Sou músico. Trabalho com música. Me preocupo com a música.
Venero e odeio a música. Estudo música. Acho a música grandiosa. Acho a música
pequena. Me sustento com a música. Ajudo a sustentar outros com a música.
Trabalho com música. Sou músico.
Por isto tudo, muitas vezes quero a não-música e agora são 3 da tarde e estou deitado no meu quarto curtindo um pouco de não-música. Só escuto o tráfego do Catete que hoje está morninho, com muito poucas buzinas, e isto pra mim está mais do que bom. Já é bem parecido com o silêncio. Maravilha.
Mas eis que de repente escuto música! Vem da rua. Virá de algum apartamento? Não. Vem da rua mesmo. Minha gastrite levanta o dedo. Presente! Escuto então uma introdução conhecida. Música americana, antiga, Count Basie talvez. E logo escuto a voz. Estilo Sinatra. E o cara canta bem, canta bonito.
Quando termina o refrão entra um trompete. E que som de trompete! As frases são do maior bom gosto. Bom de ouvir. Ele volta a cantar e termina a canção.
Começa outra. Não me irrito. Fly me to the moon. Mesma coisa. Categoria. Termina esta e começa Garota de Ipanema. Daí dá pra ver, pelo sotaque, que o cara não é brasileiro. Mas a Garota sai bonitinha.
Começa outra. O cara canta muito. Já entendi que ele tem um equipamento de som que faz soar as bases pré- gravadas e ele canta e toca o trompete em cima. E o faz muito bem. Então não me irrito.
Minha mulher também tá gostando. Quer descer pra ver o cara de perto. Não deixo. Estes caras com voz de Sinatra comem as pessoas com a maior facilidade. Fica aqui, quietinha.
Também tenho vontade de descer pra ver de perto, mas não vou. Não porque tenha o mesmo receio de que ele também me coma, nada disso, mas porque sei que ele vai ter uma caixinha ou um chapéu na sua frente, onde as pessoas depositam trocados. Como sou Mão Dura, (uma mistura de mão fechada com pão duro) vou ficar constrangido de sair dali sem cooperar com ele. E o cara é bom. Merece até dinheiro.
Então fico aqui deitado, ouvindo. 7, 8, 9 temas. Fantástico. Então ele para. Fico esperando o próximo standard que não vem. Acho que cansou e se foi. E então volta o tráfego. Uma buzina aqui, um grito lá. Paz. Só o tráfego. Não-música de novo. Não-música e pensamentos.
De repente ouço flauta. Solo de flauta. E é flauta pan. A abominável flauta pan. E o cara é muito entusiasmado. As melodias são tipo Ivanhoé ou Guilherme Tell, animadíssimas. Aquela alegria irlandesa. Não estou preparado pra alegria irlandesa, ou escocesa, ou País de Gales, ou a puta que los pariales. Então me irrito e me irrito muito.
E o cara não faz pausas. Toca sem parar. Freneticamente. Eu tinha um fuzil de alta precisão que estava no quartinho junto com meus caniços mas, infelizmente, sumiu na última faxina.
Não tem solução. Fico deitado olhando pro teto e ouvindo aquilo. Então começo a murmurar melodias bretãs também. E me ponho a cantar mais alto e mais forte acompanhando aquela insanidade. E achando que só cantar não basta, vou pra sala e começo a dançar também.
Me sinto na floresta de Sherwood. Agora sou um Robin Hood em sua plenitude, dançando e cantando alucinadamente, até que minha mulher se para na porta pra me dizer que tenho de ir ao supermercado. Me olha e dá risada. Nem fala nada. Ela sabe melhor do que eu que toda hora é hora pra se celebrar.
Pego a lista das compras e me vou pela rua do Catete. Passo pelo flautista e deixo um dinheirinho no chapéu dele. Sem dor nenhuma.
Fernando Corona – 2013
hehehehehehh muito bom
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