Mauro entrou no apartamento na hora de sempre, parou em frente à mulher, fez uma pequena pausa e falou, quase soluçando:
– Perdi meu sonho, Ná.
- Mas como, Mauro?
Ná não conseguiu disfarçar a aflição, e ouviu como sua própria voz saiu trêmula ao fazer a pergunta, afinal Mauro carregava este sonho fazia tantos anos, e apesar de ser um sonho passado, e não um sonho futuro, como a maioria das pessoas costumava levar consigo nestes tempos, o marido tinha muito cuidado com ele. Era zeloso com seu sonho, Mauro.
Os amigos brincavam com ele pelo fato de seu sonho ser um sonho passado, mas o admiravam e respeitavam suas estranhezas, que certamente havia herdado do pai, assim como a casa azul e as traquitanas de inventor.
Eles pressentiam que Mauro talvez ainda preservasse intacto o que há muito haviam perdido. Ná lembrou o dia em que ali, naquela sala, naquela mesa, Negro Paulo, depois de um largo gole de vinho, sentenciou com voz grave:
- Quando todos tivermos perdido o prumo, ainda teremos o Mauro pra nos trazer de volta. Pércio e Fla, que ouviam com deboche as bobagens do Negro, neste momento fizeram um silêncio consentido e dirigiram um olhar sorridente e carinhoso a Mauro.
- Não sei, Ná. Havia muito movimento no centro hoje. No momento de sair do trem fiquei nervoso com tanta gente e tanto soldado que havia. Lembro de que esbarrei numa moça e talvez tenha sido ali, naquele momento, que o sonho possa ter caído. Fiz um movimento brusco porque fiquei com medo de machucá-la. Era uma moça magrinha, muito frágil. Ou foi, quem sabe, na hora do almoço quando busquei outro lugar para comer. Não sei por que fiz isto de almoçar em outro lugar. Não sei. Hoje as coisas estão em desordem dentro de minha cabeça desde quando acordei e foi agora, quando tirei as chaves para entrar em casa , que senti que o sonho já não estava mais comigo.
Ná ouviu pensativa. Mauro não sabia sonhar outro sonho e já fazia algum tempo que eram só os dois no apartamento. Não havia a quem pedir uma opinião ou uma palavra de conforto pois desde a proibição da Grande Rede e o Crack Telefônico a comunicação com os filhos e amigos andava irregular. Estavam todos na resistência do Baixo Amazonas, havia vários meses e nada de notícias. Então agora, eram só Mauro e ela. E o sonho perdido. Ná passou a mão no rosto de Mauro e ele sentiu a profunda inquietação do olhar dela.
- E agora, Mauro?
- Agora não sei. Não quero pensar agora. Estou muito cansado, Ná. Vou deixar para pensar isto amanhã, se o sol der as caras.
Naquela noite jantaram em silêncio. Ná, de quando em quando, levantava os olhos do prato, e fitava Mauro que comia e assistia televisão com um vago desinteresse.
Apesar do que acontecera, Mauro não parecia abatido. Sim, se mostrava cansado, mas tinha um brilho no olhar que há muito a mulher não via. O brilho que tinha quando se conheceram no verão de 23. A mulher acompanhou com o olhar os movimentos lentos de Mauro quando ele deixou a mesa depois de comer e tomou a direção do corredor. Ela sabia que ele iria até a “sala da contemplação”, que era como ele gostava de chamar o pequeno quarto que antes servia ao filho mais novo. E como este também se havia ido, Mauro ali instalou uma boa mesa para fazer seus desenhos e também uma biblioteca farta.
Ná ouviu o ruído do interruptor da luz de cima e logo o da luzinha de mesa. O marido gostava de tudo muito iluminado. Sempre fora assim. “Mauro incandescente” foi o apelido inventado por ela mesma. E, por fim, adivinhou que Mauro sentava à mesa e talvez rabiscasse qualquer coisa nos grandes papeis, mas Mauro se acomodou na cadeira que tinha sido desenhada pelo pai e não tocou no carvão ou no lápis macio. Respirando pausadamente se pôs a olhar para o teto branco, como se dali pudesse vir algum sinal, alguma resposta.
Gostava tanto de seu sonho, pensou. A casa azul, ampla e ensolarada, o quintal que se estendia até quase a montanha, com um mato denso, cheio de caminhos sinuosos onde não faltavam frutas frescas e mistérios que ele e depois seus filhos tentaram tantas vezes decifrar. O ruído das crianças era do tamanho do mundo. Eram muitas e vinham de toda parte brincar na casa azul.
Faziam isso até a última gota de sol e quando se iam levavam no rosto a expressão de quem tem a alma completa. No dia seguinte estavam ali, novamente, como os pombos das praças, famintos do alimento que lhes dava aquela atmosfera silenciosa e pura.
Na casa azul os pássaros entravam nos cômodos e, estáticos como esculturas, davam a breve impressão de que o tempo se negava a avançar. Era este o sonho de Mauro. O anacrônico sonho passado de Mauro.
Mauro baixou os olhos sobre a prancha, onde descansava o desenho iniciado na noite anterior, pois lhe chamaram a atenção as cores que havia utilizado, tão diversas das habituais e foi com assombro e incredulidade que ali, no canto da mesa, num vão entre livros empoeirados e pinceis sujos, Mauro viu seu sonho. Ali, a seu alcance. Não o havia perdido e sim esquecido, como uma chave, telefone, carteira ou qualquer outra coisa que se esquece e pode ser esquecida.
Mauro lentamente estendeu o braço em direção a ele ao mesmo tempo em que sua alma foi se enchendo de clareza e entendimento. Já não mais necessitaria do seu sonho. Agora Mauro o sujeitava entre as mãos com um cuidado agradecido, sentindo sua textura e peso tão familiares, e o mirava com olhos de uma criança pequena que acabou de descobrir os próprios pés.
Sem duvidar nem por um momento do gesto que viria, Mauro abriu a gaveta mais próxima e o depositou delicadamente entre uma caixinha de parafusos e uma lanterna velha. Fechou a gaveta, imerso que já estava no imenso cansaço daquele dia e na profunda paz que agora lhe rodeava e se recostou na cadeira buscando uma posição melhor para se deixar levar pelo que sentia se aproximar como uma onda de um mar agitado, decidido e justo.
Ná veio até a porta do quarto para chamar Mauro para assistir à TV e quem sabe afastá-lo um pouco dos possíveis maus pensamentos e devaneios, mas o encontrou adormecido com um sorriso nos lábios. Foi com os olhos marejados que a mulher foi até o quarto e retornou trazendo uma boa colcha já que maio estava aí com seus ares traiçoeiros e com a chegada das novas marés nunca se sabia o quanto podia baixar a temperatura durante a noite.
Entrou no cômodo e cobriu Mauro cuidadosamente. Na ponta dos pés deu meia volta em direção à porta, e depois de desligar a luz de cima sem fazer ruído, ficou observando dali seu marido envolto na penumbra que a luzinha equilibrava . Como Mauro é bonito quando sonha, pensou a mulher.
Mauro neste momento estava conhecendo as cores de seu novo sonho. Os tons eram enérgicos e se pareciam aos do desenho que estava sobre a prancha. Negros e pratas brilhantes, misturados a rajadas de um vermelho muito vivo. Em nada lembrava a casa azul. Neste sonho, neste seu novo sonho, Mauro bramia espadas e os inimigos não eram poucos, mas ele lutava com a alegria de uma raiva que foi por fim liberta. E Mauro não tinha medo.
Fernando Corona – 2013
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