Não.
- Comeu uma búlgara?
- Também não.
- Tailandesa?
- Nem.
- Não comeu ninguém.
- Comi argentina.
- Que argentina?
- A Eneida.
- A Eneida você não comeu. A Eneida foi tua mulher por vinte anos. Além do mais ela veio de Buenos Aires com seis meses de idade. A Eneida não conta.
- Humpf.
- Comeu uma aeromoça?
- Não.
- Uma sargenta?
- Tampouco.
- Uma tenenta, uma caba. Comeu?
- Bah.
- Comeu uma cantora? Uma fagotista? Uma otorrinolaringologista?
- Não.
- Não to certo? Nesta puta vida não comemos ninguém.
- Eu comi professora.
- Ah. Isso eu também.
- Comi muita professora.
- Eu também. Toneladas.
- Você não comeu mais que eu.
- Ah, ah. Claro que comi. Quer apostar? Comi professora pra caralho.
- Vamos ver isso daí. Tem caneta? E papel?
- Tenho. Vamos ver.
- Vais ver a surra que vou te dar. Bah. Tá tudo girando.
- Vai logo com este levantamento. E não vale inventar.

DEZ MINUTOS DEPOIS

- Olha só. Terminei.
- Terminei também. Eu comi doze teachers.
- Sério?
- Bem sério. Te ganhei lindo, não foi?
- Na minha lista tem vinte e quatro, mas como tô vendo dobrado, são doze também.
- Ah, para com isto! Tá inventando.
- Tô não.
- Empatamos?
- Não. Eu ganhei.
- Mas é doze a doze? Empate, pô.
- Lembra a Marilourdes?
- Lembro sim.
- A Marilourdes foi diretora.
- E daí??? Também fiquei com a Marilourdes!
- Ficou antes de mim!
- Claro. Sempre fui mais adiantado que você, seu molenga.
- Você ficou com ela quando ela cuidava do audiovisual. Não era diretora ainda.
- E aí?
- E aí ganhei. Tu não tem diretora na tua lista.
- Tomanocu.
- Um brinde à minha vitória.
- Um brinde sim! Mas não à tua vitória, cuzão.
- A que então?
- Um brinde à vida.
- Um brinde às profes?
- Sim. Um brinde às profes.
- Que nos aguentaram.
- Isso. Deixa te contar que já sofri por professora.
- Sério?
- Sério. Até corno fui.
- Bah. Isso eu não sabia.
- Fui.
- Mas rapaz. Você tá chorando. Não faz isso que eu choro também.
- Parius. Sofri pra caralho. Eu adorava aquela cara de braba que ela tinha. Professora faz tanta cara de braba na aula que acaba ficando com cara de braba pra sempre.
- Hum.
- Ela andava fria comigo e um dia bebi tanto que quando encontrei ela, disse pra ela que queria ser o estojo dela. Falei que me bastaria pra ser feliz se eu pudesse ser o giz dela. Falei isso tudo de joelhos.
- Putz. Que ridículo, cara. E ela?
- Fez um carinho na minha cabeça, deu uma gargalhada e entrou no ônibus. Por sorte o ônibus se foi e ela não me viu emborcar no barro. Depois me contaram que viram ela bebendo com um barbudinho no Bar Batana.
- Bah. Mas para de choradeira. esquece isto. Mais um brinde. Prestatenção nessa espuma, meu irmão!
- Tá. Que rica espuma! Um brinde a nós que do pó viemos, ao pó voltaremos e comemos geral.
- Isso. Passamos o rodo.
- Pelo menos no magistério.
- Uhuuuuu!!! Um brinde ao magistério.
- Ao magistério e à nossa amizade.
- À nossa larga amizade, cabação.
- Te considero vaitefudê.
- Tomanocu.

Das PANELAS

Teve uma época em que morei com um colega no bairro do Leblon, Rio de Janeiro, num conjunto de prédios apelidado de Selva de Pedra.

Tal complexo, por seu arrojo e modernidade, fez parte da abertura da novela que causou furor na década de setenta.

Meu colega cozinhava e pode-se dizer até que fazia isto com certo talento.

Eu chegava de madrugada, abria a geladeira e lá estavam as panelas com o rango.

Me servia com o devido cuidado para não raspar as panelas, pois se fizesse isto, teria de lavá-las. Então, sempre deixava um pouco.

No dia seguinte, a cena era a mesma.

O cara, com uma cara preparada, vinha me perguntar o motivo de eu não ter comido todo o conteúdo. Me indagava, malandramente, se a comida não estava saborosa, se o rango não estaria a meu gosto, se lhe faltava tempero e eu respondia que sim, que era uma comida de primeira, mas que a fome não era pra tanto.

Eu não gostava de lavar panelas e meu brother, muitíssimo menos. Então rolava esse teatro.

Tempos depois, quando já vivia em outro bairro, fui fazer um ensaio na casa do cara e junto com outro colega fomos convidados a almoçar.

Era um cozido. Estava muito bem feito, mas vez por outra, tirávamos da boca algo que era impossível mastigar. Tomados pela desconfiança, fomos depositando aqueles cacos escuros na borda dos pratos.

Num determinado momento, o baixista não se contém e pergunta.

- Véio? O quê é que são estas crostas?

A resposta nos assombrou de verdade.

- É da comida anterior.

Bah. Definitivamente o cara não gostava de lavar panelas.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

TÔ DE OLHO

- Maria Paula. Deixa te dizer uma coisa.
- O que é, Jorge?
- O teu beijo.
- Quê que tem?
- Tá esquisito, Maria Paula.
- Esquisito como, Jorge?
- Muita língua.
- Muita língua?
- É. Você não era assim. Você beijava normal. Agora você passa a língua no meu bigode, depois faz uma exploração nas minhas gengivas...
- Sério?
- Ontem de noite tive a impressão de que você contava um a um quantos dentes tenho na boca. Quando terminou a função da contagem, deu uma pincelada nas minhas amígdalas e em seguida lambeu a campainha. Foi aí que me engasguei e tive aquele puta acesso de tosse.
- Hum.
- É uma língua atlética, que você não tinha. Você parece um tamanduá, Maria Paula.
- Puxa vida, Jorge!!
- E tem mais.
- Que?
- Saliva corrosiva.
- Saliva corrosiva?
- Corrosiva e abundante. Escorre pela cara, entra no ouvido e arde. Descolore minha barba, minhas camisas. Arde na cara. No queixo.
- Hum.
- Você não era assim, Maria Paula. Você parece um clone.
- Não inventa, Jorge.
- Na cama, roça o calcanhar na minha canela até doer bem. Assistindo filme, fica fazendo carinho circular na minha mão e meia hora depois tá um buraco.
- Hum.
- Ontem, durante a transa, você disse " isto, isto, isto..."
- E aí, quê que tem?
- Sete vezes. Daí disse " assim, assim, assim..."
- Sete vezes também?
- Nem seis nem oito, Maria Paula. Sete vezes exatas.
- Você conta, Jorge?
- Conto. E na hora do orgasmo, você veio com "que prazer, filho da puta, que prazer, filho da puta..." e me aborreci, e então no terceiro levantei dali pra ouvir o sétimo "que prazer, filho da puta" já no banho.
- Nem reparei, querido.
- Pois é, Maria Paula. Nem reparou, é claro. E ainda me chama de filho da puta.
- Não, amor. Esta vírgula não tem. É o prazer que é filho da puta. Não você!
- Sei.
- Verdade, querido.
- Sei não, Maria Paula. Você parece um drone.
- Clone, amor.
- Isso. Clone.
- Queres te separar de mim, Jorge?
- Não, querida. Mas vou ficar de olho.
- Ai, amor. Que bom. Então me dá um beijo.
- Tá. Um beijo com pouca língua, combinado? Olha lá, hein?
- Tá. Hummm...
- Parius, Maria Paula. Você lambeu meu nariz.
- Não resisti, pirulitão. Tu é muito gostoso.
- Tô de olho em você, Maria Paula. Você não era assim. Parece até um fake people.
- Fake news, amor.
- Não, Maria Paula. Li uma reportagem que diz que depois das fake news, viriam as fake peoples. Tô de olho em você.
- Jorge.
- Que?
- Escuta só.
- Manda.
- Te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo, te amo.
- Bah. Tô de olho em você.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

ME BEIJA

Eles tavam na cama e o troço tava incendiando.

