sábado, 23 de agosto de 2014

CARÓTIDAS

Era um exame para investigar minhas carótidas, um scan ou algo assim, não havia mais ninguém na sala de espera e isto era de se admirar e também não esperei tanto tempo como costuma acontecer, então uma porta se abriu e uma mulher de jaleco branco proferiu meu nome em voz baixa e me convidou a entrar, e no instante em que entrei e a porta foi novamente fechada, se fez o melhor silêncio que já tinha escutado em toda minha vida.


Ali, exatamente no epicentro da ensandecida cidade do Rio de Janeiro, havia uma pequena sala completamente vedada, onde se podia ouvir até nossas respirações, que ao se cruzarem, criavam um interessante descompasso, e a mulher, que certamente seria a médica, pediu que eu me sentasse e começou então com as perguntas de praxe, nome, endereço, causa do exame, estas coisas que são tão importantes para se preencher fichas, e sua voz era serena e tranqüilizadora.


Era uma mulher de estranhas feições, teria 40 ou pouco mais, de olhos claros e bondosos, com o nariz um pouquinho exagerado em seu cumprimento, mas talvez fosse isto que lhe conferisse uma beleza rara e egípcia e durante este pequeno questionário nossos olhares foram inventando novos códigos, nosso diálogo de frases curtas tinha tonalidades divertidas e soava quase caricato. Palavras frias como diabetes, medicação e colesterol adquiriam outros sentidos e flutuavam pelo ar como borboletas bêbadas e experimentei um profundo bem estar no momento em que tirei a camisa e deitei-me na maca, pois a temperatura era justa naquela saleta completamente desprovida de quadros ou cartazes médicos. Pude reparar na cor creme que tinham as paredes e na qualidade daquela luz alcatroada que nascia de um simples e pequeno abajur que dava àquele ambiente uns ares de igreja sem santos ou a indecifrável paz que têm as salas de aula em pleno janeiro, e senti brevemente o frio do gel no meu pescoço  e fiquei atento às palavras da doutora que cortavam gentilmente a penumbra dando início ao exame de minhas já antigas veias e foi neste momento que não tive dúvidas de que poderia ficar ali por 20 anos, ouvindo a voz terna daquela mulher que investigava meu corpo com cuidado, de olhos fixos em um monitor, murmurando pequenos sinais de aprovação, afinal minha aorta se revelava limpa, não havia qualquer indício de obstrução, e pude observar detalhadamente seu perfil e nesta época eu ainda não obedecia ao que meu coração mandava, então só me restou contemplar em silêncio aquele rosto de esfinge que naquele momento estava tão imerso em seu trabalho e não me fitava e isto só aconteceu depois, quando ela deu por terminado o procedimento e nossos olhares por fim se encostaram e pude ler que ela entendia muito bem o que meu silêncio dizia, e dois segundos desta mirada foram o bastante para que corássemos juntos e depois disto posso jurar que houve um lapso em minha memória, pois não lembro do momento de sair nem de como nos despedimos, apenas guardo que logo em seguida minha alma vibrava pela Rio Branco e era um fim de tarde glorioso de verão, e caminhando por entre gentes, pensei que poderia tê-la convidado para um chope, e por que não?, ela aceitaria e seguramente nos casaríamos, mas alguém, que não recordo o nome, disse certa feita, que quando nos casamos chega ao fim a poesia e começa a história, e talvez a lembrança desta frase me conforte até hoje, quando me contento apenas em carregar comigo, através dos tempos, esta pequena pedra não lapidada, e a levarei, quem sabe, até meu último dia, até o momento exato em que meu sangue obstrua para sempre minhas carótidas.

Fernando Corona – agosto 2014






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