sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O 5

          A estação estava lotada nesta manhã fria e ele, irritado, consultava o relógio, calculando o tamanho de seu atraso para mais uma reunião sem nenhum propósito, e no meio daquela multidão ensandecida, o único pensamento que lhe dava colorido à alma era a lembrança daquela mulher tão bonita que vez por outra jogava o olhar no seu, sem lhe dar certeza de nada, pois era sempre uma mirada assustadiça, mas o indício era promissor o bastante para que houvesse jurado a si mesmo que se a encontrasse novamente naquele vagão de número 5, iria falar com ela, iria lhe perguntar seu nome, lhe diria o seu, e se atiraria ao abismo, confessando sua imensa vontade de conhece-la e que isto já fazia muito tempo.

          Estas cores se turvaram um pouco logo em seguida, pois recordou  que havia perdido sua grande chance quando ela sorriu para ele naquela última tarde de sexta feira. Naquele momento faltou-lhe a devida coragem, e duas paradas depois ele a viu descer graciosamente do trem. Só lhe restou suspirar e acompanhar através do vidro, passo a passo, o caminhar leve da moça, que não olhou para trás e claro que não o faria pois aos covardes a vida não estende tão fabulosos prêmios.

       
          A aproximação do trem lhe trouxe de volta ao mundo incolor, quando reparou que tolamente não havia buscado uma boa posição para competir com aquela gente toda que preparava a invasão dos vagões. Temeu não lograr seu intento e isso o faria chegar ainda mais tarde à firma, e qualquer olhar de crítica que recebesse poderia ser a gota que faltava, então era bom rosnar no íntimo e lutar com bravura para garantir seu lugar e quando as portas se abriram teve o cuidado de não machucar fêmeas, mas empurrou e peitou machos e foi também pisoteado e empurrado para dentro do 5 que já chegara quase cheio e agora recebia mais uma dose de gente trôpega e ansiosa.

          
As portas se fecharam, a composição se pôs em movimento e as pessoas ainda se acotovelavam, buscando posições mais dignas e cômodas, quando ele conseguiu, com esforço e cuidado, passar por entre dois brutamontes e conquistar o seu espaço onde pôde se amparar nos ferros, e assim seguir viagem para quem sabe soltar novamente os pensamentos, mas viu com assombro que isto seria desnecessário, porque ali estava ela, à sua frente, olhando fixamente para ele, e 30 centímetros era distância mais do que perfeita para ele apreciar todos os detalhes daquele rosto. Agora, era só uma questão de respirar fundo para  recuperar-se do susto e tentar dizer alguma coisa. 

          Seus nervos lhe fizeram rir de forma quase exagerada, o que fez a moça desviar o olhar, mas ele logo se recompôs e então suas palavras foram saindo sem esforço, num volume baixo e cadenciado, como uma reza, e desta forma, foi explanando com clareza tudo o que estivera pensando sobre ela, que agora focava a atenção nele novamente com uns olhos que eram dois sóis de outono e quando aquele texto quase ensaiado chegou ao fim, a resposta dela foi apenas o silêncio, um silêncio de vertigem que o deixou de pernas bambas e um calor no rosto que foi se tornando insuportável, afinal não havia para onde fugir, não havia espaço, e lhe passou pela cabeça que ela pudesse ser estrangeira, ou muda, ou uma mulher perversa e arrogante, mas ela se aproximou um pouco, como quem vai contar um segredo, logo interrompendo este gesto, porque neste exato momento o trem parou na estação do Pontal, quando as portas se abriram e mais pessoas entraram no 5, como se isto ainda fosse possível.

           A pressão do povo fez com que a distância entre os dois diminuísse ainda mais e seus corpos se tocaram e ele pôde aspirar aqueles ares de shampoo misturados a um perfume que era exatamente raro como ele imaginara ser e pensou que seria bom que ela também gostasse do seu cheiro, que por sorte havia caprichado na lavanda fresca pois estava obrigado a fazer um bom papel na reunião da firma que agora se tornava apenas uma vaga e péssima lembrança, já que a vontade que lhe invadia neste momento era a de que esta viagem nunca mais terminasse, e então ele a mirou com um gesto tão indagativo, que a moça, com um olhar de pura súplica, sussurrou num tom de confissão: Tenho medo. Ele perguntou o porquê e ela respondeu que era por haver muita gente no 5 e isto a sufocava e ele quis saber se ela não gostaria de descer na próxima parada e ela respondeu que não podia, que estava atrasada e ele sentiu o corpo dela tremer, e experimentou um imenso amor por este momento ao recordar, sem saber por que razão, de uma brincadeira que, quando bem pequeno, fazia com sua mãe, e olhando ternamente para a moça, fez um cuidadoso movimento ao levar o braço esquerdo em direção ao próprio ombro direito e dando duas leves batidinhas na lapela falou baixinho: Esconde aqui.

          Ele próprio ficou surpreso com seu gesto, mais estúpido do que corajoso, mas quando ela se aconchegou no seu ombro e o abraçou com uma das mãos, ele sentiu o coração latejando nas têmporas, e ao enlaça-la pela cintura pôde sentir a firme delicadeza daquele corpo trêmulo que agora se colava ao seu e arfava, lhe transmitindo uma quentura que era algo que ele jamais poderia imaginar existir, junto à clara sensação de que aquilo tudo era simplesmente um reencontro após séculos de doída separação e por isso adivinhou que o que escorria por seu pescoço, já molhando seu peito, eram lágrimas que vertiam dos olhos dela que o abraçou mais forte entre soluços surdos e ele não hesitou em puxa-la mais para si e encostar seu sexo no dela e ela respondeu que sim, com um movimento de cintura que tornou o contato mais justo e suas bocas e línguas se procuraram e era pura insanidade este mundo que repentinamente se transfigurava num imenso silêncio de câmera lenta e esta entrega de corpos famintos exalou por todo o 5 um cheiro de flor e mar que fez com que todos os passageiros deixassem de lado pensamentos, conversas, telefonemas e angústias para se entregarem àquela nova e fresca atmosfera que agora estava repleta de antigas imagens e cenas passadas que transluziam e cintilavam como flashes sobre suas cabeças até o momento deste breve transe ser interrompido pela chegada do trem à estação central de Villas, quando as portas se abriram ruidosamente e as pessoas passaram a abandonar o vagão com vagar, pois algo ainda as atraía a ficar sorvendo o ar mágico que emanava daquele casal que continuava em sua volúpia em meio à cabine, sob os olhares sorridentes dos poucos passageiros que haviam ficado para seguir viagem, quando então separaram seus corpos para poderem ler o que diziam seus olhos e descobriram que não havia dúvida de que tudo aquilo havia sido escrito numa pedra jogada em algum remoto rio.

          As portas do vagão já se fechavam, quando ele, num movimento rápido, se atirou a elas, forçando com o corpo que se abrissem novamente, e seguido a isto estendeu a mão em direção à moça que não hesitou em segura-la e os dois deixaram o vagão, entre risadas e afagos, e já tomavam apressados o caminho das escadas quando uma certeza lhes tomou, a certeza de que esta cena não se repetiria, e num gesto único e sincronizado, voltaram seus rostos para assistirem ao trem aumentar sua velocidade deixando a gare, pois queriam fixar em suas retinas para sempre, a imagem do 5. O vagão de número 5.

       
          Fernando Corona – 2013 – RJ



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