- Gostoso.
- Hum...putinha.
- Tua putinha.
- Hum...delícia. Vagabunda.
- Sim... tua vagabunda.
- Tesão. Bagaceira safada.
- Hum...isto...tua safada.
- Não!
- Não o que?
- Não é minha nada! É uma putinha solta no mundo. Um traste. Uma vagaba que não vale o que come.
- Não senhor! Sou tua sim. Toda tua.
- Não é!
- Sou sim!
- Não é não.
- Vamos ter de tirar isso no par ou ímpar, então.
- Sério?
- Sério. Par ou ímpar?
- Par.
- Ímpar. Ganhei. Hoje vou ser a TUA putinha. Hoje quem vai sentir tesão sou eu.
- Tá.
- Amanhã a gente troca.
- Hum...beleza.
- Gostoso. Me beija.
- Beijo sim, minha putinha.
- Hum...delícia.
- Cachorra.
- Cachorra, não.
- Ah tá. Minha cachorra.
- Também não!
- Ué! Cavala, então.
- Não.
- Cabrita?...
- Cabrita muito menos.
- Mas por que???
- Os tempos mudaram, querido. Os animais nada têm a ver com o romance dos humanos.
- Isso é bobagem!
- Não é não.
- É bobagem sim. Vamos no par ou ímpar.
- Tá.
- Quero par.
- Ímpar.
- Ganhei.
- Tá.
- Gafanhota.
- hum...delícia.
- Lesma.
- Gostoso.
- Açucena.
- Opa, opa!
- Opa, opa o quê!!??
- Açucena não é animal.
- Claro que é!
- Não é não. Açucena é flor.
- Que nada. Açucena é uma ave do nordeste. Habita o Baixo Maranhão. É uma ave promíscua que dá pra tudo que é marreco e ganso da região.
- Seria assim, uma ave... putinha?
- Sim....uma ave bem putinha.
- Então sou TUA açucena.
- Putz. É mesmo. Bueno. Me beija, então, minha açucena.
- Não.
- Por?
- Vou ali pegar o dicionário pra ver esse açucena.
- Vamos apostar?
- Hum...valendo o que?
- ...quem sabe...alguma parte do corpo?
- Sai pra lá! Com essa você não me pega mais.
- Ah tá. Então esquece...e me beija.
- Tá...hum... gostoso.
- Dromedária.
- Que delícia...
- Centopeia louca.
- Não
- Não o quê, agora?
- Louca, não.
- Bah...então tá. Me beija.
- Hummm....

terça-feira, 23 de outubro de 2018

ANEXOS

Aceitarei com humildade todos os anexos que me envieis.

Inclusive, em cima das duplicatas que por engano me mandeis, orarei com fervor.

Me manterei augusto mesmo que o anexo venha no grupo e também no individual e, sem sombra de dúvida, encaminharei não só para vinte, como sugeris, mas para quarenta, sessenta e até mesmo oitenta contatos e não me sentirei magoado por, vez por outra, ser mandado tomar no cu, e com razão, devido a esta minha impertinência, mas comunico, à guiza de curiosidade que, quando isto acontece, volto a encaminhar o mesmo anexo para esta pessoa malcriada tantas e tantas vezes que acabo por forçar a mesma a me bloquear e até mesmo me virar o rosto na avenida. É claro que, mais tarde, através de outro perfil, me desculpo cortesmente e rogo que o amiguete volte a me aceitar em sua nobre lista e é então, neste momento, que lhe brindo com meu arsenal de alegres e obscenas figurinhas .


Compartilharei com fúria todo anexo que me pedis compartilhar, mesmo que isto me faça arriscar que a menina mais bonita do Facebook me ache um chatolas e deixe de aceitar qualquer convite que venha a lhe fazer.

Assinarei toda petição e toda moção de repúdio que me chegar em mãos e quanto aos  abaixo assinados, não tenhais a mais mínima dúvida que serão firmados com alma vibrante e olhar vitrificado por este punho que agora escreve.

Não esmoreçais.

Estou aqui recebendo anexos até com notícias velhas de setembro e, mesmo assim, afirmo que é com alegria renovada iluminando meu coração que voltarei a lê-los e prometo propagá-los por todos os putos recantos deste caralho de mundo virtual.

Desde já comunico à grande família virtual e virtuosa que aceitarei com júbilo e denodo a todos anexos.

Absolutamente todos.

Não temais. Açoita-te confiante.

domingo, 21 de outubro de 2018

APRIMORANDO A PERCEPÇÃO

Dia destes estamos no carro, minha mãe e eu, e toca um samba do Chico e quando termina a canção, Mamis diz que não é bonita.

Falei a ela que algumas coisas na vida estão escondidas e necessitamos dar uma segunda e até uma terceira olhada sobre elas para que as compreendamos.

É um pouco torto este samba, é bom que se diga.

"Torto" é uma expressão utilizada por músicos pra denominar tanto a melodia, quanto a harmonia, quando estas são dissonantes.

Se a coisa for torta, é importante ouvir mais vezes para bem entender.

O samba a que me refiro se chama DURA NA QUEDA e faz parte do CD CARIOCA, o qual pra mim se trata de uma obra antológica criada em tempos modernos. Coisa muito rara.

A letra tem um refrão assim.

"O sol ensolarará a estrada dela
A lua alumiará o mar
A vida é bela
O sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas, as ondas."

As primeiras duas frases acho fantásticas.

ENSOLARARÁ é uma brincadeira em cima do larará que é das primeiras sílabas que se usa pra cantarolar qualquer melodia. O corretor diz que está errado, mas é assim mesmo que se flexiona o verbo ensolarar.

ALUALUMIARÁOMAR parece uma língua africana. Macio.

Não é?

A partir daquele momento em que minha mãe condenou a canção voltei a colocar pra tocar toda vez que ela entra no carro. Na terceira audição, como eu desconfiava, já havia assimilado. Além disso, o balanço é malandro, e tem um arranjo de sopros vigoroso e ensolarado como a canção.

Hoje, estamos no trânsito novamente e, a pedido dela, boto o samba num volume bom. No momento em que entram os metais, ela lembra dos bailes do Petrópole que apresentavam orquestras que vinham do centro do país.

E assim vamos por aí , tentando alargar nossa percepção. Assim, quem sabe, melhoramos um pouco nossa reflexão. E aprimoramos nossa alma.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

ZUMBIS

A característica principal do zumbi adorador da besta é o cérebro que funciona em constante curto circuito.

Este fenômeno elétrico faz com que o zumbi acredite e propague incansavelmente fake news, mesmo quando desmentidas.

Em contrapartida, quando a notícia é verdadeira, muitas vezes o zumbi nega.

Pode ser até mesmo um vídeo sem edições. Não tem jeito. O adorador da besta assiste e faz um não com a cabeça, enquanto raspa o pé no chão.

Neste momento, se você estiver perto, pode escutar o som das faíscas que emanam do cerebelo deste ser, assim como vai também sentir o cheiro dos miolos chamuscados.

Aqui vai uma informação, à guiza de curiosidade, que diz que neste átimo, em que as descargas são mais fortes, você pode jogar longe um biscoito ou até mesmo uma pequena bola e o zumbi corre, expressando extrema felicidade, para buscar e trazer de volta até você.

Está surgindo agora um outro tipo de zumbi transformado.

Este indivíduo só se comunica através de memes. Possui um arsenal de memes interminável que o torna sempre vitorioso em toda e qualquer discussão. Não adianta você tentar qualquer argumento. O meme que o zumbi imediatamente envia como resposta sempre lacra. Neste instante em que o adorador da besta se certifica da vitória ele manda um cordial abraço e assim simula um ambiente ameno, ao mesmo tempo que demonstra ser possuidor de generosa civilidade.

Tem o zumbi copy/paste, que manda um texto que denuncia cotas, lei rouanetzel, direitos humanos, pedofilia das escolas, nazismo de esquerda, gayzismo das artes com fim de gayzear crianças e outras chorumelas zumbísticas. O texto é sempre longo, superficial e leviano. É um meticuloso amontoado de memes que deixa o zumbi felizinho no momento em que ele dá o enter e te faz ler estupidezes.

E por fim, tem ainda o zumbi kkk.

O zumbi kkk usa o kkk em todas as frases. Este tipo de indivíduo algumas vezes dobra e até mesmo triplica o número de kkks, dependendo do acaloramento da discussão. Se você utilizar um argumento que coloque este espécime num beco sem saída, ele pode lançar mão de trinta a quarenta kkks. Muitas vezes o zumbi kkk usa kkk no começo e no fim da sentença. Já presenciei o zumbi kkk utilizando apenas o kkk em uma frase de duas linhas.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

GASTRITE CEREBRAL

Hoje lembrei de Maria Cristina Bogossian, uma amiga carioca, que dizia que toda manhã abria o jornal O Globo só pra se irritar.

Pois eu também gosto de me irritar.

E é por isto que, de vez em quando, entro na página da Terra Plana.

Ali, você pode encontrar o supra sumo da imbecilidade humana.

Tem alguns diálogos muito engraçados. Os argumentos são estapafúrdios ao cubo e vou lendo tudo aquilo pra regar minha gastrite cerebral.

Chega num ponto, o cume da irritação, que começo a pensar que quem acredita em terra plana tinha de pegar cana.

Na hora.

- Vem cá. Me diz uma coisa. Tu acredita em terra plana?
- Acredito.
- Sério?
- Sim. E você certamente deve pensar que a terra é redonda, não é?
- Claro! Redonda como uma bola de boliche sem os furos, pô!
- Então prove.
- Que??!!
- Me prove então que a terra é redonda.
- Bah. Olha só! Vai tomar no teu cu. Tá preso, véio. Nestor! Algema esse mala!

Outra coisa. Sabe estes que dizem que o nazismo é de esquerda e inclusive entraram na página da embaixada alemã pra corrigir o vídeo que os caras fizeram?

Sabe estes?

Pois dia destes, num post, vi um dos adoradores da besta escrever uma lauda imensa provando que o nazismo é de esquerda.

Caralhas! Deviam chamar uma sumidade destas pra reescrever toda a história da humanidade. Não é não?

Eu acho que um cara destes devia pegar uma cana de, pelo menos, dez anos.

