domingo, 13 de julho de 2014

NOSTALGIA


Nestor estava debruçado no balcão  servindo-se de cerveja, e já era sua terceira, o olhar vazio, a cabeça fervilhando que a vida tá uma merda, Neuza se foi e nunca mais deu notícias, e aquele tapa na cara que ela lhe desferiu por bons motivos ainda arde, e depois do tapa não houve palavra nenhuma, nenhuma linha de email ou mensagem.

Neuza se dissolveu no ar, e como se isto não bastasse, agora vem esta seca de trabalho que não termina, tocar um baile de 5 horas e ganhar míseros 80 reais, enfrentar o trem lotado carregando o trombone que precisa reforma urgente e neste momento, nesta cidade gigante e cruel que nunca lhe afaga, há tantas buzinas impertinentes que reverberam pelas paredes de azulejos encardidos
 deste boteco no centro da Lapa, e estes homens espalhados pelas mesas de metal que parecem seres que resistiram a um cataclismo nuclear, transformados seres que bebem cachaça barata em copos plásticos e murmuram palavras de saudação à feroz solidão que não há álcool nem cigarros que amenizem, e ainda tem este corpo que incomoda, as dores que se espalham por este corpo de 68 anos que só deixa de fitar o vazio quando escuta uma voz colada a seu ouvido.

- Que instrumento é este, baby?

É uma mulher de fisionomia quase brutal, de uma beleza rude escondida atrás da maquiagem pesada, cabelo basto e desgrenhado, roupa vulgaríssima e lábios de um vermelho saturado. Por certo ainda não chegou aos 50, apesar de parecer.

- É um trombone, moça.
- Toca uma coisa pa nóis então.

Este pedido, se fosse feito em qualquer outra ocasião, teria deixado Nestor encolerizado e possivelmente não teria dado a esta mulher qualquer tipo de resposta, mas seu inferno sem portas de saída era de tal tamanho, que sem tirar os olhos dos olhos dela, como num transe, sacou o instrumento do estojo e desprezando qualquer ajuste de embocadura passou a entoar as primeiras notas de um antigo tango chamado Nostalgia. Isto fez os malandros esquecerem um pouco de seus copos para jogarem sua atenção sobre aquele homem incomum que agora se postava no centro do bar e soprava seu trombone de pistos dourados com  fisionomia dolorida. Com sinuosos movimentos de corpo, o músico ia expressando todos os matizes e nuances que esta peça exige, os ralentandos trágicos, logo seguidos por exagerados rubattos que estavam  fazendo vibrar as vidraças nos momentos de maior sforzzato, e quando irrompeu no estribilho, o trombonista reparou que havia um bom número de pessoas aglomerando-se nas portas do boteco, atraídas que foram pelo tipo raro de sonoridade, mas mais do que isto, seduzidas pela execução tão exata em seu sofrimento, em seu abandono, a melodia de Cobián, riquíssima em paisagens acinzentadas,  fala de amores perdidos, irrecuperáveis amores, estas notas, todas elas, são afiadas adagas cravadas no peito e quando já se ouvia a repetição da última estrofe um tanto mais complexa (sua letra diz: Desde mi triste soledad veré caer las rosas muertas de mi juventud), sentiu-se uma bruma pairando no ar, o que fez Nestor com os olhos brilhando devido ao esforço, afastar o instrumento da boca, para poder ouvir o quanto de silêncio havia por trás daquela névoa insana, sim porque para os bons músicos o silêncio é o ouro mais valioso, e durante esta breve pausa, observou os olhares suspensos de sua excêntrica plateia, a respiração congelada das pessoas que em êxtase suplicavam por um final, como se isto fosse necessário para poderem seguir adiante com suas vidas, e então Nestor retomou o tema e entoou as últimas cinco notas que soaram com uma dramaticidade quase póstuma.

Os aplausos foram entusiasmados e o músico, enquanto agradecia, sentiu que a mulher lhe segurava pela manga da camisa e tinha os olhos chorosos.

- Que lindo este fado, baby.
- Não é fado. É tango.
- Pra mim é tudo fado. Pagode é fado, lambada é fado, mas este fado é muito triste, parece dor de amor.
- E é.

- Tu tem dor de amor, baby?
- Tenho. Também tenho dor de amor.
- Forte?
- Bem forte.
- O fado não tem letra, mas dá pra sentir que é de sofrimento.
- Tem letra sim.
- Fala pra mim, fala.
- É espanhol.
- Não sabe em português?
- Uma parte eu sei. Diz assim;

"Quero embriagar meu coração
Para esquecer um louco amor 

que mais que amor foi um sofrer.
E aqui venho para isto, 

para apagar antigos beijos 
com os beijos de outras bocas".

- É lindo.
- É sim, bem bonito.
- Baby, tu quer que eu ajude a apagar teus antigos beijos?
- Acho que quero.

Ali no centro do bar, beijaram um beijo longo e por isto foram aclamados por toda aquela gente que ainda esperava por um bis, mas a mulher, muito decidida, sujeitou Nestor pela mão e tirou-o do bar, não sem antes gritar:


- Ernesto! Amanhã eu pago a ceva dele!

Saíram trôpegos, de braços dados pela Men de Sá, o trombone na mão. O estojo havia ficado.

- Amanhã eu pego, quando for pagar tua bebida.
- Tá bom.

- Ai baby, eu adoro a Lapa! Tu não?

Nestor nada respondeu, pois estava admirando a bela estampa de Gardel nos grandes cartazes, o gentio alvoroçado, os casais alegres em sua embriaguez, exibindo suas roupas de fim de semana. Do fundo das casas velhas se podia ouvir o som das típicas, um bandoneon gemendo no acompanhamento de uma sofrida voz de mulher. Nestor não estava na Lapa. Nestor estava sy en Buenos Ayres, en el barrio de la Boca, era una noche caliente de febrero, quizá marzo. El año? 1940, seguro.

Fernando Corona


O tango Nostalgia foi composto por Enrique Cadicamo & Juan Carlos Cobián no ano de 1936 e teve na voz de Carlos Gardel uma de suas mais famosas versões.





                                       








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