terça-feira, 15 de julho de 2014

ORBITAIS





         Minha boca não podia estar mais aberta, e aquela bela mulher tinha a broca em seu poder e com ela esburacava com duvidosa habilidade meu molar posterior, quando subitamente a anestesia deixou de fazer efeito e irritado com a dor, empurrei seu braço, levantei-me da cadeira e beijei-a e quando tentei tocar seus seios ela me afastou com rispidez, fato que me fez sentir profundamente ofendido, por isto então deixei-a ali mesmo, sozinha naquele beco escuro, e caminhei como que embriagado pela viela, tateando ásperos muros até achar um boteco enfumaçado no qual entrei, e quando sentei-me ao piano que ali havia, já dando início à execução de Blue Moon, senti que me retiravam do instrumento com rudeza, aqueles dois gigantes, dois brutos que me arrastaram com extrema facilidade escada acima, me jogando num quarto onde havia um outro homem completamente calvo sentado em frente a uma mesa, que com olhos de um azul pálido, contava dinheiro e depois de alinhar meticulosamente as cédulas, prendeu-as com um atilho de borracha, estendeu o maço em minha direção que vacilante coloquei no bolso e neste momento notei que ao lado de fora havia vozes de gente vociferando, gente forçando a porta querendo entrar, e o careca me apontou uma pequena saída pela qual eu poderia ir e disse achar aconselhável que eu fizesse isto logo de uma vez, e sem questionar sua indicação, atravessei a penumbra da saleta, cruzei um patamar estreito e desci escadas externas sob chuva e neblina, talvez tenha vencido cerca de 5 andares, não sei ao certo, quando vi luz saindo de um cômodo e estanquei no degrau justo em frente à janela pois na cena que havia dentro da habitação, duas mulheres jovens, nuas e sôfregas, se afagavam sobre uma larga cama e confesso que esta visão me petrificou, e quando elas se sentiram observadas, voltaram seus rostos sorridentes para mim, fazendo gestos claros para que eu entrasse, e então transpus o parapeito deslizando, e deslizando aterrissei naquela cama, quando as duas levantaram-se num ímpeto, sem qualquer explicação, e me olhando sem desmanchar os sorrisos, saíram do quarto de mãos dadas no mesmo exato instante em que soou, a meu lado, um despertador que marcava 8 da manhã e notei que eu estava suando, apesar da hora pouca, e logo algo chocou-se contra a porta com estrondo, o que me fez abri-la e pude ver que o jornal que estava caído ao solo trazia a manchete principal anunciando que a onda de calor persistiria e quando ergui os olhos, me surpreendeu ver o oceano ali tão perto, tão à minha frente, talvez aquilo fosse um hotel de veraneio, e me senti impelido a cruzar a soleira para caminhar pela beira mar com sapatos afundando na areia e água, até que, exausto, reparei que debaixo de um guarda sol alguém me acenava, me convidando a aproximar, e o senhor de barbas cristalinas que desfrutava da sombra e usava um leque com motivos chineses me perguntou se eu havia trazido a encomenda como fora combinado, o que me fez automaticamente sacar o dinheiro da calça e entregar a ele, que sorriu sem conferir o valor, e disse que eu era um bom menino, que sempre confiara em mim e me apontou o Dodge que estava estacionado na rambla e pediu que eu me fosse logo de uma vez, pois não havia mais razão alguma para ficar e que seu motorista já tinha instruções de me levar até o centro, e quando sentei no banco de trás ele deu partida sem dizer palavra e fomos pelo macio do asfalto e pelo ensolarado do dia, naquele carro tão negro e tão confortável e o sujeitinho não respondia a minhas perguntas, seria surdo ou impertinente, mas no final da alameda encostou o carro bruscamente em frente a um grande edifício quando imediatamente um homem de uniforme impecável abriu a porta e fez um gesto amável para que eu descesse, e o carro partiu sem mais, em alta velocidade, e o recepcionista, depois de condenar com um gesto vago a pouca educação do chofer, me conduziu até a porta de um elevador antiquíssimo no qual entrei e o ascensorista me deu um “bom dia” com todos os dentes e acionou o botão do 7, sem nada me perguntar, como se fizesse isto todas as manhãs, e já no 7, caminhei por tapetes vermelhos cheirando a mofo que cobriam um corredor vazio e pouco iluminado quando então desemboquei no vão de uma pequena sala onde uma senhorinha gorda, por detrás de um balcão, me fez um sinal de jocosa crítica, comunicando que sim, eu estava bastante atrasado, mas poderia entrar porque ainda estava sendo esperado e uma porta se abriu e pude ver ao fundo a cadeira já inclinada e o brilho dourado e irretocável dos instrumentos e ali, em primeiro plano estava ela, que bela figura, Thalita e sua lânguida silhueta, me filmando com olhos de pouquíssimos amigos e talvez isto já fosse um claro sinal de que algo raro poderia vir a acontecer, quem sabe aquilo que mais tememos, que a anestesia não funcione, que a anestesia repentinamente venha a falhar.


F. Corona – 4/6/2014


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