E estes que falam sempre sobre a lei Rouanet? Estes que falam sem nem saber do que se trata? Hein? Que tal estes que tem até meme pronto com a foto do Chico? Não merecem cadeia? Acho que a pena justa pra tal tipo de toupeira seria meia prisão perpétua. Meia perpetuinha ficava de bom tamanho. Parius.

E os que falam sobre os direitos humanos? Hein, hein, hein? Aqueles que dizem que direitos humanos protegem bandidos? Que que se faz com um tipo destes? Eu sei. Prisão perpétua inteira e só pode beber fanta uva.

E aqueles que condenam as cotas e tampouco sabem do que se trata? Não sabem o porquê da criação das cotas. Não sabem a quem contemplam. Não sabem como funciona. Estes que emitem opinião sem conhecer o mínimo sobre o assunto? Heiiiiiinnnnnnnn? E logo em seguida estufam o peito pra falar a palavra “meritocracia”??!!! Me fala. Heiiiiiiinnnnnnnnnnnnnnnn!!!!??? O que que a gente faz com este protozoário?

– NESTOR!!! TRAZ A CORDA QUE ESTA MALA MERITOCRÁTICA A GENTE VAI ENFORCAR UM POUCO.

E por fim....aaaaaahhhhhhhhhhhhhhh.....Me traz sete omeprazóis e quinze rivotris que a gastrite tá comendo minhas entranhas por causa destes asnos!!!! Estes asnos desidratados que dizem que há comunismo pelo país. Estes jumentos alucinados que proclamam que Lula é comunista e que seu plano é transformar o Brasil numa Venezuela. Heiiiiinnnnnn!!!!????? O que você acha? Responde!!! O que se faz com estes treponemas? Pois estes eu sei muito bem do que precisam.

-NESTOR!!! PASSA MANTEIGA NO SUJEITO E BOTA NA TORRADEIRA!!! DEPOIS DE BEM TOSTADO, CREMA!!! DEPOIS DE CREMAR, ENTERRA!!! NÃO DÁ PRA FACILITAR COM ESTE TIPO DE MULA!!!

O historiador Fernando Horta, dia destes sintetizou muito bem:

"Estamos há quatro anos sem pensar direito em nossas vidas, carreiras e etc.

Tudo porque alguns milionários cansaram de brincar de democracia e pagaram para um bando de desocupados espalhar por aí o velho medo do comunismo."

domingo, 23 de setembro de 2018

A NOITE DO SEU FRANCISCO

Estávamos bebendo e brindando uma linda noite e o assunto caiu no Chico, no concerto que ele fez em Porto Alegre, e ela disse que não vai esperar que o Chico venha aqui em outro lançamento, ela disse que vai atrás, que vai viajar pra ver o Chico novamente em outro lugar, em qualquer lugar, pelo menos mais uma vez e lhe contei que, no Araújo lotado, me debulhei em lágrimas durante todo o show do cara, foi um convite que a mana me fez, que é uma pessoa gigante que me orgulha tanto, minha colega de copo e conversa a mana, e bebemos antes, durante e depois, gigante que ela é, gigante como ele, o Seu Francisco que me acompanha faz meio século, Seu Francisco que me dá norte e referência, e chorei que nem bezerro pela beleza que é aquilo tudo, pelas novas canções que parecem clássicos e pelas velhas que caem como uma luva nestes novos e pontudos tempos, chorei no Sabiá que diz que “vou voltar” e voltar é sempre bom, pois eu voltei, depois de perambular um pouco por aí, voltei pra quem sabe fechar a tampa por estas cinzentas bandas sulistas e chorei por notar um fio de fragilidade na voz daquele homem que já passa dos setenta e pra mim que agora estou vivendo a juventude da velhice nos meus sessenta, estes momentos começam a ganhar ares de despedida, e chorei também minha raiva por ver a injustiça medrando por todo canto, por descobrir que existe tanta perversidade misturada a tanta ignorância de muitas pessoas que acham que a verdade é uma palavra que está fora de moda, pessoas de alma danificada, e chorei porque sabia que havia gente importante para mim naquelas três noites de música genial e que depois comentaríamos o fantástico evento e celebraríamos a vida, a nossa imensa sorte, e agora lhes conto que derrubei um rio de lágrimas por tudo isto, lhes conto que no fim desta noite, embriagado, cheguei em casa aos tropeções, fui ao berço e dormi completamente vazio de tudo, não sonhei nadinha, e nem precisava, pois depois de se assistir a Seu Francisco tenho certeza que ninguém carece de sonhos, uma noite rara que foi, destas noites em que a vida parece normal e bela.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O CARALHO, PRA QUEM NÃO SABE

é a palavra com que se denominava a pequena cesta que se encontrava no alto dos mastros das caravelas, de onde os vigias perscrutavam o horizonte em busca de sinais de terra.

O CARALHO, dada a sua situação numa área de muita instabilidade (no alto do mastro) era onde se manifestava com maior intensidade o rolamento ou movimento lateral de um barco.

Também era considerado um lugar de castigo para aqueles marinheiros que cometiam alguma infração a bordo.

O castigado era enviado para cumprir horas e até dias inteiros no CARALHO e quando descia, estava tão enjoado que se mantinha tranquilo por um bom par de dias. Daí surgiu a expressão:

- Vai pro caralho!

A ponta do mastro fazia parte do CARALHO e esta possuía forma cilíndrica. Não se pode ter certeza, mas talvez por esta razão, o CARALHO passou a ser relacionado ao órgão sexual masculino.

O termo encontra correspondente no castelhano carajo, no galego carallo, e no catalão carall. Em Madrid, se você entrar num café e pedir um carajillo, eles te servem café com conhaque e o motivo nunca descobri.

Faz já um bom tempo, minha mãe de tanto nos ouvir falar, e sem imaginar do que se tratava, resolveu incorporar a palavra a seu repertório. Num domingo de almoço com familiares mandou.


- Bah. Esta lasanha tá do caralho.

As tias ficaram incrédulas.
Marilice Corona estava passando uns dias no Rio de Janeiro e fomos visitar o Forte de Copacabana. Ali no forte se come muito bem e barato. Servem uma salada mista com presunto Parma e só isto já é uma refeição. Depois do almoço fomos ver o mar desde a grande platibanda, onde há canhões. Quando retornávamos, conversando sobre a beleza da paisagem, à nossa frente emergiu das escadarias uma menina lindinha, toda arrumada e de bolsa à tiracolo. Teria nove, dez anos. Quando se deparou com o oceano magnífico, a fisionomia se iluminou, e com os olhos arregalados e voz fininha, num forte sotaque carioca, proferiu com clareza a palavra que não podia ser outra.
- Caralho!!!

Nestes tempos felpudos e farpantes, quando andamos puteando e reputeando sem parar, já é usual utilizar até no feminino. No tratamento de minha gastrite cerebral, falar palavrões é importante medicina e de vez em quando sai.

- Para com esta caralha aê, pô!

E também já virou verbo.

DESCARALHAR. Significa desajustar, esculhambar, perder o prumo.

Exemplo. “Esta extrema direita é formada apenas por patetas, e por isto é vital evitar-se que cheguem a qualquer tipo de poder, sob pena do país descaralhar de vez.”

Meu filho tinha uns dois anos quando entrou pela primeira vez numa lotação. No momento em que o o veículo se pôs em marcha e ganhou velocidade, todos puderam ouvir sua vozinha entusiasmada.


- Bah, vó! É du calalou.

Baita assunto, né?

É o que tem,
é o que tem,
é o que tem,
é o que tem,
é o que tem meu bem.

sábado, 25 de agosto de 2018

UMA NOITE DE SEGUNDA

É noite de segunda feira e me sinto muito cansado.

Sento no sofá, pra quem sabe assistir a um pouco de TV e a meu lado estão meus dois cupinchas, Tato e Mana, com seus seis ou sete anos de idade.

Havíamos jantado, a novela tinha terminado e começa um filme já com uma destas perseguições que os americanos pensam que todo mundo gosta e até que estão certos, não é mesmo?


Um carro cheio de homens fortemente armados está no encalço de uma moto onde vão dois encapacetados.

A bala comendo,

e sobe viaduto,

e desce viaduto,

e voa por cima de carro e escapa de caminhão que capota e muda de pista, aquela coisa que dá uma canseira de imaginar tanta produção pra repetir um jargão tão batido,

e nós três acompanhando o pandemônio com atenção mediana, quando a moto avança por uma região de fábricas e de repente consegue dar um godot nos perseguintes, entrando num galpão.

Então, um dos motociclistas salta da moto e, num movimento vigoroso, cerra a porta de metal e os dois retiram os capacetes revelando que se trata de um casal, um casal jovem, bonito, com feições de expressão aliviada, afinal estavam salvos, haviam escapado, e seguido a isto começam a se beijar, o homem leva a mulher até uma parede e o amasso ganha sofreguidão e o cara levanta a blusa da mulher e liberta peitos generosos e não posso acreditar que toda aquela violência, num átimo, dá uma guinada fantástica e se transforma numa cena libidinosa e impura, e quando tive a certeza de que o sujeito ia mesmo começar a chupar aqueles peitos, aos gritos, levanto do sofá e inicio uma vertiginosa investida à televisão pra desligar aquela porra, e essa corrida de apenas dois metros me pareceu levar uma eternidade, esse movimento em câmera lenta com o intuito de apertar o botão e eliminar a imagem foi angustiante e com a TV por fim desligada, caminho meio sem jeito pela casa, gargalhando alto e os dois me seguem e balbucio palavras sem nexo pra disfarçar a vergonha e eles me copiam, e entrando no quarto, ao pé da cama dou meia volta, abro os braços e ainda tomado pelas risadas e gritos me deixo cair vencido, de costas, esparramado no macio do colchão e vejo que meus dois cúmplices, cada um por sua vez, imitam minha performance com perfeição e ficamos deitados, observando o branco do teto ser cortado por pequenas e coloridas gotículas de felicidade que espocavam aqui e ali nos fazendo divertida companhia naquela noite de segunda que agora lembro bem, era segunda, tenho certeza, me sentia cansado e estávamos na sala, em frente à TV numa época em que o controle remoto ainda não era utensílio corriqueiro e por isto tanta correria e é também por isto que agora lhes conto.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

cheiros do stf

Fachin tem cheiro de polvilho antisséptico Granado.

Barroso tem cheiro de naftalina.

Celso de Mello tem cheiro de hipoglós.

Gilmar tem cheiro de couro molhado.

Carmen Lúcia tem cheiro de mofo.

Dias Toffoli tem cheiro de chinelo Rider.

Lewandowski tem cheiro de um peixe chamado traíra.

Marco Aurélio tem cheiro de cachimbo velho.

Alexandre de Moraes tem cheiro de cera.

Luis Fux tem cheiro de brilhantina.

Rosa Weber tem cheiro de laquê.

Nunca tivemos tanto contato com juízes e no entanto nunca desconfiamos tanto da justiça.

Tudo fede no reino da Dinamarca.

terça-feira, 24 de julho de 2018

COSA DE CRIANÇA

Tinha eu uns quatro ou cinco anos quando começou a frequentar nossa casa um colega do meu pai.

Ia com a mulher, os filhos, a mãe e a avó e fazia visitas um tanto compridas pro gosto de nossa família.

O cara falava muito sobre uma casa que possuía num bairro afastado, à beira do Guaíba e sempre nos convidava pra visitar.

O sujeito era meio balaqueiro e meus pais devem ter comentado que a casa deveria ser uma maloca ou algo assim.

Depois de muita insistência, meus pais decidiram finalmente empreender a visita.

Tenho vaga lembrança daquele dia. Fazia muito calor. Chegamos perto do meio dia.

Conta-se que eu, um menino de apartamento, enlouqueci com o espaço. Tirei a camisa e saí correndo pelo pátio, mexendo com galinhas e guaipecas.

Conta-se também que as duas famílias ainda se cumprimentavam, quando venho dos fundos da casa em desabalada carreira, todo suado, invado a sala e grito a todos pulmões.

- E é uma maloca mesmo!!!

Não se compadeçam.

Um tempo depois, se descobriu que o cara tinha ligação com os milicos. Era um dos delatores da faculdade.

sábado, 14 de julho de 2018

AS FRASES QUE OUVI NESTES 60 ANOS

Eu não disse?

Agora não adianta.

Pé descalço? Depois se gripa e não sabe o porquê.

Tu é muito fofo.

Tu é muito escroto.

É pra hoje isso aí?

Chega mais pra lá.

Gasta o que tem e o que não tem.

Passa hipoglós nesse troço.

Mais pra baixo.

Tá fora.

Tá dentro mas não causa sensação.

Vai começar?

Come isso logo de uma vez!

Bah. Que asa, heiin?

Fica aí, como sempre, empurrando tudo com a barriga.

Ai, como tu é.

Oi, né? Nem cumprimenta!?

Para um pouco de beber.

Marca, porra!!!

Passa, porra!!!

Tu é bem assim, mesmo.

Se continuar assim desse jeito eu vou mimbora.

Te agasalha.

Não volta tarde.

Banho que é bom, nada!

Cozinha não é lugar de criança

Tu tem prazer de incomodar.

Tem que ser tudo como tu quer.

Tão inteligente pra algumas coisas e tão burro pra outras.

Deixa que eu espremo isso aí.

De novo.

De novo?

Para.

Aqui não.

Agora não.

Ainda não.

Assim não.

Não.

Claro que não.

Jamais!

Isto e a cara de Deus verás nunca.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

RENATINHA

Já faz bem uns quinze anos que entrei no teatro São Pedro e no palco estavam o saudoso Geraldo Flach e Ivan Lins.

Naquele momento, eu padecia de extrema melancolia. Estava fazendo a ponte para o Rio de Janeiro e via como incerta a possibilidade de ficar por lá. Profissionalmente, era imperativo sentar praça na cidade maravilhosa.

Além do mais, havia conhecido alguém por aquelas bandas e se podia dizer que este alguém não estava na palma de minha mão.

Então, o desassossego ia me corroendo enquanto assistia àquele concerto tão bonito, e num determinado instante Ivan pegou a palavra e contou que sempre teve vontade de fazer uma parceria com Chico Buarque e que nunca tinha rolado.

Contou também que Chico, num encontro casual, havia lhe prometido que fariam uma canção juntos a partir do momento em que Ivan se tornasse avô. Ivan tornou-se avô e Chico enviou-lhe uma letra. Ivan compôs a melodia e batizaram de RENATA MARIA.

Ivan então cantou, em primeira mão, a Renatinha, prum teatro São Pedro lotado e emocionado.

Que puta canção!

É uma canção masculina, no que pode haver de mais puro e belo nesta palavra.

Muitas vezes nos deparamos com alguém que, por sua beleza, ou seu brilho, ou seu carisma, nos deixa tão embasbacados que não temos a mínima condição ou coragem de entabular um contato.

A chance se vai, jamais volta a se repetir e o fato vira apenas uma pedra na memória, que vez por outra damos uma polidinha.

A letra fantástica fala disso e tem um verso que nunca para de me assombrar.

“Dia após dia na praia, com olhos vazados de já não a ver.
Quieto como um pescador a juntar seus anzóis,
ou como algum salva-vidas no banco dos réus.”

Não é o must?

Talvez eu esteja mentindo e tenha sido o inverso. Pode ser que Ivan tenha enviado a música pro Chico e este fez a letra em cima, o que é uma tarefa muito difícil. Não sei ao certo. De toda forma, os dois são gênios.

Por força dos direitos autorais, alguns vídeos sumiram do YouTube.

Havia um vídeo desta canção que começava com a introdução de FUTUROS AMANTES como fundo, e a voz do Chico, em off, falando que às vezes sai pra caminhar e as pessoas acham que ele está fazendo footing, mas na verdade ele caminha pra encontrar soluções pra suas letras. Chico ia contando estas coisas e várias imagens ensolaradas da cidade maravilhosa iam passando até entrar a canção propriamente dita. Num determinado momento, eu podia jurar que uma menina jogando frescobol era a RENATINHA.

Putz.

Do outro mundo!

Renata Maria faz parte do cd CARIOCA e acho que este disco é uma coisa muito séria. Penso que é um disco antológico feito na era moderna. Coisa rara. Canções fantásticas e arranjos de primeira linha. Transborda.

sábado, 2 de junho de 2018

HOMÚNCULO

O pequeno sujeito está no salão íntimo, em frente ao espelho, ajeitando a gravata, alinhando o terno. Repara que tem a fisionomia desfigurada, e não poderia ser de outra forma, afinal de contas a causa de tudo isto é a impertinência desta gente que grita por alguns poucos centavos a mais que a gasolina e o óleo tiveram nestes últimos dias. "Chora por tão pouco, esta gente chata", vai pensando o homem que alguns chamam de presidente.

Michel, que é assim que a mãe resolveu batizar, sente-se esgotado, mas acredita que obteve sucesso para resolver esta pendenga toda. Enquanto limpa as unhas com a chave do cofre, experimenta um certo alívio e põe-se inclusive a cantarolar uma melodia simples.

Nota então que está sendo observado pelos assessores, e estes carregam expressões de espanto.

Esfregando as mãos, o pequeno homem gira sobre o corpo e fingindo simpatia, abre um sorriso. Pergunta.

- Que houve pessoal? Não posso cantar? Não posso me sentir satisfeito com o desenlace dos fatos?

Como resposta, apenas o silêncio.

- Que que há minha gente? Fala, Aurélio!!! Por que esta cara de bezerro desmamado?

O assessor responde com voz vacilante.

- É que... essa música, meu senhor....
- O que que tem?
- É que...
- Fala logo de uma vez? O que é que tem a porra dessa música, Aurélio!?

Aurélio despejou tudo como uma metralhadora.

- Esta música que o Sr está entoando é o jingle do Lula, Senhor Presidente. Pronto, falei!!

O desprezível homúnculo, tomado pela ira, se atira a pontapés e socos às paredes e à mobília governamental, gritando que "matem aquele corneteiro filho duma puta, tragam-me a cabeça daquele corno infeliz" e foi contido a custo pelos asseclas que com presteza conduziram aquele corpo franzino e empertigado até o sofá mais próximo e lhe administraram a bombinha de asma, pois a tosse sobreveio com tamanho vigor do fundo dos brônquios irritados que sua pele já ia adquirindo uma tonalidade violeta.

Passado o repentino acesso, o que sobrou foi uma dor enjoada no peito do pé, fato que obrigou o ignóbil espécime a manquitolar o dia inteiro pelo palácio, assim como  também  forçou-o a mentir com desfaçatez aos curiosos perguntões, dizendo que aquilo não era nada, que não passava de uma simples lesão causada pelo frenesi do badminton.


PS. Pra quem não sabe, há um trompetista que anda infernizando o planalto e as matérias da Globo. Toca o jingle de Lula e grita a todos pulmões. GOLPISTA!!!

sexta-feira, 1 de junho de 2018

BIRD

Bedeu desceu da Bike e foi o tempo certo de tirar o trompete da mochila e começar a entoar o LULA LÁ. Lídia já estava reportando ao microfone quando ouviu as primeiras notas estridentes do instrumento dourado.

Aquilo andava sendo uma rotina. As matérias em frente ao Planalto agora tinham sempre como fundo esta trilha e Lídia, depois do primeiro sobressalto, enveredou o texto, surpreendendo a equipe, e quase aos berros foi locutando que "músicos um tanto desafinados estão tocando neste momento para o hasteamento da bandeira". Bedeu captou a chacota e como um relâmpago, num andamento brutal, cuspiu Donna Lee, de Charlie Parker e se sabe que quando Charlie está no ar, prótons e elétrons se movimentam e assim as moléculas se desordenam e os mortais sentem imensa dificuldade para pensar, quanto mais entabular alguma frase com sentido. Apesar de atrapalhada, a moça deixou o microfone na segurança das mãos de seu ajudante e se dirigiu a Bedeu a passos largos.


- Pô Bedeu! Me dá uma trégua, porra!
- Que conversa é essa de hasteamento? Tás de fake news?
- Era só um teste, cara. A matéria faço de tarde...mas você me tira do sério...vai tomar no cu, Bedeu.
- Me desculpe, Lídia. Mas tô fazendo minha parte. Tô deixando minha marca pequena pra ver se a gente restitui um pouco de nossa dignidade, mas me fala... gostou do Bird que toquei?
- Nem sei. Nao conseguia ouvir nem meus pensamentos.
- Música boa é assim mesmo. Pra sacudir tudo aquilo que está paralisado.
- Hum.
- Lídia.
- Que?
- Que horas você dá a matéria?
- Não digo.

Lídia sabia que era tarefa impossível esconder-se de Bedeu. Ficou observando o músico que, com cuidado, repunha o trompete na mochila. Reparou no sorriso matreiro que não se desmanchava nunca. Aquela boca sabia tocar e mais que tocar, sabia também beijar e otras cositas mas.

Ele insistiu.

- Que horas?
- Pelas quatorze, seu chato.
- Tá. Nos vemos por esta hora.
- Te cuida com esta bike.
- Pode deixar. Ah...Lídia.
- Fala.
- Você está iluminada hoje.
- Você acha?
- Acho sim.
- Obrigada.
- Este cabelo ficou muito bom.
- Você reparou?
- Reparei. Tás linda.

Os dois sentiram o vácuo que se formou naquele instante. Uma vertigem feito Charlie Parker. Então beijaram um beijo rápido e lambuzado sem fazer caso da equipe curiosa que os observava . Bedeu pedalou dali vigorosamente. Inundado pelo sol estonteante da capital, podia jurar, e não conseguia crer, que estavam nascendo milhares de pequeninas flores naquele imenso gramado tão pisoteado pelo ódio e o desespero. Foi neste momento que o músico desconfiou que por ali também medrava a esperança e este pensamento o fez virar o corpo para poder enxergar Lídia, que apesar da considerável distância, ainda  acompanhava sua trajetória e acenava.

domingo, 20 de maio de 2018

IREI AO CARNÁ

Este ano resolvi. Vou participar dos festejos de Momo. Irei ao carnaval.

Seguido a isso, não perdi tempo.

Já comprei uma mesa para duas noites num importante clube da cidade.

Me custou os olhos da cara. Como brinde, ganho uma garrafa de uísque importado e um tubo de lança perfume para jogar nas pessoas.

Me parece muito pouco, pelo montante que paguei. Não tanto pela bebida, mas lança perfume é coisa que vai rápido. A gente, no meia da folia, fica animado e joga todo o lança nas pessoas que passam. Então comprei uma bisnaga de cor verde. Bonita. Quando o lança terminar, pego a bisnaga e encho de água no banheiro e volto pro salão pra molhar os foliões.

Se a bisnaga saiu barata, não posso dizer o mesmo do confete e da serpentina. Caríssimos.

A solução foi mergulhar jornal na tinta, deixar uma noite inteira, para ganhar bastante cor, deixar secar e depois picotar todo. Minha mãe me ajudou nessa atividade trabalhosa para manufaturar o que batizamos de confete genérico. Mas valeu a pena. Tenho vinte sacos grandes para usar nas duas noites.

Tentamos também elaborar uma serpentina caseira, mas não tivemos igual sucesso. Usamos, da mesma forma, o jornal tintado, recortamos finas tiras e as ligamos com cola de madeira e depois durex, quando esta terminou. Resulta que após ser feito meticulosamente o rolinho, experimentamos realizar alguns lançamentos na sala e podemos confessar nosso fracasso. A serpentina caseira não alcança um terço da distância da serpentina convencional. Além disso, ora se parte, ora gruda nas mãos, uma merda viu? Vou contar pra vocês.

Por conta disso comprei dez rolos de serpentina padrão. Muito pouco, eu sei. O remédio é utilizar cinco em cada noite. Calculo que, com boa disciplina, jogarei uma a cada hora, e assim este pequeno problema também será sanado.

Agora, capítulo fantasia.

Sempre gostei do Zorro e não poderia ser outra minha escolha. Minha mãe desde ontem está em sua máquina Singer confeccionando minha indumentária.

Para custo zero, buscou no sótão o fraque que pertenceu a tio Danúbio. O tecido negro servirá muito bem a meu propósito, ainda que já saiba de antemão que como o velho Danúbio era um homem pequeno, a fazenda não tem grandes dimensões e por isso terei de incorporar um Zorro de calças curtas.

Os tempos são bicudos, mas nada que abale meu entusiasmo e animação com a data tão importante que se aproxima na qual todos podemos e devemos demonstrar nosso apego à tão rica e cívica tradição.

Por conta disso, e também por conta de minha péssima memória, estou escrevendo as letras das marchinhas em papel ofício para levar para o folguedo. Desta forma as poderei cantar com correção.

domingo, 22 de abril de 2018

50 ANOS DE 2001




É uma grande ironia.

O gigantesco avanço tecnológico destes nossos dias também serviu para nos mostrar que ainda permanecemos na barbárie.

A internet e a rede social aproximou os zumbis. Hordas de homofóbicos, machistas, xenófobos e racistas se formam por toda parte. Ganham voz. O fascismo, que hibernava, renasceu e quer eleger líderes.


As pessoas desejam retroceder no tempo.

A humanidade necessita amparo. A humanidade precisa com urgência que o monólito venha nos fazer uma visita.

O monólito?

Tá fazendo cinquenta anos que meu pai me levou ao Cine Atlas, aqui mesmo em Petrópolis, Porto Alegre, pra assistir a “2001, uma odisseia espacial.”

Tinha eu uns dez, e assim como meu pai, fiquei bastante impressionado.

O filme inicia com tribos de macacos, numa terra inóspita e árida, lutando por território e por água, quando um grupo destes se depara com o monólito.

O monólito é uma pedra negra e perfeita.

Uma forma geométrica com arestas retilíneas, um objeto completamente distinto de tudo que havia naquela paisagem conhecida por aqueles antropoides.

A película, produzida e dirigida por Stanley Kubrick, co-escrita por Kubrick e Arthur C. Clarke, baseada parcialmente no conto "The Sentinel" do próprio Clarke, simboliza este monólito como uma espécie de deus que aportou em nosso planeta para trazer racionalidade aos seres que aqui habitavam.

É espantoso o momento em que um dos símios, que teve contato com o monólito, descobre que um grande osso pode servir de arma e pela primeira vez, usa o instrumento para matar e vencer o inimigo, um macaco de uma tribo rival.

É uma cena assombrosa, que tem como trilha a não menos assombrosa, Also Sprach Zarathustra de Richard Stauss, onde o antropoide, possuído pelo frenesi do entendimento daquela vitória, lança pelos ares o grande fêmur que empunhava e a ação então corta para milhões de anos depois, quando uma grande nave viaja por um magnífico céu estrelado, e há um breve silêncio e neste momento surge em tom de baixa dinâmica a singela valsinha vienense de Johann Strauss II chamada Danúbio Azul.

Kubrick era um gênio. Usava imagens e trilhas com sentimentos completamente opostos para formar cenas definitivas.

Em resumo, a nave estava se dirigindo ao planeta Júpiter, onde havia sido detectado um gigantesco monólito e o enredo sugere que este seria um segundo contato entre a pedra negra e o homem, quando então haveria um novo salto civilizatório para a raça humana.

É o que estamos necessitando com urgência urgentíssima. Um novo salto civilizatório. Antes que destruamos tudo.

Kubrick era um visionário.

2001 continua sendo atual.

Até os ambientes e cenários não ficam devendo em nada pros filmes de ficção científica atuais.

No youtube se pode encontrar muito material sobre este filme. Muitas análises e comentários de cinéfilos e críticos sobre esta obra prima que tem diversas particularidades e curiosidades que não se notam à primeira vista.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

REFLEXOS

Existe uma frase que muito me impressiona. Diz que é do Galeano.

"A PRIMEIRA CONDIÇÃO PARA MUDAR A REALIDADE CONSISTE EM CONHECÊ-LA."

Em cima disto, tempo destes, publiquei a seguinte coisinha:

"SOU RACISTA.
SOU HOMOFÓBICO.
SOU MACHISTA.
SOU XENÓFOBO.
SOU UM CRENTE EM DEUS.

MAS TODOS OS DIAS, ATRAVÉS DA REFLEXÃO, VOU DEIXANDO DE SER UM POUQUINHO."

Algumas pessoas, distraídas, preguiçosas, ou toupeiras mesmo, não entenderam, não gostaram, me bloquearam e deram the end na amizade.

Bah! O que que se pode fazer?

Só estava chegando à conclusão de que estes preconceitos estão muito enraizados na gente. Fazem parte de nossa estrutura.

Assim como a crença num deus. É algo que está incutido. É muito difícil ser ateu. Millôr brincava com isso. "Você é ateu quando está muito bem de saúde" ou "Você consegue ser ateu até o momento em que dá uma pane no avião".

De uns tempos pra cá começo a sentir desconfiança por pessoas que utilizam muito a palavra "deus". Nestes novos tempos de perversidade e ignorância é assombroso assistir tantas pessoas gritando seu ódio aos quatro ventos e citarem deus ao mesmo tempo. Pessoas que são preconceituosas em nome de deus. Pessoas que vibram com a tortura e entoam salmos. É bem assustador.

Existe um diálogo de Saramago que se tornou famoso.

Perguntou-se a José Saramago:

– Como podem homens sem Deus serem bons?

Sua resposta foi:

– Como podem homens com Deus serem tão maus?

É difícil ser ateu.

Eu tinha quatro anos e meu primo mais velho foi incumbido por minha mãe a ir à padaria. Eu quis ir junto e minha mãe não deixou. Meu primo saiu, minha mãe foi pro quarto e resolvi cometer o mais grave pecado:

DESOBEDECER.

Destranquei a porta, caminhei sozinho duas quadras, atravessei ruas e no momento em que estava entrando na padaria reparei que um menino, a uns cinco metros de distância, girava uma antena presa a um barbante. Quando cruzei a entrada senti o golpe na nuca e logo o sangue quente escorrendo pelo pescoço.

Obra de Deus, é claro.

Anos depois, num domingo, minha vó repara que dormi com a blusa do avesso, e não sei o porquê, fica nervosa com aquilo e me ordena que eu desvire a roupa, que este tipo de coisa não é boa e eu quero saber a explicação pra isto e ela grita para que eu obedeça logo que o fato pode trazer algum mal e, cético, caio na risada e pego uma bola e começo a fazer embaixadinhas, caminhando de costas, eu era craque, e me desequilibro no degrau e acabo rasgando meu dedo do pé.

Obra do Senhor. De novo. Tá sempre de olho na gurizada que desobedece.

E aí?

E agora? Me diz uma coisa.

Como é que um cara consegue ser ateu com tamanhas provas?

quarta-feira, 21 de março de 2018

NÃO TÔ SUPORTANDO AS PESSOAS

Bah. Tá brabo. 

Não tô suportando as pessoas. 

Tá uma chatura do caralho. 

E se você vier me dizer que “quanto mais conhece as pessoas, mais gosta dos animais”, vou te colocar na lista dos malas também, porque este bordão já multimega encheu o saco, pois bicho também maleteia, cachorro arranha, pula, tem bafo, minha mãe tinha uma cadela gorda que deitava aqui do lado de onde agora estou escrevendo e soltava uns peidos insuportáveis, gato solta pelo e te olha com petulância, já tive um porco da índia que tenho certeza de que cagava mais do que comia, talvez por isso aquele aspecto sempre de à beira de um ataque de nervos, as lagartixas aqui de casa são de uma antipatia atroz, sempre com aquelas caras sérias de gerente de banco que está indo resolver alguma urgência,  os sabiás idem,  começam a chatear com seu canto às quatro da matina, gordos e lustrosos da supersafra de uvas de nossa parreira, sempre carregados de empáfia com tamanha fartura e mordomia, e as baratas então, particularmente asquerosas neste verão, porém devo dizer que prefiro dar um beijo na boca de uma barata do que apertar a mão do Perondi, mas voltando aos humanos, dia destes encontrei um colega num bar, e fomos tomando uma cerveja e conversando e a cada frase, uma cutucada em minha barriga, cutucadinha, mas depois de quinze minutos de papo e dedaços, tava doendo bem e reparei que tinha surgido um buraco no lado direito da pança que dava pra ver a fígado funcionando, mas pergunto, por quê que tem de tocar no ente que tá a seu lado com tanta insistência? Uma mão no ombro de leve muito raramente não vai mal, um tapinha nas costas também é de bom gosto, mas dia destes encontrei um trio e um tinha um bafo de tigre louco do mé que vou te dizer, um barril de vinho pelo menos, cheirava a faraó embalsamado, o outro tinha um bafo de estômago, aqueles bafos de suco gástrico que tu tem de ficar respirando só no contrafluxo pra não desmaiar de repente e o terceiro, cada coisa que falava comigo, segurava meu pulso com dedos unhudos e passado algum tempo, claro que começou a dar tétano no meu braço, e depois de eu conseguir escapar dali com desculpas tolas, dirigindo, ainda podia sentir a irritação do braço machucado e penso que daqui a pouco vou me tornar um ermitão, porque to perdendo o saco também com pessoas que não te deixam falar, cheio de pessoas por aí que não te escutam, que interrompem tua frase pra contar algo que tua frase lembrou a ela e é claro que o que ela tem a dizer é muito mais interessante do que a tua história, farto de gente que não tem um ritmo respeitoso numa conversa para que todos possam se expressar, bah, as relações são difíceis, dia destes li e consegui quase entender que Nietszche disse que não suportamos nossa solidão e por isto queremos ter amigos, para que estes amigos digam o quanto legais somos, porque não acreditamos que sejamos legais e não suportamos nossa própria companhia, e Hemingway, por sua vez, dizia que bebia para suportar as pessoas, quem sabe seja esta a solução, viver sempre encharcado,  e depois disso tudo me vou daqui, paro de escrever estas merdas que estoy hasta los cojones, não estou aguentando nem minha própria presença, vou jogar um dominó comigo mesmo pra relaxar a agora neste exato momento só me deparo com uma única e exclusiva certeza: Eu não me represento.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

SAINDO DO FACEBOOK

Cansado, farto de tanta insanidade nesta rede social, resolvi dar um tempo. Com a gastrite cerebral no topo, me propus a ficar uma semana sem entrar nenhuma vez no consagrado aplicativo. Iniciei o processo com certeza absoluta de que não haveria fracasso.

Primeiro dia – Não abro o Lap e uso o telefone apenas para chamadas. Tudo na maior tranquilidade. No fim de tarde, me parece necessário relatar, noto um movimento involuntário na perna direita, algo assim como se afastasse uma bola de futebol imaginária que veio do lado oposto da calçada.

Segundo dia – Escovando os dentes pela manhã desconfio que há algo  raro em minha fisionomia. Colocando maior atenção, observo que minhas sobrancelhas estão mais ralas, assim como me invade a impressão de que os pelos do nariz estão avançando sobre os pelos do bigode. Apesar das anormalidades citadas, me mantenho sereno  em todas estas vinte e quatro horas, não acessando a rede.


Terceiro dia – Às oito da manhã, lendo o jornal, tento dar um like num artigo que me parece excelente. Pouco depois, algo parecido acontece na sala de recepção de meu médico. Sua secretária me atende muito bem e talvez até pelo fato de ser tão bonita, não resisto e dou um like com o dedo em sua lapela, gesto que deixa a menina um tanto perplexa.  Quando sento para esperar, a moça fica espichando olhos desconfiados em minha direção depois de também ter notado as sacudidelas de minha perna. Novamente, no fim do dia, obtenho sucesso na empreitada de não abrir o face, mas só consigo dormir após mergulhar dois Rivotril e um Omeprazol numa caipirinha de melancia.

Quarto dia – Verifico com pesar que minhas sobrancelhas desapareceram. No entanto, tive de comprar um barbeador destes de orifício para poder aparar os pelos do naso que se tornaram completamente rebeldes e teimam em crescer de forma desordenada. Fiz isto por três vezes durante a jornada. Na parte da noite me vem um desejo extremo de tomar Nesquik de morango e no supermercado minha perna sem sistema chuta várias prateleiras, o que faz os impertinentes empregados do estabelecimento criarem um mal estar danado no momento em que, sem ouvirem minhas explicações, me sujeitam pelos fundilhos e me expulsam do local com uma chuvarada de pontapés. Me sentindo profundamente injustiçado, em vez de misturar Nesquik ao leite, jogo o pó róseo na cachaça e ainda adiciono dois Rivo, um Ome e um Lex. Adormeço e sonho que estou casando com a presidente do STF. Desperto gritando, abraçado nos casacos do cabideiro.

Quinto dia - De manhã muito cedo, sentado no vaso, leio a penúltima página do jornal e o articulista, que é sempre de uma irresponsabilidade atroz, escreveu mais um texto idiota e tendencioso. Então tento dar diversos dislikes no jonaleco e me enfureço por não poder nem fazer isso, nem comentar aquele merderê que esse bosta escreveu, que a vontade que tenho é de mandar esse cara tomar bem no olho do cu dele e com a raiva me estrangulando, acabo mastigando algumas folhas do vespertino. Quando levanto dali, reparo que os pelos das ventas já chegam no peito. Calculo que cresceram cerca de vinte centímetros durante a noite. Observo também, com horror, que meus ovos cresceram e sua dimensão ultrapassou a do membro. O membro nunca foi lá grande coisa, mas perder em tamanho pros badalos, por favor, é uma vergonha. Resolvo tomar um banho de banheira para relaxar, mas resulta que os movimentos da perna acabam por inundar o banheiro. Na parte da noite chego a digitar metade da senha para entrar na rede, mas com extremo esforço, resisto e fecho o programa. Jogo todo o conteúdo da lata de Nesquik, dois Rivo, um Ome, um Lex e uma colher de Biotônico Fontoura dentro de um garrafão de vinho marca Sangue de Boi e ingiro a beberagem deitado na cama. Agora, as duas pernas apresentam movimentos involuntários e chutam para todos os lados. Adormeço. Sonho novamente com o casório. A noiva é a mesma. Ana Amélia Lemos é a madrinha. Desperto embaixo da cama, com o lençol enrolado no pescoço.

Sexto dia – Desisto de podar os cabelos do nariz e opto por fazer tranças. Os ovos, inacreditavelmente, ultrapassaram os joelhos. É uma coisa feia de se ver, mas a sensação do geladinho nas canelas chega a ser agradável, acredita? Tento dar likes no controle remoto da TV e com a impossibilidade, acabo jogando o troço na parede. Vejo que as pessoas começam a me chamar no MSN com insistência, certamente preocupadas com minha surpreendente ausência. Devem estar imaginando que abri vaga ou coisa parecida, mas resisto. Não respondo. Num desespero aterrador, embebo as tranças do nariz em querosene para tentar auto imolar-me, mas as pernas resolvem chutar ao mesmo tempo, o que certamente me faz cair de costas, bater a cabeça e desmaiar. Sonho com minhas núpcias novamente. A noiva continua sendo a meritíssima. Está entrando na Igreja. À sua frente, como aia, vem o Marun em formato pequeno. A meu lado esquerdo, Ana Amélia faz par de padrinhos com o Cunha, viu só? Nunca acreditei que este cara estivesse preso! e a meu lado direito, o padre levanta o capuz revelando a cara enjoada do Perondi, rindo para mim com o mesmo escárnio com que ri para as câmeras de TV. Todas estas visões tresloucadas e apavorantes me fazem despertar e no momento em que me ergo e tento empreender fuga, tropeço nas tranças e piso com gana no bago esquerdo e já no solo, tomado pela dor indescritível, balbucio queixumes e gemidos, me arrasto com dificuldade casa a fora para encontrar meu celular e voltar à rede, voltar à rede logo de uma vez, com a máxima urgência, pois este sétimo dia que se inicia, do jeito que vai a coisa, pode significar o dia do fim de minha existência, e por sorte já o localizo, ali está, agora o tenho nas mãos, parius que essa porra tá sem bateria....

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A LOUCA NOITE

Não sei como, nem onde, na noite, na louca noite, conheci uma moça que acabou gentilmente me levando a seu apartamento. Quando entramos, um simpático cão felpudinho veio nos saudar e fazer festa. Neste momento tomávamos espumante no bico, bebida que me custou uma pequena fortuna, mas estava picado pelo mosquito do crime, e quando isso acontece, deixo pra lá meu pãodurismo e abro a mão, tudo em nome do desvario que causa este pecado chamado luxúria, e agora a mulher me beija com fervor e sugere com voz murmurante que eu espere na sala, que ela vai me fazer uma pequena surpresa e dito isso,  vira as costas e some pelo corredor, me deixando na companhia de Tobi, que parece ter simpatizado demais com minha perna e, de forma impertinente, começa a coxá-la. Observo com curiosidade que seus olhos saltam pra fora com o frenesi da volúpia, não fazendo nenhum caso de que quase o chuto na tentativa de afastá-lo, e assim toda hora volta com insistência e entusiasmo à atividade inicial, e como estou completamente gambá, lhe dirijo impropérios pastosos enquanto caminho pela sala com ele pendurado em minha perna e, já me conformando com o fato, mamo o champagne já quente, enquanto fico a imaginar que tipo de coisa que esta madame estará preparando?, acho que esqueci o nome dela e quando tento lembrar sua fisionomia, esta também não me vem. Então chego a pensar que talvez seja tudo um sonho ou um delírio, quando de repente tomo um susto que me faz dar um grito ridículo e meu coração vai saindo pela boca com o gigantesco volume com o qual irrompe uma música alucinada, algo turco, árabe ou assemelhado e para meu estupor, a mulher aterrissa na sala com um salto desajeitado junto a um grito de “eiiiiaaaa” que inclusive faz Tobi esquecer o sexo que estava fazendo com minha canela para arregalar os olhos em direção à dona que começa a dançar com fúria e descubro que a surpresa que ela havia preparado era esta, a dança do ventre, e que ventre, que ilustríssimo ventre, meus senhores, uma pança do tamanho da minha, uma barriga de gelatina que joga de um lado para outro como se tivesse vida própria e tal fenômeno me faz dar um golaço na bebida para espantar o enjoo repentino, a performance me impele a afundar-me no sofá tomado que agora estou pela melancolia e desespero, vaticinando que se resolvêssemos transar com tais barrigas, teríamos de inventar uma nova posição, talvez um de costas para o outro e reparo que Tobi voltou ao ataque, putz, este cachorro é mais tarado do que eu, então extasiado, acompanho as evoluções da moça que parece gritar para que o cão cesse com a pouca vergonha, o volume da música torna as ordens inaudíveis, mas consigo ler os lábios desta mulher que realmente não reconheço, não sei se está usando mais ou menos pintura desde o momento do encontro na danceteria, não consigo saber, e Tobi, por sua vez, me deixa atônito, pois à primeira vista parece também estar dançando, mas logo caio em mim de que o bicho, na verdade, está mesmo é tendo as convulsões de um orgasmo, pois seguido a isto sofre um pequeno colapso, mas que cachorrinho mais asqueroso esse, e retorno meu olhar fascinado à bailarina, que vigorosamente vai de um canto da sala a outro, ensandecida, evolui para um lado, evolui para outro, vai pra baixo, vai pra cima, e numa destas piruetas, patina no tapete e o escorregão resulta fatal, lá se vai a mulé, coitada, desaparecendo por trás de um imenso vaso de antúrios e samambaias, e só consigo ver a cena que sobrou do desastre que são as solas dos pés da menina entre a folhagem, que dó que deu, e é aí que noto que estou por demais embriagado, pois me custa muito levantar do assento, mas a acudo como posso, na companhia de Tobi que despertou do transe e late em volta com preocupação e então, com extrema dificuldade, junto a moça do solo, e quando ela, já de pé, tentando se recompor,  sorri constrangida, dizendo que está tudo bem, que não se machucou, que eu fique tranquilo, me assombro, pois com aquele sorriso de gamela, não a reconheço mesmo, e depois de sua rápida fuga para os quartos, sentindo com irritação que Tobi volta a atacar minha panturrilha, jogo atenção às sobras da catástrofe. Há terra, folhas e cacos espalhados pelo chão, e mais. Ali, junto ao vaso despedaçado, depois de fixar o foco de meus olhos bêbados, vislumbro incrédulo um objeto que não pode ser, por favor não pode, não pode ser mas é, é uma dentadura, e com esta fatídica descoberta, saio cambaleante pelo ap, o espírito em alvoroço, as tripas em ebulição, e me revoltando definitivamente com este apêndice que me impede de caminhar pelo planeta, tomado pela ira, sujeito o cão de nome Tobi pelo cangote até bem em cima e falo com ele como se fosse gente, cara a cara, olho no olho “para com isso seu merda, antes que eu te morda com a dentadura da tua patroa" e é aí que me vem uma golfada repentina e vomito todo o taradinho que me encara com alegria, surpreso com a grande novidade, parece até ter gostado, parece querer mais, e com profundo desânimo  solto o pervertido animal para me dirigir à janela e calcular a altura deste primeiro andar, não chega a ter três metros, certamente não, é possível sim, é executável e me assomo, me jogo, me despenco no vazio e rolo feito um comando na grama que por sorte é fofa, assustando jornaleiro e porteiro, e depois de ter o cuidado de constatar que não havia sofrido fratura alguma e de que o cachorro não estava mais grudado. busco a avenida, invado um táxi e mando tocar pra casa que a noite foi por demais movida, nada mais a fazer por aí, e abro a janela pra beber o vento e sorvo com ruído o resto do espumante, sem poder acreditar que fiz tudo aquilo sem me desfazer nem por um instante da maldita e valiosa garrafa.

sábado, 27 de janeiro de 2018

OS AZARES DO JUREMIR

Faz muito tempo, abri o jornal na página de cultura e li uma crítica a um curta que havia sido exibido no festival de Gramado. Fiquei assombrado com o teor agressivo daquilo. Pensei mesmo que era algo pessoal. Um cara chamado Juremir tava arrasando com o filme de alto a baixo. Pra não sobrar nada.

No dia seguinte, Ilha das Flores, do Jorge Furtado, foi escolhido o melhor curta do festival e bombou pelo país. Além disso, ganhou outros diversos prêmios, até mesmo no exterior.


Bah. Não é azar? Nunca esqueci disso.

Um tempo depois o cara escreveu em sua coluna semanal em Zero Hora um comentário sobre a atuação do escritor Erico Verissimo durante o regime militar. Para Juremir, Erico poderia ter sido "mais valente" em suas contestações contra a censura e a tortura da época.

Deu merda. Luís Fernando não gostou e Juremir teve de sair.

Agora rolou esta parada da Tiburi com o Kintacategoria. A mulé não foi avisada que o menino ia e se negou a debater com o cara, ao qual chamou de indecente.

Acho que ela fez muito bem, pois estes moleques do MBL tem um comportamento geralmente desonesto e o que é pra ser debate geralmente se transforma num bate boca insano.

Agora mesmo revi o fato de que, na época das manifestações, Kintacategoria encontrou Ney Matogrosso numa lanchonete e pediu pra tirar uma foto com o artista que não se negou. O moleque colocou a foto na Internet com a legenda de algo como “juntos pelo impeachment”.

Ney teve de ir na justiça pra obrigar a tirar a foto da rede. Pensou que era um fã e caiu na armadilha do menininho perverso. É assim que é o modus operandi deste grupo.

Essa gente do MBL, além de toda a desonestidade que tem e dos meios violentos que utilizam na militância, ainda possuem uma particularidade mais do que sinistra. Não possuem emoções. São robôs. Nunca acusam qualquer golpe. E são inteligentes. Tergiversam, sofismam bem, e tem uma quantidade grande de dados armazenados, que cospem como metralhadoras, para desviar do assunto quando este se torna delicado.

O Requião decidiu ficar pro debate. Mais grosso que dedo destroncado, ofendeu o azarado Juremir, que já tinha ouvido da Tiburi, e ofendeu igualmente o zumbizinho, que fez cara de Ultraman que tem campo de força. Nem aí.

Muitas pessoas disseram que Kintacategoria arrasou com Requião.

Muitas pessoas disseram que Requião arrasou com o Japa.

Eu assisti ao debate e achei que aquilo era apenas uma pequena sala do atual maior manicômio das Américas, chamado Brasil.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

TÁ TUDO DOMINADO

Uma amiga me perguntou o que achei desta parada de quarta feira, pois não me viu postar nada sobre isso.

Disse a ela que já gastei tudo que eu tinha pra dizer. Ficamos aí, nos repetindo, sempre com a mesma ladainha.

Não há o que fazer.

O país foi tomado por bandidos de todos os setores da cúpula da sociedade. Estamos nas mãos deles. Somos reféns. Talvez pior ainda que uma intervenção militar. É uma Intervenção judiciária. Uma intervenção judiciária, policial e midiática.

Só se houvesse um levante popular. Mas nos tornamos uma nação de bobo alegres. Sempre fomos, mas a Globo e a Igreja aprimoraram nossa idiotia. Não se faz um levante com um povo que não entende o que está acontecendo.

Não se faz um levante com um povo que fica contente de saber que o mercado reagiu bem à condenação de Lula. O mesmo mercado que reage bem às reformas trabalhistas e da previdência, o mesmo mercado que salta quando se fala em fim da justiça do trabalho. O deus mercado que certamente aprovará o trabalho escravo, o fim da universidade pública, o fim do estado.

O mercado. O Bonner se infla quando fala o que o mercado gostou e o que o mercado não gostou.

Não tem jeito. O negócio é ficar torcendo pra não descaralhar muito rápido. Ficar aí, flutuando numa boia, imaginando alguma solução, ganhando tempo.

Eu não tenho possibilidades, no momento, de cair fora, mas acho que quem puder, deve ir pensando numa saída pro exterior, pois esses caras que tão no poder tão com ideias de destruir com tudo.

Não estou falando isso como aqueles que desdenham do país e bradam que a saída é ir pro exterior e geralmente optam por Miami.

Estou falando isso porque estou de verdade assustado com o que ainda pode vir por aí. Pode se tornar uma real questão de sobrevivência. E falo isso também porque começo a ter asco de andar pelas ruas no meio dessa gente que flutua entre a ignorância e a perversidade. Estou farto de ouvir infâmias. Somos um país canalha. A vida por aqui tá cada vez mais triste.

O Brasil se tornou um farwest onde o xerife e o juiz são bandidos e nesse filme até os mocinhos são duvidosos.

Tá tudo dominado.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

NO FORRÓ

Depois de duas semanas de curso de dança de salão me animo a ir no forró.

Pago entrada e tudo.

Bebo algumas cervejas e pronto, já tenho a coragem suficiente para minha primeira experiência, quando de repente, vislumbro no meio do povo uma lagartixa do meu gosto.

Linda, lânguida, vestidinho e sapato baixo. Perfeitinha.

Me aproximo. Ela sorri e acena que sim e nos vamos pro meio do salão e é aí que se inicia uma refrega incompreensível, uma espécie de rinha de galo, um troço do outro mundo, eu tentando sujeitar a moça pela cintura, e ela mandando ver nuns movimentos ensandecidos e aleatórios, tudo fora de sinc, pensei até que eu ou ela talvez tivéssemos bebido demais, ou que o curso que havia feito era frio, mas com as pancadas, joelhaços, pontapés e piparotes que estava sofrendo e que começavam a doer muito, fui entendendo o que estava se passando. Por sorte o xote era curto e também por sorte cheguei vivo ao fim da canção. Pedi pra parar e sentei numa mesa pra ver o resultado daquela sova que havia tomado.

Quando vejo, a menina tá se abancando a meu lado com duas cervejas na mão. Gentilmente me oferece uma e reclama.
- E aí, parceiro? Pouco fôlego?
- Não...não é isso, é que...
- Pô. Só dançou uma.
- Daqui a pouco a gente dança mais.

Falo isso e me inclino para sentir com as mãos os pequenos galos que começam a se formar em minhas canelas. Tento mudar o rumo da trela.

- Como você se chama?
- Aldene.
- Como?
- Aldene.
- Ah tá. É um nome diferente.
- Tá vendo aquela ali de preto dançando separado?
- Tô.
- É Maria Aldene, minha irmã.
- Legal.
- E aquela que tá dançando com ela, de cabelo curto, tá vendo?
- Tô também.
- Paula Aldene. Minha irmã caçula.
- Ah tá. Aldene é sobrenome.
- Não é não. É nome mesmo.
- Escuta. Não tem ninguém na sua família chamada Aldene Aldene?
- Que eu saiba não.

Começo a notar que minha coxas doem bem, devido à meia dúzia de tostões que a moça me sapecou, inclusive meu ovo esquerdo agora reclama com algumas pontadas, e com isso desconfio que, infelizmente, também foi atingido. Sigo no papo. O papo é esquisito. Mas me mantém em certa segurança.

- Hum. Aldene...e o que você faz na vida?
- Bom. Agora to aqui no forró bebendo e dançando contigo.
- Que coincidência, hein? Eu também.
- Legal, né? Temos coisas em comum.
- Muito legal.
- Quem sabe a gente vai dançar mais um pouco?
- Sabe o que é, querida? Vou te explicar.
- Hum. Explicar o que?

Fico olhando aquele rosto tão bonito, enquanto noto meu olho se fechando, certamente alguma cabeçada, quando a música esquentou no refrão final. Então despejo a revelação.

- Aldene, Aldene. Prestatenção!
- Não sou Aldene Aldene. É só um Aldene o meu nome.
- Tá, querida. É só uma forma de expressão, de dar ênfase.
- Dar o que?
- Nada. Olha só!
- Tá. Diz logo de uma vez.
- A música, a gente dança no ritmo.
- E aí o quê que tem?
- Sinto lhe informar que você não faz isto.
- Não faço?
- Não! Você incrivelmente dança a música na melodia!
- Eu? Danço a música na melodia?
- Dança sim. E tá errado. Fica uma maluquice da porra.
Com esta frase carregada da irritação de quem está dolorido e necessita compressas urgentes, a moça fechou a cara. Senti a ira em seus olhos e senti também meu dedão do pé esquerdo dormente. Pisões clássicos não poderiam ter faltado no combate.

- Tá errado dançar na melodia?
- Tá, querida.
- Tá, é?
- Tá sim. É no ritmo que a gente dança. Não na melodia.
- Tá errado, é?

Foi repetindo este mantra com dentes cerrados e olhos faiscantes, olhos de quem está  fazendo mira, e notei que, com expressão sombria, cobrindo com o dedo o gargalo da long neck, a moça a chacoalhava com um certo vigor. Frente à tamanha e imediata ameaça, só restou jogar-me no meio da multidão e, manquitolando, empreender fuga desesperada.

Em vez do habitual Mac Donalds da madrugada, me conformei em passar na drogaria e comprar um tubão de Gelol.

O atendente, com olhar pesaroso, reparou em meu olho, agora completamente fechado.
- Briga?